3. Controle de convencionalidade e omissão quanto à execução/implementação dos direitos humanos/fundamentais
Antes de explicarmos diretamente o controle de convencionalidade, faz-se necessário destacar alguns ensinamentos de Luigi Ferrajoli, trazidos ao nosso conhecimento por Valerio Mazzuoli, segundo o qual
“a existência de normas inválidas, ainda segundo Ferrajoli, ‘pode ser facilmente explicada distinguindo-se duas dimensões da regularidade ou legitimidade das normas: a que se pode chamar ‘vigência’ ou ‘existência’, que faz referência à forma dos atos normativos e que depende da conformidade ou correspondência com as normas formais sobre sua formação; e a ‘validade’ propriamente dita ou, em se tratando de leis, a ‘constitucionalidade’ [e, podemos acrescentar, também a ‘convencionalidade’], que, pelo contrário, têm que ver com seu significado ou conteúdo e que depende da coerência com as normas substanciais sobre sua produção’. Nesse sentido, a vigência de determinada norma guardaria relação com a forma dos atos normativos, enquanto que a sua validade seria uma questão de coerência ou de compatibilidade das normas produzidas pelo direito doméstico com aquelas de caráter substancial (a Constituição e/ou os tratados internacionais em vigor no país) sobre sua produção”.[15]
Trata-se de observação extremamente clara quanto à necessidade de conformidade das normas com aquelas outras ditas superiores. Todavia, preferimos separação dos requisitos em existência, vigência, validade e eficácia.
Os dois primeiros (existência e vigência) dizem respeito à compatibilidade/conformidade formal. Seria a compatibilidade com as normas que dizem como as demais normas (inferiores) devem ser feitas.
Já a validade se refere à coerência; compatibilidade material (substancial) com a Constituição e com os Tratados (é aqui onde ocorrerá o controle de convencionalidade).
Por fim, a eficácia é o grande problema da implementação das normas no direito brasileiro. Vamos adiante.
De acordo com todo o exposto nos itens anteriores, os tratados internacionais sobre direitos humanos, portanto, além de influenciarem na legislação interna, também são parâmetros para a atuação da Administração (Poder Executivo) no que diz respeito à efetivação dos direitos consagrados nos referidos instrumentos internacionais.
Em outras palavras, o Poder Público deve observar e emprestar efetividade tanto ao direito fundamental previsto em nossa Constituição, como também ao direito previsto nos tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro.
Destarte, como muito bem explica Mazzuoli,
“entende-se que o controle de convencionalidade deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para este deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno”.[16]
Nessa mesma linha, Carina de Oliveira Soares:
“Os direitos fundamentais supra-estatais são considerados paradigmas de validade das normas de direito interno, inclusive das normas constitucionais. Tais direitos impõem limites aos poderes do Estado – nenhuma norma interna pode ser interpretada ou executada em contradição com a Constituição e com as normas de direitos fundamentais supra-estatais; ademais, o Estado se vê obrigado a incorporar esses direitos à Constituição e a garantir os meios necessários para a efetividade de tais direitos. Cabe ao Poder Judiciário e aos demais Poderes Públicos assegurar a implementação no âmbito nacional das normas internacionais de proteção dos direitos humanos ratificadas pelo Estado brasileiro; ao Congresso Nacional a obrigação negativa de se abster de legislar em sentido contrário às obrigações assumidas internacionalmente; e aos cidadãos, beneficiários diretos de instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos humanos, reclamarem, perante os órgãos judiciais do Estado, a satisfação dos direitos estabelecidos nos tratados”.[17]
Percebe-se, então, que além do dever de observância às normas constitucionais brasileiras, deve-se manter estreita compatibilidade também com as normas internacionais que tenham sido incorporadas ao nosso ordenamento, mormente aquelas que tratam de direitos humanos.
Assim, o direito internacional incorporado influencia na formação das políticas públicas tendentes à efetivação dos direitos.
O controle de convencionalidade, nessa perspectiva, servirá também como norte de atuação, tendo-se em vista a relutante omissão do Poder Público quanto à implementação de inúmeros direitos individuais e coletivos, tornando-se possível a judicialização de tais temas perante os tribunais pátrios, e até mesmo perante organismos internacionais.
Superada essa questão, chegamos ao ponto crucial da necessidade de efetivação dos direitos humanos previstos tanto nos tratados internacionais como no direito interno, mormente aqueles previstos na Constituição Federal.
4. A necessidade de efetivação e justiciabilidade de direitos previstos em tratados internacionais
Para Ferdinand Lassalle, “onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país”.[18]
Havia, portanto, o reconhecimento de que a Constituição não impunha uma forte normatividade diante do Estado, mas ocorria justamente o contrário: o primado deste sobre aquela. Dieter Grimm acredita que essa constatação passa a predominar no período que medeia a fundação do Império Alemão em 1871[19].
Em contraposição à tese desenvolvida por Lassalle, Konrad Hesse tenta superar o entendimento de que a Constituição escrita sempre sucumbirá diante dos fatores reais de poder. Segundo Hesse, para que a Constituição seja dotada de força ativa ela deve compreender, além da vontade de poder, também a vontade da Constituição.
Aliás, “A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição”.[20]
Percebe-se, portanto, que a Constituição de um determinado país possui deve sim possuir caráter de efetividade frente à atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, além do próprio Judiciário. Este último assume importância ante não conhecida e passa, em muitos casos, a ser o verdadeiro poder determinante para o cumprimento das promessas constitucionais.
Nessa mesma linha segue Flávia Piovesan ao asseverar que
“a Constituição de 1988, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, institui o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, nos termos de seu artigo 5º, parágrafo 1º. Inadmissível, por conseqüência, a inércia do Estado quanto à concretização de direito fundamental, posto que a omissão estatal viola a ordem constitucional, tendo em vista a exigência de ação, o dever de agir no sentido de garantir direito fundamental. Implanta-se um constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Esse princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”.[21]
Nesse sentido, a judicialização de tais direitos teve incremento assustador, passando-se da defesa dos direitos individuais para atingir os direitos coletivos lato sensu. As próprias políticas públicas passaram a ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário.
Quanto ao caráter fundamental de direitos sociais, a Professora Flávia Piovesan concorda com o entendimento de que
“quanto ao caráter indivisível, interdependente e inter-relacionado dos direitos humanos, ressalte-se que a Carta de 1988 é a primeira Constituição que integra ao elenco dos direitos fundamentais, os direitos sociais, que nas Cartas anteriores restavam pulverizados no capítulo pertinente à ordem econômica e social. A opção da Carta é clara ao afirmar que os direitos sociais são direitos fundamentais, sendo pois inconcebível separar os valores liberdade (direitos civis e políticos) e igualdade (direitos sociais, econômicos e culturais)”.[22]
Muito embora essa ideia seja crescente, ainda hoje existem muitos argumentos desfavoráveis a esta possibilidade, tais como o princípio da separação dos poderes e o limite da reserva do possível. Aliás, é preciso não olvidar que o ponto central desta linha acaba ultimando naquilo que Canotilho chamou de “ditadura dos cofres vazios”.[23] Daí a imprescindibilidade de uma evolução na doutrina nacional, como tem preconizado a Professora Flávia Piovesan.[24]
Piovesan, noutro escrito, percebeu que
“tal mentalidade revela ainda a forte resistência da cultura jurídica nacional em conceber os direitos sociais, econômicos e culturais como verdadeiros direitos fundamentais. A implementação dos direitos sociais exige do Judiciário uma nova lógica, que afaste o argumento de que a ‘separação dos poderes’ não permite um controle jurisdicional da atividade governamental. Essa argumentação traz o perigo de inviabilizar políticas públicas, resguardando o manto da discricionariedade administrativa. Há portanto que se realçar a imperatividade jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais, com base na doutrina da indivisibilidade dos direitos humanos consagrada pela Declaração Universal em 1948 e endossada em Viena, em 1993. Há que se propagar a idéia de que os direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e, por isso, devem ser reivindicados e compreendidos como direitos e não como caridade ou generosidade”.[25]
Muito embora se concorde com o esposado acima, importante perceber que tal evolução do entendimento sobre a judicialização das políticas públicas deve estar atenta à realidade brasileira, sob pena de rebaixar os escritos constitucionais a mera folha de papel. Em outras palavras, a ousadia na efetivação dos direitos humanos e fundamentais não deve ultrapassar os limites da razoabilidade necessários para o cumprimento de mandamentos bastante generosos num país que mal consegue fornecer o básico para a sua população.
Pois bem, não bastasse o direito interno, diversos tratados internacionais prevêem uma ampla gama de direitos a serem observados pelos Estados signatários. Trata-se, na realidade, de um patamar mínimo de dignidade humana a ser defendido pelas Administrações locais. Ou seja, uma espécie de mínimo existencial.
Como já fora explanado acima, os tratados internacionais de direitos humanos promoveram forte influência no direito nacional, tanto que no nosso sistema temos inúmeras previsões constitucionais e legais que simplesmente reproduzem o espectro normativo internacional.
Nesse sentido, reconhecendo-se a incorporação do direito internacional no ordenamento interno, e com o status já referido, percebe-se que tanto um quanto o outro podem fundamentar a justiciabilidade no plano judiciário interno, prevalecendo, inclusive, o critério de interpretação da primazia da norma mais favorável, tendo em vista que a nossa Constituição diretamente previu o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, CF), o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, CF), dentre outros princípios informadores da efetivação dos direitos fundamentais.
Aliás, alguns tratados até mesmo previram a possibilidade de se levar ao conhecimento de comissões, comitês e tribunais internacionais eventuais violações dos direitos previstos em seus textos.