NOTAS
[01] Agradeço o auxílio de Vinicius Diniz Vizzotto, advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS.
[02] MARQUES (1974).
[03] Ainda que o prejuízo direto ocorra em detrimento da parte ex adverso, sem desfalcar os cofres públicos, o prejuízo maior sempre será em desfavor da Administração do sistema judicial, porquanto o perito é auxiliar do juiz e tem compromisso com a verdade. Não há, evidentemente, estatísticas oficiais a respeito dessa espécie de transgressão, até porque o universo judicial ainda é bastante incipiente no trato de ilícitos internos com metodologia científica. Inexistem bancos de dados sobre laudos periciais anulados ou não homologados por ilicitude flagrante. Porém, existem abundantes experiências forenses, eventualmente reproduzidas na mídia, que revelam os gigantescos espaços discricionários de peritos e juízes, no manejo de suas competências. Pode-se arriscar uma hipótese: existe a sensação de que os laudos periciais ilegais não sofrem controles adequados, especialmente no âmbito do Direito Penal, Direito Administrativo Sancionador e até mesmo do Direito Civil lato sensu, no qual se amparam as ações de indenização por danos materiais e morais. Estamos, pois, numa daquelas áreas sintomaticamente desérticas, nas quais o olhar do intérprete propõe basicamente o óbvio, porém de maneira tendencialmente original ou originária. Esse talvez seja o papel que pretenda assumir aqui: o de suscitar discussão sobre tema raramente discutido publicamente, mas freqüentemente debatido na prática. Sobre a escassez de estatísticas na gestão pública brasileira, confira-se MEDINA OSÓRIO (2004), ocasião em que abordei algumas das principais dificuldades operacionais do Estado brasileiro, em qualquer de suas esferas, no âmbito da gestão interna, externa e estratégica. O tema da crise do sistema judicial pátrio foi ampliado e consideravelmente aprofundado em trabalho intitulado "’O novo sistema judicial brasileiro’: significantes e significados", em obra coletiva de Direito Administrativo que coordenei, em conjunto com Marcos Juruena Villela Souto, em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
[04] Trata-se de encarar a corrupção, do ponto de vista sociológico, como transgressão a regras ético-normativas, pela qual o agente público, aqui considerado lato sensu, busca satisfazer fins privados com o uso indevido de seus poderes decisórios. Essa é a definição adotada por organismos internacionais como Banco Mundial, Transparência Internacional ou Fundo Monetário Internacional, com pequenas e insignificantes variações. Essa definição está, também, na raiz histórica da corrupção enquanto fenômeno inerente à humanidade, como nos diz, num magistral trabalho, o italiano Luciano PERELLI (1999). Por tal razão é que o Direito Administrativo, enquanto conjunto de normas que regulam as atividades típicas da Administração, em qualquer de suas esferas, pressupõe o atendimento do interesse público em detrimento da satisfação dos interesses particulares dos agentes, consoante as clássicas lições de FAGUNDES (1957) ou CIRNE LIMA (1987). A expressão "corrupção" não é, na literatura especializada, normalmente, manejada no seu sentido penalístico, mas preponderantemente no sociológico ou no administrativo, como se pode perceber pela leitura de alguns importantes escritos de uma das maiores autoridades mundiais do assunto, como o é MENY (1997; 1996; 1993; 1992). A corrupção, nessa medida, é apenas uma das facetas da improbidade, estando longe de significar, ademais, enriquecimento ilícito (esta categoria é tão-somente uma das modalidades da corrupção). Essa é a orientação que se percebe em abundantes manifestações da Organização das Nações Unidas. Para não nos estendermos em demasia neste ponto, basta recordar do emblemático Código Internacional de Conduta para os Funcionários Públicos, aprovado pela ONU através da Resolução 51/59, de 12 de dezembro de 1996, disponível em <https://www.tc.cv/docs/Rev2.DOC >, sendo a data de acesso 20.10.2004. Deveres de diligência estão ali consagrados, o que supõe admissibilidade de infrações culposas, ao lado das clássicas transgressões dolosas que compõem o quadro normativo da corrupção pública. Consulte-se, a propósito, outro documento das Nações Unidas, confeccionado e aprovado posteriormente pela Assembléia Geral, no seu Quincuagésimo quinto período de sesiones, pela Tercera Comisión, como Tema 105 do programa, intitulando-se o documento: Un instrumento jurídico internacional eficaz contra la corrupción. A/C.3/55/L.5, 14 septiembre 2000. Anexo: Lista indicativa de instrumentos jurídicos internacionales, documentos y recomendaciones contra la corrupción. Indica-se a necessidade de criminalizar comportamentos corruptos e corruptores, bem assim criar ambientes institucionais saudáveis e transparentes, mas os conceitos manejados transcendem, largamente, os estreitos limites do Direito Penal. Num sentido similar andou, e vem andando, permanentemente, a União Européia, como se percebe no documento intitulado: Posición coordinada de la Unión Europea en lo tocante a la preparación de la futura Convención de las Naciones Unidas contra la corrupción y del Segundo Foro Global de Lucha contra la corrupción y promoción de la probidad. Bruselas, 28 febrero de 2001. 4. f.
[05] Sobre improbidade administrativa e seu contorno "bipolar" (apanha os extremos dos comportamentos patológicos dos agentes públicos, indo da inércia depressiva às ações mais agressivas contra o patrimônio público lato sensu), observa-se que estão reprimidas, na Lei 8.429/92, tanto as transgressões dolosas quanto culposas, sejam graves desonestidades, sejam intoleráveis ineficiências funcionais dos agentes públicos. A natureza jurídica das sanções cominadas aos ímprobos é de Direito Administrativo, sendo os respectivos processos punitivos regidos pelo Direito Administrativo Sancionador, no plano material. Essa foi construção que elaborei desde 1995 até 2003, ganhando o primeiro espaço internacional especificamente no trabalho que publiquei na Revista de Administración Pública, Centro de Estúdios Constitucionales, em Madrid, no ano de 1999, intitulado Corrupción y mala gestión de la res publica: el problema de la improbidad administrativa y su tratamiento en el derecho administrativo sancionador brasileño, conforme discriminado na referência bibliográfica. Naquela oportunidade, defendi as bases conceituais da improbidade disciplinada na Lei Federal 8.429/92, numa das mais prestigiadas Revistas de Direito Administrativo da União Européia, após haver exposto o trabalho no Seminário de Professores dirigido pelo Catedrático Eduardo García de Enterría. Essa tese, de qualquer modo, veio a ser defendida na Universidade Complutense de Madrid, para obtenção do título doutoral, e aprovada, summa cum laude, à unanimidade, pela Banca Examinadora, em junho de 2003, composta pelos Catedráticos Rubbio Lloriente; Jesús González Pérez; Lorenzo Martin-Retortillo Baquer; Ramón Parada; Manuel Rebollo Puig, na presença do orientador, professor Eduardo García de Enterría. Trata-se de um conjunto de trabalhos nos quais defendo, precisamente, essa essência do ato ímprobo: desonestidade e grave ineficiência funcional, com natureza jurídica definida e tutelada pelo Direito Administrativo Sancionador, culminando em trabalho no prelo de conhecida Editora, sob o título Teoria da Improbidade Administrativa, no qual busco sintetizar uma visão geral sobre o assunto. Cabe sinalizar, não obstante, que a rede de trabalhos produzidos, na década de 90, apontando exatamente essa "bipolaridade" da patologia aqui designada "improbidade administrativa", pode ser bem sintetizada nos artigos que colacionei e que vão aqui referidos pelas respectivas datas, obedecendo metodologia adotada, todos localizáveis nas referências bibliográficas. Confiram-se os trabalhos em MEDINA OSÓRIO (1997; 1997ª; 1998; 1998ª; 1999ª; 1999b; 1999c; 2000ª, 2000; 2002; 2003 e 2005). Vários podem e devem ser os instrumentos de controle e prevenção das patologias assimiláveis ao amplo conceito sociológico de "corrupção", o que se ajusta ao ideário da Lei Geral de Improbidade Administrativa editada em nosso país em 1992, equiparável a um Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros, de todos os entes federados e de todos os Poderes da República. Sobre o alcance desse verdadeiro Código Geral, reporto-me a MEDINA OSÓRIO (1997; 1998; 1999), ocasiões em que defendi, abertamente, a incidência dessa normativa para todos os agentes públicos, incluindo os agentes políticos, até mesmo autoridades do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo, membros do Ministério Público ou do Tribunal de Contas. Divergi, à época, da respeitada opinião, em sentido contrário, exposta por MELLO (1995), que chegou a ver, nessa legislação, apenas os atos administrativos ali enquadráveis.
[06] Segundo uma das primeiras lições dos autores que se debruçaram sobre o tema, a improbidade seria uma imoralidade administrativa qualificada, conforme se nota em PAZZAGLINI FILHO et alli (1996); FIGUEIREDO (2000); MELLO (1995) e MEDINA OSÓRIO (1997; 1998). Tal terminologia, apesar de pertinente, traduzia ambigüidade evidente, eis que nunca se expressou, com clareza, o que qualificaria a imoralidade administrativa, para que esta alcançasse o patamar da improbidade. Não obstante, penso que o grau mais acentuadamente grave de ilicitude, decorrente da gradação dessa espécie de transgressão no ordenamento jurídico, permite, em sintonia com os princípios da legalidade, tipicidade, culpabilidade e devido processo, todos inscritos na Constituição de 1988, uma compreensão adequada do que seria a imoralidade administrativa qualificada. Cuida-se de valorar as várias modalidades de imoralidade administrativa e encontrar o estágio preciso da improbidade, observados os parâmetros constitucionais e legais adequados.
[07] A defesa da aplicabilidade do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador aos atos de improbidade, com a incidência, inclusive, por simetria, das regras e princípios do Direito Penal, foi o produto de uma série de reflexões que venho lançando ao debate. Reporto-me aos trabalhos já citados em MEDINA OSÓRIO (2005; 2003; 2000; 1999). No Direito comparado, como referência fundamental, na construção conceitual da sanção administrativa, e pelo histórico apresentado, cito DELLIS (1997). A jurisprudência tem agasalhado, paulatinamente, a idéia de um Direito Público Punitivo para tutela da improbidade administrativa. Cito, para ilustrar sumariamente a tendência, este julgado do Tribunal de Justiça gaúcho: Ação de Improbidade Administrativa nº 70006051429. 22ª CÂMARA Cível. Relatora Desembargadora MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA. Assim ementado: "Ação de Improbidade administrativa. Prescrição. Decretação de ofício. Direitos Políticos. Suspensão". E o acórdão, reconhecendo o caráter punitivo da Lei de Improbidade, estabelece seu entendimento: "A ação de improbidade administrativa tem por escopo aplicar sanções ao agente ímprobo que invadem sua esfera pessoal, podendo sujeitá-lo, inclusive, à suspensão dos direitos políticos (art. 15, inciso V, da CR). Sendo a cidadania um dos fundamentos da República, a prescrição da ação de improbidade administrativa pode ser decretada de ofício, porquanto afeta direito indisponível". Disponível em: Data de Acesso: 09.11.2004.
[08] Confiram-se os dispositivos legais mencionados: "Art. 9. Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei (...) Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei (...) Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições (...)".
[09] A Lei Federal 4.617, de 29 de junho de 1965 (Lei da Ação Popular), em seu art. 2º, estabelece que "são nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar- se-ão as seguintes normas: (...) e) o desvio da finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência". Esse desvio de finalidade tem sido interpretado como desvio de poder. O verbo "visar", aqui, diz respeito ao conteúdo objetivo do ato. Por isso, se houver dissonância entre o ato e o fim previsto na regra de competência, implícita ou explicitamente, tem-se o desvio de poder, categoria mais ampla do que o desvio de finalidade stricto sensu. É possível identificar, portanto, desvio de poder com desvio de finalidade lato sensu. Relembre-se que o dispositivo da Lei da Ação Popular, datado da década de 60, deve ser atualizado em sintonia com a Carta Constitucional de 1988, na qual se consagram explicitamente os princípios da moralidade e eficiência administrativas, ambos determinantes de um enfoque objetivo na análise da correspondência entre os fins imanentes ao ato praticado e os fins objetivamente exigíveis na regra de competência. Essa atualização foi feita por BANDEIRA DE MELLO (1996; 2000), que adota a terminologia do desvio de poder. Confira-se, sobretudo, com um amplo exame do assunto, a monografia especializada de CRETELLA JÚNIOR (1997). No Direito comparado, por todos, com essa terminologia, leia-se CHINCHILLA MARIN (1999), adotando essa mesma noção de descompasso objetivo entre os fins inerentes ao ato produzido e os fins imanentes à regra de competência. No campo da improbidade, para uma erudita incursão nos princípios que presidem a Administração Pública e análise dos vícios imanentes aos atos administrativos produzidos sob a égide dessa espécie de conduta patológica, leia-se GARCIA e ALVES (2002), num trabalho que configura uma das maiores referências sobre o tema no Brasil. Na origem do princípio da moralidade administrativa, hoje estampado no art.37, caput, da Magna Carta, está, precisamente, toda uma jurisprudência do Conselho de Estado francês, que buscava reprimir condutas tipicamente enquadráveis nas categorias do desvio de poder, como se pode perceber pela leitura do clássico HAURIOU (1938; 1931).
[10] Ressarcimento ao erário não é sanção, mas simples restituição do estado anterior, como já o disseram RINCÓN (1989) e tantos outros, lição, esta, por mim adotada, como se lê em MEDINA OSÓRIO (2000; 2003; 2005).
[11] ÁVILA (2003) diagnosticou e elucidou com maestria uma distorção recorrente tanto no meio acadêmico quanto forense: a suposta prevalência dos princípios sobre as regras. Tal premissa traduziria inversão de valores, porquanto a regra tem maior grau de decidibilidade do que o princípio, precisamente porque ostenta funcionalidade mais diretamente ligada à definição e resolução do problema, enquanto o princípio está mais conectado à produção de um estado ideal de coisas. O nível de aproximação da regra ao caso concreto é, freqüentemente, muito mais intenso do que o do princípio. Daí por que não há a aludida e propalada prevalência dos princípios em detrimento das regras. O que há, isto sim, é uma atribuição de papéis diversos a essas espécies normativas. Devo dizer, nesse passo, que a regra se presta ao papel de tipificar diretamente atos ilícitos, observando cânones de segurança jurídica inerentes ao princípio da legalidade. Os chamados ilícitos atípicos, tratados por ATIENZA e MANERO (2000), v.g, desvio de poder ou de finalidade, abuso de direito, entre muitos outros, podem comportar concreção judicial a partir de princípios jurídicos. Todavia, ilícitos submetidos ao Direito Punitivo, cujas sanções transcendem a esfera das teorias das nulidades, reclamam intervenção estatal mediada por regras, ao abrigo da tipicidade das condutas proibidas, o que envolve a incidência dos princípios como normas viabilizadoras do processo interpretativo correto.
[12] Veja-se MEDINA OSÓRIO (2002), ocasião em que busquei enfrentar e rechaçar argumentos esgrimidos no sentido da suposta inconstitucionalidade da improbidade culposa.
[13] Sempre foi a tese de MARTINS JÚNIOR (2002).
[14] Ver MEDINA OSÓRIO (1999;2002). Esse dolo se diferencia do penal tão-somente em razão de estar ligado à tipicidade do Direito Administrativo Sancionador, a qual, nas relações de especial sujeição, como são estas disciplinadas na Lei 8.429/92, resulta mais abrangente e aberta, exposta a uma legalidade mais flexível. O dolo administrativo pressupõe, pois conhecimento e vontade, mas não se refere às figuras penais, e sim às figuras jurídico-administrativas.
[15] Sustentei essa tese logo na primeira edição da obra na qual lançava observações em torno à Lei 8.429/92. Confira-se em MEDINA OSÓRIO (1997), quando tracei paralelo com a ilegalidade abusiva constatada no julgamento de procedência de um mandado de segurança, destacando que tal juízo de procedência não acarretaria, automaticamente, reconhecimento de indícios de improbidade administrativa.
[16] Insisto que o regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, por ostentar aplicabilidade subsidiária e simétrica dos princípios e regras do Direito Penal, eis que ambos integram a categoria superior do Direito Punitivo constitucionalizado, acarreta maiores níveis de segurança jurídica ao trato da improbidade administrativa. Reporto-me, para o rastreamento dessa orientação, aos trabalhos estampados em MEDINA OSÓRIO (1999; 2000; 2003; 2005).
[17] Entre muitos autores que se poderia citar, na ilustração das profundas relações entre democracia, cultura republicana e responsabilidade dos agentes públicos, vale recordar dos seguintes: BÉJAR (2000); FERREIRA DA CUNHA (1998); FERNÁNDEZ RODRIGUEZ (1990); GARCÍA DE ENTERRÍA (1998); PASTOR e CARANÉS (1996). Pode-se notar que mesmo nas Monarquias Constitucionais contemporâneas, como é o caso da Espanha ou, em maior medida, da Inglaterra, vige uma "cultura republicana", sempre a exigir graus máximos de responsabilidade de todos os funcionários públicos.
[18] Embora não expresse concordância com todos os critérios classificatórios adotados pela autora, vale consultar o trabalho especializado de NICIDA GARCIA (2004), quando cuida da responsabilidade dos agentes públicos e algumas de suas tipologias. No tocante ao ato de improbidade, a autora busca uma categoria autônoma para fins de classificação, deixando de enfrentar a proposta teórica de enquadramento no Direito Administrativo Sancionador, o que não desnatura a importância de outras classificações corretamente adotadas no bojo da obra. O importante é reparar na variedade de esquemas classificatórios disponíveis.
[19] Confira-se o art.53 da Constituição Federal de 1988 (CF) e seus parágrafos. Vale observar a sociologia dessa imunidade e a contraditória aplicabilidade prática que vem ganhando. Ademais, a imunidade formal constitui um obstáculo perverso à apuração de responsabilidades, porquanto impede que o parlamentar seja processado sem a autorização de sua Casa de origem, mesmo que se trate de criminalidade comum. O ideário de proteção das funções acabou absorvido pela proteção às pessoas, em detrimento do princípio da responsabilidade. Cuida-se de distorção de conteúdo prático, mais do que normativo.
[20] A Lei Federal 8906/94, em seu art. 7º, § 2º, estatui: "O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer". Veja-se, sobre o tema, MEDINA OSÒRIO (1995). Penso que, à época, logrei desenvolver raciocínio que compatibiliza a imunidade com o princípio da responsabilidade, porque a conexão das palavras invioláveis com o exercício das funções representa o vínculo etiológico indispensável à garantia funcional. Sem essa conexão, evidentemente, o profissional estará buscando cobertura institucional para atos estritamente pessoais, inexistindo base para a imunidade. O mesmo raciocínio há de aplicar-se, todavia, a membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público, pois suas imunidades têm idêntica natureza: exigem conexão entre palavras orais ou escritas e o exercício idôneo das funções.
[21] Dotadas de prerrogativa de foro criminal, conforme os dispositivos constitucionais pertinentes, constam numerosas autoridades públicas, tais como prefeitos, juízes, membros do Ministério Público, presidente, vice-presidente, deputados federais, senadores, ministros do STF, procurador-geral da República, os ministros de Estado e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, Governadores dos Estados e do Distrito Federal, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União, além dos juízes federais. Vejam-se, a propósito do assunto, os arts. 29. X; 96, III; 102, I, (b), (c); 52, I; 105, I, (a); 108, I, (a), todos da CF.
[22] Há, também, níveis hierárquicos diversificados de agentes públicos. O princípio da responsabilidade pode ser visto desde uma vertente teórico-normativa ou sociológica. Para essa última, quanto mais alta a esfera em que se situe o agente público, ao contrário do que se poderia imaginar pela leitura dos manuais ou textos legais, mais difícil a concretização da responsabilidade. Para a vertente jurídica, os altos funcionários públicos devem ostentar elevadas responsabilidades, talvez as mais elevadas de todas; para a sociológica, eles são, como se sabe, os mais difíceis de serem alcançados, engrossando cifras ocultas de impunidade. Resulta necessário inverter essa lógica subversiva, redimensionando, no plano real, o próprio princípio da responsabilidade. Os mais importantes devem ser os mais cobrados; dos menos importantes, deve-se alimentar menos expectativas de cobranças. Ora, hoje em dia acontece exatamente o contrário. O princípio da responsabilidade sofre, assim, o impacto da desmoralização decorrente da impunidade.
[23] Leia-se MEIRELLES (1997). Dos agentes políticos são cobrados deveres funcionais teoricamente mais rigorosos, embora, na sociologia dos órgãos controladores, não se perceba uma vocação tão intensa à busca e cobrança dessas responsabilidades. É natural constatar significativos nichos de impunidade no universo dos agentes políticos.
[24] Conferir: art. 37, caput, CF – "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte" (...) § 6º "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Há vários mecanismos judiciais disponíveis, para apuração dessa responsabilidade: ações de ressarcimento; ações populares; ações civis públicas. Sem embargo, não é essa espécie de responsabilidade que se pretende abordar, embora esteja ela implícita na categoria analisada e possa ilustrar lacunas preocupantes nas escassas estatísticas oficiais do sistema judicial.
[25] A tese predominante na Europa, apesar da divergência de RINCÓN (1989), é a de considerar a sanção disciplinar como espécie de sanção administrativa. Tal é a orientação prevalente no Tribunal Constitucional Espanhol e é, precisamente, esta minha posição, como se lê em MEDINA OSÓRIO (2000), ocasião em que expus os fundamentos e os julgados que embasam a orientação aqui defendida, novamente sinalizada na 2ª edição da mesma obra (2005). Não preciso falar de outras esferas, igualmente importantes, como a da responsabilidade puramente política, curiosamente uma das mais polêmicas, viciada por numerosos problemas e, não obstante, eficaz no tocante aos objetivos a que se propõe: cassação de mandatos eletivos; produção de renúncias; e, em menor escala, tem-se ainda a cassação ou suspensão de direitos políticos. Tal instância, paradoxalmente, talvez seja a mais produtiva desde 1988, com relação aos altos cargos públicos. Esta instância não tem, todavia, competências intensas no trato da matéria objeto deste trabalho, porque não atinge, via de regra, juízes e peritos, salvo se houvesse uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar gigantescos esquemas fraudulentos, com envolvimento de parlamentares e outras autoridades. Há, também, a responsabilidade social, moral, que se submete, sobretudo, à força da opinião pública. Todavia, dependendo do agente público que estiver sendo acusado, pode haver esquemas mais ou menos eficazes de blindagem, geralmente costurados no campo empresarial. De qualquer modo, essa responsabilidade perante a opinião pública tem funcionado notavelmente, com bons resultados. As reportagens investigativas, produzidas com qualidade crescente, geram outras ações institucionais, não raro de parte do Ministério Público ou da Polícia, com o que os agentes públicos são melhor fiscalizados.
[26] Aliás, numa obra corajosa, TERÇAROLLI (2002) aponta a responsabilidade dos membros do Ministério Público por atos de improbidade. É verdade que, no plano material, a fundamentação do autor peca por não esquadrinhar os requisitos do ato ímprobo, confundindo algumas transgressões à legalidade – de duvidosa pertinência, diga-se en passant – com ofensa ao dever de probidade. Porém, o acerto maior do autor é, sem dúvida, posicionar o problema e apontar a possibilidade de os agentes do Ministério Público praticarem atos ímprobos, inclusive na concretização de atos típicos de suas funções institucionais. A mesma lógica se aplica aos juízes e peritos, evidentemente, estes últimos em maior medida.
[27] Sobre a interferência do laudo pericial na liberdade intelectual do juiz, observa-se o tratamento rigoroso da matéria. Não há dúvida de que ao perito corresponde o dever de veracidade na prática de seus atos de ofício, em medida mais intensa do que o normal, porque preenche ele lacuna no campo cognitivo direto do juiz, que nele confia, sendo, por isso, auxiliar da administração da justiça. "É que do perito se espera", como pondera DALL’AGNOL (2000), "quando menos, sejam suas informações fidedignas. Pode que se equivoque em uma vistoria, por exemplo, mas o que não se admite é que este equívoco nasça por imperícia, negligência ou imprudência. Provavelmente serão os dois primeiros elementos os que mais comumente se exibirão: o perito, em verdade, termina por demonstrar-se um imperito; ou, mesmo entendido sendo, em determinado ponto falha por não conhecer o que deveria. Ou não, não obstante a ciência, porta-se de modo desleixado, terminando por não informar o que devia ou informando o que não encontra sustento na realidade". A inabilitação para outras perícias é sanção que independe de prejuízo, visto que se conecta, em realidade, à quebra de confiança juiz-perito". Nessa linha de raciocínio, o perito, sendo um técnico, deveria conhecer suficientemente bem sua especialidade, sob pena de arcar com as responsabilidades devidas. Assim, arremata BARBI (1998): "Se, por deficiência desses conhecimentos, (o perito) informa de modo errado, agiu com falta de perícia que a função exige". O que são, enfim, as tais informações inverídicas prestadas pelo perito, que dão causa às sanções sumariamente descritas no art.147 do CPC? Como ponderam NERY JÚNIOR e ANDRADE NERY (2001), tratam-se de dados "fornecidos pelo perito que não correspondem à realidade dos fatos, bem como às configurações técnicas e científicas da área de conhecimento do perito. Também ocorrem quando o perito emprega fórmulas incorretas ou elementos inidôneos para chegar ao resultado da perícia". A infração é de natureza formal, independe de evento danoso. "Verificada a infração, o juiz proferirá decisão inabilitando o perito para o exercício de sua atividade, em processo judicial, por dois anos". O informar de modo errado caracteriza-se, pois, pela omissão ou afirmação errôneas, cujos conteúdos são naturalmente variáveis, abarcando fatos ou configurações técnicas ou científicas da área de conhecimento do perito. Quem informa apenas parcialmente, sem adentrar detalhes ou aspectos fáticos ou técnicos relevantes, desvirtuando e distorcendo o sentido do ato pericial, induzindo o julgador em erro, pode ser aqui enquadrado. Quem omite elementos necessários, abstraindo caminhos relevantes e idôneos na avaliação do objeto da peritagem, incorre na transgressão aqui ventilada, é dizer, fornece informação despida de veracidade, a qual não significa, pois, percentual absoluto de acerto, mas comprometimento com a plausibilidade. Um laudo veraz é aquele que reflete juízos técnicos fundamentados e alicerçados na Ciência e nos fatos, vinculado à pretensão idônea de plausibilidade. Pode-se contestar e até mesmo desconsiderar esse laudo, por razões amparadas em outros estudos técnicos, mas não deixará ele de ser veraz tão somente porque não fora acolhido pelo juiz. O laudo incorre nos vícios do art.146 do CPC quando resulta despido de plausibilidade ou verossimilhança científica, quando resulta ser fruto de culpa ou dolo do profissional responsável, por conta das distorções nele detectadas. Diferentemente, o laudo teratológico é o monstruoso do ponto de vista técnico ou científico. Cuida-se daquela aberração chocante, de um erro gritante e escabroso, absurdo e manifestamente intolerável. Teratologia expressa, sobretudo, o sentido de anormalidade em seus extremos. Na fisiologia, é o tratado ou história das monstruosidades orgânicas, o que rompe, de forma abrupta e violenta, o equilíbrio normal do corpo. Daí por que os laudos teratológicos, ao contrário daqueles contaminados apenas por dolo ou culpa, são viciados por falhas grosseiras, escancaradas, manifestas, o que implica uma valoração adicional em jogo. A teratologia pode ser produto de dolo ou culpa, mas agrega o elemento exterior da visibilidade ostensiva, sua marca peculiar. Erro grosseiro, nessa medida, é o engano facilmente constatável, visível de tal modo que o agente resta impossibilitado de justificar-se ou se desculpar quanto à verdade por ele falseada ou deturpada, voluntária ou involuntariamente.
[28] Confira-se DINAMARCO (2002).
[29] A propósito da responsabilidade do perito, DINAMARCO (2002) lembra que, como agentes públicos que são, "os auxiliares da Justiça devem atuar com impessoalidade, tanto quanto o juiz, uma vez que é público o serviço prestado e, quando no exercício de suas funções, é o Estado quem atua através deles. Conseqüência direta da impessoalidade é o dever de imparcialidade e correlata possibilidade de serem recusados pela parte, com fundamento em suspeição ou impedimento. Outra conseqüência da impessoalidade é que, pelos atos dos auxiliares da Justiça de qualquer categoria, quando realizados no exercício da função, responde o Estado objetivamente. Correlativamente, respondem eles perante o Estado sempre que haja sido ao menos culposa a conduta do causador do dano. O Estado responde inclusive pelos atos dos auxiliares eventuais como o perito, o intérprete, o arbitrador ou o conciliador, que não-obstante serem profissionais autônomos, na prestação do serviço para o qual são convocados exercem função estatal. A lei impõe ainda a responsabilidade civil dos auxiliares da Justiça perante a parte a quem hajam causado dano. Explicitamente, essa responsabilidade é atribuída ao escrivão e ao perito (CPC, arts. 144. e 147), ao depositário e ao administrador (art. 150) e ao intérprete (art. 153). Todavia, a responsabilidade civil extracontratual é categoria de direito substancial impondo-se a todos, o que conduz a concluir que todos os auxiliares da Justiça são responsáveis pelos danos que causarem. Eles são também possíveis sujeitos ativos de certos crimes próprios dos funcionários públicos, como a concussão, a corrupção passiva, a prevaricação etc. Os auxiliares eventuais, que não integram quadro algum, são sujeitos a regimes específicos em relação a suas responsabilidades, mas sem subordinação a regras estatutárias; pelo aspecto penal, eles podem ser sujeitos ativos daqueles mesmos crimes e ainda da falsa perícia etc". Convém lembrar, evidentemente, que a quebra da imparcialidade nem sempre resulta aferível no rol dos impedimentos ou suspeições, visto que este consagra causas apriorísticas de recusa do funcionário público. A parcialidade pode transparecer apenas e tão-somente no laudo pericial, em vista dos critérios adotados ou omitidos. Nesse caso, não há falar-se em preclusão de espécie alguma, mas de validade da impugnação tempestiva e oportunamente deduzida, a partir do instante em que o juiz ou a parte prejudicada tomar ciência do ato eivado de desvio de poder.
[30] Vale reparar no tratamento penal ao conceito de funcionário público, in verbis: art. 327. – "Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública § 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) § 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público". De outro lado, quanto à responsabilidade por crime de falsa perícia, falso depoimento como perito, veja-se o disposto no art. 342. – "Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa".
[31] O princípio do livre convencimento do Juiz, que o libera de vinculação estrita a laudos periciais, é consagrado tanto no Direito Processual Civil quanto no Direito Processual Penal, eis que pertence mesmo ao campo constitucional, no qual as autoridades judiciárias gozam de independência funcional. No campo do CPC, no art. 436, resulta estatuído que o "juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos", o que significa uma liberdade regrada e fundamentada, aliada a uma responsabilidade pela admissão de laudos ilícitos ou abusivos. Consulte-se, a propósito do assunto, OLIVEIRA (1999).
[32] O VII Congresso Internacional de Direito de Danos, ocorrido em Buenos Aires, no período de 2, 3 e 4 de outubro de 2002, em sua comissão nº 9, intitulada de "Responsabilidade dos profissionais do direito", chegou às seguintes conclusões no que toca aos peritos judiciais: "I. Responsabilidad de los peritos 11. El perito judicial presenta un doble carácter: es un profesional y un auxiliar de la Justicia. Como profesional debe respetar la lex artis y como auxiliar de la Justicia el encargo judicial y las normas procesales.- 12. La responsabilidad del perito, auxiliar de la Justicia, es extracontractual. En cambio, la del consultor técnico o perito de control, es contractual. En el primer caso puede generar la responsabilidad del Estado, en el segundo no.- 13. En principio la responsabilidad del perito judicial está enmarcada dentro del anormal funcionamiento de la Justicia, y excepcionalmente, cuando haya sido causa o concausa adecuada del error del juez, en el ámbito del error judicial". Disponível em: https://www.aaba.org.ar . Data de Acesso: 10.11.2005. Na mesma senda, o Conselho Profissional de Ciências Econômicas de Córdoba, em curso de capacitação para peritos judiciais desenvolvido em 2004, Módulo I, de 20 de agosto de 2004, estabeleceu as seguintes obrigações aos peritos judiciais: "Las obligaciones judiciales del perito: - Razonabilidad: brindar los fundamentos de hecho y científicos que sustentan el informe. - Congruencia: guardar relación entre las premisas y conclusiones. - Buena fe: no llevar a engaño a las partes o al juez. - Diligencia: presentar el informe en el plazo fijado por el juez." Disponível em https://www.cpcecba.org.ar/ Data de Acesso:10.11.2005.
[33] Leia-se o histórico produzido por SOUZA LASPRO (2000), o qual posiciona a responsabilidade dos magistrados já no Direito Romano, alastrando-se como fonte de evolução dos mais diversos ordenamentos jurídicos. Na Espanha e em Portugal, influenciados por essa tradição, configurou-se como infração do magistrado não apenas a clássica hipótese de enriquecimento ilícito, mas também as hipóteses nas quais houvesse denegação indevida de direitos, exigindo-se, ainda, prudência do julgador.
[34] Ver MEDINA OSÓRIO (1997;1998; 1999).
[35] Nesse sentido é o pensamento de NIETO (2005).
[36] Tais noções estão expressas em FRANÇA (1980:124-130), através das contribuições de Macedo e Cretella Júnior. Também não é outro o sentido expresso na obra de GONZALEZ PÉREZ (1999; 1996; 1995), no tocante à moralidade que há de presidir a Administração Pública, o que implica vínculos de lealdade.
[37] É o que se colhe das lições clássicas de HAURIOU (1931;1938), sendo importante registrar as conexões da deslealdade com a imoralidade administrativa.
[38] GARCÍA DE ENTERRÍA (1998) pôs enorme ênfase na idéia de "confiança" ou "trust" nas relações entre administradores e administrados, abrindo espaço, justamente, para o fortalecimento de uma teoria sobre lealdade institucional, abarcando uma série de deveres públicos, ao tratar dos novos paradigmas de controle da Administração Pública britânica, a raiz do famoso Relatório "Nolan".
[39] O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo disciplina com rigor normativo este assunto. Esse órgão editou o Provimento CSM no. 797/2003, considerando, no seu próprio discurso, que o interesse público recomenda a adoção de mecanismos de controle de nomeação e atuação de peritos judiciais e outros profissionais técnicos nas Varas e correspondentes Ofícios da Justiça de todo o Estado, bem assim na segunda instância, especialmente para prevalência da moralidade e da transparência dos atos judiciais. Como se vê, o ato pericial é considerado, no que toca sua funcionalidade instrumental, essencial ao ato jurisdicional. O documento da Justiça de São Paulo, em seus "considerandos", levou em conta que deve ser preservada a independência intelectual dos Magistrados, essencial ao relevante desempenho de suas funções. Os dispositivos processuais invocados na fundamentação desse Provimento foram os artigos 138, incisos III e IV e §§; 139; 145 a 153; 218, § 1º; 422 a 424; 434; 842, § 3º; e 990, VI do Código de Processo Civil e nos artigos 60, §§ 2º a 4º; 66; 67; 170 e 171 da Lei de Falências. É claro que caberia investigar, no plano institucional, quais os resultados da fiscalização correicional empreendida pelo Judiciário paulista nessa seara. Cabe aplaudir, no entanto, desde logo, a normativa editada na esfera administrativa.
[40] O Código de Ética Profissional do Contabilista – CEPC, aprovado pela Resolução CFC número 803, de 1996, do Conselho Federal de Contabilidade, contém significativo conjunto de deveres e proibições a esses profissionais, enquanto exercentes de atividades que, freqüentemente, consubstanciam a produção de laudos periciais. Destacam-se algumas obrigações que comportam transgressões de diversas índoles, revelando-se como referências válidas para profissionais que exerçam atividades similares. Entre os deveres desses profissionais da contabilidade está o de exercer a respectiva atividade com zelo, diligência e honestidade, atributos que comportam infrações dolosas ou culposas, observada a legislação vigente e resguardados os interesses de seus clientes e/ou empregadores, sem prejuízo da dignidade e independência profissionais. Os interesses da sociedade devem ser levados em conta, especialmente quando, nas perícias judiciais, é justamente ela a principal destinatária dos serviços profissionais dos contadores ou contabilistas. Também estão obrigados esses profissionais a zelar pela sua competência exclusiva na orientação técnica dos serviços a seu cargo, o que remete à obrigatória vinculação a preceitos de ordem técnica. Consta a proibição de o sujeito auferir qualquer provento em função do exercício profissional que não decorra exclusivamente de sua prática lícita ou de concorrer para a realização de ato contrário à legislação ou destinado a fraudá-la ou praticar, no exercício da profissão, ato definido como crime ou contravenção. Cuida-se de conjunto amplo de restrições. Ademais, é proibido ao contabilista solicitar ou receber do cliente ou empregador qualquer vantagem que saiba para aplicação ilícita, bem assim resulta terminantemente proibido prejudicar, culposa ou dolosamente, interesse confiado à sua responsabilidade profissional. Lembre-se que tal interesse, em se tratando de atividade pericial, é o da própria sociedade, maior destinatária de uma máquina judiciária isenta e independente, predicados indissociáveis da liberdade intelectual dos juízes e demais atores públicos.De igual modo, o profissional contabilista ou contador não pode iludir ou tentar iludir a boa fé de cliente, empregador ou de terceiros, alterando ou deturpando o exato teor de documentos, bem como fornecendo falsas informações ou elaborando peças contábeis inidôneas. Eis aí um conjunto de rótulos bastante gerais, nos quais cabe situar condutas dolosas ou culposas. O contador, quando perito, assistente técnico, auditor ou árbitro, deverá recusar sua indicação quando reconheça não se achar capacitado em face da especialização requerida; abster-se de interpretações tendenciosas sobre a matéria que constitui objeto de perícia, mantendo absoluta independência moral e técnica na elaboração do respectivo laudo; abster-se de expender argumentos ou dar a conhecer sua convicção pessoal sobre os direitos de quaisquer das partes interessadas, ou da justiça da causa em que estiver servindo, mantendo seu laudo no âmbito técnico e limitado aos quesitos propostos; considerar com imparcialidade o pensamento exposto em laudo submetido a sua apreciação; mencionar obrigatoriamente fatos que conheça e repute em condições de exercer efeito sobre peças contábeis objeto de seu trabalho; abster-se de dar parecer ou emitir opinião sem estar suficientemente informado e munido de documentos. O rol de restrições não se esgota nesse Código Ético, porque emerge da legislação aplicável à administração da justiça, bem assim da própria normativa administrativa editada pelo órgão de administração superior do Poder Judiciário. Porém, tem-se, aqui, um sinal eloqüente do conjunto de deveres, tanto de honestidade quanto de diligência, exigíveis de profissionais que, muito freqüentemente, estão chamados a atuar na condição de peritos judiciais. É certo que esses mesmos deveres devem ser cobrados de outros profissionais, ainda que não pertençam à categoria dos contabilistas ou contadores, quando exerçam atividades afins, no bojo do sistema judicial. É o caso dos advogados que atuam como peritos judiciais na fixação de honorários discutidos em juízo. Tal tarefa é, em todos os aspectos relevantes, idêntica a dos contadores ou contabilistas que estudam e arbitram valores relativos a problemas controversos em juízo. Embora os advogados tenham sua própria esfera disciplinar e estejam expostos, irremediavelmente, à normativa editada pelo Poder Judiciário, além das normas de Direito Processual Civil e de Direito Penal, é certo que a disciplina ética aqui mencionada serve como referência interessante na compreensão do alcance da Lei 8.429/92.
[41] Ilícitos culposos e dolosos ficam mais próximos no contexto das visões funcionalistas que permeiam o Direito Punitivo contemporâneo, como se vê pelo pensamento de JAKOBS (1995) no Direito Penal. A preocupação primordial com a funcionalidade geral do sistema punitivo da improbidade, em detrimento de visões substantivadas tão-somente na proteção dos valores puramente morais ou pessoais inerentes às atitudes intencionais ou não intencionais (e negligentes), é uma característica que tem preponderado nos modelos penais e administrativos sancionatórios, senão no campo teórico, certamente no terreno do Direito dos juristas. A primitiva obsessão pelo compromisso com a proteção exclusiva da intencionalidade das condutas, no lugar de focar seus resultados e os deveres objetivos exigíveis das pessoas, marcadamente nas relações de especial sujeição que o Estado mantém com seus servidores, não tem cabimento no bojo do sistema de Direito Administrativo Sancionador. Este é um sistema claramente aberto aos mais variados conteúdos, muitos derivados da normativa constitucional, mas é igualmente comprometido com o desempenho de funções punitivas às transgressões do dever de probidade administrativa. Quando se trata de peritos, cuida-se de avaliar o resultado da peritagem e os sinais exteriores de ilicitude comportamental, em detrimento de investigações infinitas sobre a subjetividade humana. É claro que existem causas de isenção da responsabilidade subjetiva, mas estas não se integram no processo hermenêutico de forma rígida, de tal sorte a impedir uma apreciação razoável da conduta diante da legislação.
[42] Sobre o elemento subjetivo do desvio de poder, reporto-me novamente a BANDEIRA DE MELLO (2000), o qual aponta a predominância da natureza objetiva dessa espécie de transgressão.
[43] Como diz MONTEIRO (1990:272), a repetição de uma perícia só pode ocorrer excepcionalmente, sendo ela uma prova de suma importância. Dentre as hipóteses previstas como idôneas para ensejar uma obrigatória repetição de perícia, o autor recorda de situações dolosas e culposas, indistintamente. Assinala, assim, os seguintes vícios: (a) erro do laudo oficial em questão relevante para a causa; (b) dolo do perito judicial; (c) incapacidade técnica do perito do juízo; (d) parcialidade do perito; (e) não ter sido a matéria suficientemente esclarecida. Mais adiante, o autor analisa a figura do "perito inidôneo ou incapaz". "A responsabilidade civil, profissional, moral e penal dele exige que seja idôneo, capaz e experiente, além de legalmente habilitado". A idoneidade vem atestada formalmente pela ausência de antecedentes desabonatórios. Porém, a capacidade técnica vem afirmada na praxe forense. O perito que é incapaz, técnica e profissionalmente, ou, ainda, o tendencioso, faccioso e parcial (o que produz laudo conforme a parte que mais lhe agrada), segundo o mesmo autor, deve ser destituído ex officio e fundamentadamente pelo magistrado. A perícia realizada por essa espécie de perito deve ser desconsiderada e desentranhada dos autos, mandando o juiz que se renove o ato. O laudo do perito inidôneo ou incapaz não pode ser aproveitado. Deve o perito devolver toda e qualquer verba honorária recebida. Outra é a situação de suspeição do perito, que deve ser argüida incidentalmente, com o devido processo legal. Repare-se que este autor não maneja conceitos atrelados exclusivamente a figuras dolosas. E seu raciocínio deixa claro, ademais, que o perito despreparado pode ser também o tendencioso. Este último, em qualquer caso, não procura, necessariamente, enriquecimento ilícito. Pode ser um sujeito simplesmente parcial, que se agrada de uma das partes e desagrada de outra, pendendo sua balança – não importa a razão – para um dos lados. Tal postura, longe de ficar distante da realidade, pode ostentar motivações bastante variadas, desde aquelas de ordem ideológica (o perito quer promover redistribuição de rendas e erradicar a pobreza com seu trabalho), até aquelas que resultam impregnadas de concepções revestidas do véu da ignorância (o perito busca ajudar uma das partes porque seu despreparo intelectual não lhe permite compreender as razões da outra e sua preguiça ou desídia obstaculizam um acesso qualificado ao conhecimento em causa).
[44] Se na improbidade devemos exigir dolo ou culpa grave, no mínimo, para reconhecer suporte à responsabilidade do agente, outro é o tratamento à esfera processual civil de sancionamento judicial, eis que dolo ou culpa, tout court, é o que basta para responsabilizar o perito por infração ao art.147 do Código Processual Civil. Não se trata, sequer, da culpa grave, no tocante à sanção diretamente imponível pelo juiz do processo no qual o perito obra dolosa ou culposamente. Diz, a propósito, PONTES DE MIRANDA (2000): "Se o perito, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas (comunicações de conhecimento falsas), é responsável pelos prejuízos que causar à parte, fica inabilitado, por dois anos, a funcionar noutras perícias e incorre nas penas que o direito penal estabeleça (....). Informações inverídicas são as comunicações de conhecimento em que há infração do dever de verdade. Basta a culpa para que incida o art.147. Dolo ou culpa, lê-se no Código de 1973. No de 1939, art.131, par.1º, falava-se de dolo ou culpa grave. Não basta a divergência de opiniões ou de pareceres para se dizer que as informações são inverídicas. Se o perito, intencionalmente, algo apontou de inverídico, ou mesmo apresentou dados que não correspondem à realidade, dolosamente atuou. Se somente houve culpa, a lei estabelece o mesmo tratamento. Compreende-se isso, porque se trata de pessoa de que se espera pleno conhecimento da matéria. A responsabilidade é pelos danos causados à parte ou às partes e outras pessoas que constem do processo. Quer tenha havido danos, quer não, há a sanção de inabilitação temporal. A vedação não só se relaciona com o juízo em que ocorreu a informação inverídica; é para qualquer juízo. Além disso, há a lei penal, a que remete o art.147". Dolo e culpa andam juntos. Categorias aproximadas na perspectiva funcional do sistema processual civil. Isso, porque do perito se exigem deveres mais enérgicos, conhecimentos especializados. A inabilitação, por seu turno, é uma sanção que independe, logicamente, das sanções penais cabíveis, mas transcende, além disso, eventuais sanções disciplinares que o órgão corporativo de origem do perito resolva por bem aplicar. Não parece inútil lembrar que as sanções cominadas aos atos de improbidade, revestindo-se de status judicial e disciplinadas pelo Direito Administrativo, independem, de igual modo, das demais medidas sancionatórias aplicadas ao caso, nos termos do próprio art.37, par.4º, da Magna Carta.
[45] Veja-se FRANÇA (1980:473) e o tópico comentado por Silvio de Macedo. Sem discrepar desta idéia, consultem-se AULETE (1968:2085), este numa perspectiva mais sintética, e DE PLÁCIDO E SILVA (1984:391), o qual sinaliza a noção de bons procedimentos ou dos costumes e hábitos conforme a moral.
[46] Especificamente no tocante ao problema do excesso de poder, a fronteira com a desonestidade criminosa pode ser tênue, ao mesmo tempo em que se há de reconhecer espaços autônomos aos ilícitos penal, administrativo e cível. Trata-se de um dilema que ocupa a pauta de preocupações também do Direito comparado, como se pode notar em PAGLIARO (1998; 1999) e toda a literatura italiana que se debruça sobre as diferenças entre o crime de abuso de ofício e o ilícito associado ao excesso de poder. A tipificação penal, normalmente, adota técnicas mais rígidas de controle social, denotando, ao abrigo de uma estreita tipicidade formal, a sinalização da conduta proibida. No Direito Administrativo que tutela relações de especial sujeição, ao contrário, o ideário e a elasticidade das normas punitivas são distintos, podendo abrigar uso mais abundante de termos jurídicos indeterminados, desde que, é certo, haja respeito pelos cânones do devido processo legal, em sintonia com as exigências de segurança jurídica e racionalidade do poder punitivo do Estado.
[47] Esse é o conceito de honestidade profissional que se recolhe da idéia de moral fechada, consoante a lição de MOREIRA NETO (1992) ou os clássicos comentários de HAURIOU (1931; 1938) à jurisprudência do Conselho de Estado francês, abordando modalidades de honestidade profissional, dentro da idéia de ética institucionalizada e restrita ao setor público, no embasamento do princípio da moralidade administrativa.
[48] Numa visão restritiva da Lei 8.429/92, MELLO (1995) chegou a sustentar que o juiz que vende sentença não estaria enquadrado nos ditames da Lei de Improbidade, porquanto esta alcançaria apenas os atos tipicamente administrativos. A posição por mim assumida, desde o início, foi em sentido diverso, como se vê em MEDINA OSÓRIO (1997; 1998), eis que sustentei, desde logo, a aplicabilidade da Lei aos juízes, parlamentares e todos os agentes públicos, inclusive no tocante aos atos típicos, tese que posteriormente acabou prevalecendo.
[49] Repare-se no acórdão da 2ª C.Cível do extinto Tribunal de Alçada gaúcho, Relator o então Juiz de Alçada Clarindo Favretto, de 15 de junho de 1989, citado por BUSSADA (1994:292 et sequ).
[50] FRANÇA (1979:230).
[51] Produto da ineficiência, em grau acentuado, é a chamada teratologia, a "monstruosidade" jurídica ou administrativa, que reflete um ato deturpado em sua essência, seja no conteúdo, seja na forma exterior.
[52] Refiro-me, naturalmente, aos dispositivos do art.9º da Lei 8.429/92.
[53] Sabino CASSESE (1992; 1993) é um dos maiores especialistas no trato da má gestão pública. Sua experiência, na Itália e na União Européia, o avalizam como um dos grandes teóricos e estudiosos do assunto. Dele emergem preciosas lições sobre as nefastas conseqüências dos ambientes descontrolados, infectados por ineficiência crônica, precisamente no sentido de configuraram terreno fértil às práticas desonestas. Quando maior o grau de descalabro administrativo, falta de transparência e descontrole, maiores as oportunidades para a concretização de atos corruptores e corruptos.
[54] Imperioso valorizar o princípio da imparcialidade dos peritos, enquanto agentes públicos, eis que tal atributo, longe de pertencer ao campo puramente teórico do Direito Administrativo, reclama intervenções contundentes dos operadores jurídicos, em busca de uma densidade real, e não meramente fictícia. Sobre este tema, a leitura de ALLEGRETTI (1965) e MELLO RIBEIRO (1996) bem revela um conjunto de conseqüências imanentes ao dever de imparcialidade, não se resumindo à esfera das normas explícitas no sistema. É possível reconhecer normas implícitas ou imanentes ao princípio da imparcialidade, no Brasil designado como impessoalidade, entrelaçado com a eficiência, a moralidade, a legalidade e a publicidade administrativas (art.37, caput,CF). Quer-se a otimização do princípio da eficiência do sistema judicial e tal desiderato só é possível, no contexto aqui examinado, se as perícias forem qualificadas. Cálculos complexos devem ser efetuados por profissionais isentos e gabaritados, o que significa que não podem ostentar interesses, sequer indiretos, na causa ou em causas semelhantes. Os controles começam, pois, no momento da seleção do perito, mas perduram por todo o processo e resultam limitados, noutras esferas, por prazos prescricionais da respectiva pretensão punitiva do Estado, tal como ocorre com a Lei 8.429/92. A imparcialidade administrativa não é, portanto, um atributo abstrato, que se exija apenas no inesgotável universo da moralidade subjetiva do agente. É necessário, dentro das alternativas disponíveis, optar pela nomeação de peritos que não mantenham vínculos ou interesses secundários, indiretos ou profissionais, com a jurisprudência que possa emergir de suas deliberações técnicas. Quando esse tipo de nomeação ocorrer, será imprescindível intensificar os controles sobre o trabalho pericial. A densidade e a eficácia do princípio da imparcialidade administrativa depende, em grande medida, da razoabilidade empregada no processo hermenêutico. Ser imparcial não equivale a ser despido de valores e concepções, mas traduz, necessariamente, uma posição objetivamente eqüidistante dos interesses em jogo, tanto no plano dos impedimentos e suspeições, verificáveis dentro de prazos exíguos no processo, quanto no terreno de outras circunstâncias menos evidentes, só aferíveis a partir do instante em que vem à tona o ato pericial. Assim, certos problemas, por sua natureza, permitem que se reconheça, prudentemente, uma apriorística tendência do perito para valorizar algumas posições em detrimento de outras. Essa tendência pode assumir conotações corporativas, ideológicas ou até mesmo pessoais, dependendo de um exame particularizado. Um bom exercício lógico pode ser útil nesse tipo de análise. O aprofundamento analítico depende de um percuciente exame do caso concreto e do padrão comportamental do perito e do juiz que eventualmente respalde, modo sistemático, posições viciadas por desvio de poder.
[55] Recomendável, sobre a dimensão funcional do Direito Penal e a aproximação entre ilícitos culposos e dolosos, na perspectiva da vigência da norma sancionadora, a leitura da obra de JAKOBS (1995). Sobre a liberdade de conformação legislativa dos ilícitos, ainda que se considerem os limites relativos às teorias dos bens jurídicos, não se pode negar a existência de amplos espaços discricionários do legislador, circunstância a aproximar ilícitos culposos e dolosos, penais e administrativos. A gravidade das infrações e das sanções é fixada pelo Poder Legislativo, mostrando-se difícil, senão impossível, acatar qualquer espécie de ontologia para fins de fixar patamares hierárquicos rígidos. Não é por outra razão que as fronteiras entre ilícitos penais e administrativos são igualmente tênues, como se percebe na literatura consagrada em torno ao Direito Administrativo Sancionador e ao Direito Penal, tendo-se por referências os escritos de NIETO (1994), CEREZO MIR (1998) e RINCÓN (1989).
[56] A interdição à arbitrariedade é um preceito constitucional comum aos países civilizados, como anotou oportunamente FERNÁNDEZ RODRIGUEZ (1990). Sobre a importância das decisões jurídicas serem ao menos vocacionadas à universalidade, caberia lembrar que se trata de avaliar o parâmetro da fonte das normas. Sendo as decisões judiciais fontes de normas, como diz ÁVILA (2003), percebe-se a necessidade de que seu comprometimento intrínseco seja com a isonomia e a racionalidade, através de metodologias hermenêuticas e respeito ao sistema. Tal assertiva se aplica, muito especialmente, aos laudos periciais, enquanto instrumentos auxiliares na formação do entendimento jurisdicional, o qual há de primar pela independência intelectual e cognitiva. As normas devem ser gerais e abstratas; por isso, os dispositivos nascem gerais e totalmente abstratos (às vezes, nem tanto), bem assim os juízes são dotados de independência e predicados de imparcialidade; por tal razão, ainda, juízes devem ater-se aos precedentes ou aos textos constitucionais ou legais, enquanto referências gerais e abstratas, para não caírem na vala do subjetivismo arbitrário. As normas que nascem da resolução dos casos concretos, portanto, em sua essência, também devem ostentar essa mesma pretensão à universalidade, nos casos análogos, sob pena de perderem o referencial de legitimidade isonômica e racional. As exceções devem ser fartamente fundamentadas, de modo transparente, assumindo idênticas pretensões à universalidade, dentro de seus parâmetros estreitos, como regras de exceção. Nesse sentido, pode-se consultar ALEXY (1997).
[57] Repare-se que o desvio de poder ocorre, nos dizeres de BANDEIRA DE MELLO (2000), quando o agente busca finalidade alheia ao interesse público, v.g, perseguindo inimigos ou beneficiando amigos ou a si próprio, através do manejo indevido de seus poderes. Também se dá o mesmo vício quando o agente busca finalidade de interesse público, porém alheia à categoria competencial do ato praticado. Assim, não importa que a diferente finalidade com que tenha agido o sujeito seja moralmente lícita. E prossegue o administrativista dizendo que ambas as modalidades mencionadas podem ser encontradas nos atos judiciais. É que, embora seja construída em torno de conceitos de Direito Administrativo, a teoria do desvio de poder é plenamente aplicável aos atos por todos os Poderes. Essa teoria aplica-se aos agentes públicos que exorbitem de suas competências, exercitando os poderes que o ordenamento jurídico lhes confere para atingir fins estranhos aos estabelecidos na regra de competência. Nessa direção abrangente sinalizou, de forma precursora, FAGUNDES (1957). O perito que pretender, pois, redistribuir renda com o juiz por instrumento, em vista de suas convicções ideológicas e seu espírito "humanitário", poderá incorrer na Lei 8.429/92.
[58] Como se lê em MEDINA OSÓRIO (2005), os órgãos de controle e correição disciplinar, entre os quais se incluem os de fiscalização profissional, são os que poderiam, teoricamente, fiscalizar mais de perto as atividades estreitamente ligadas às funções desempenhadas pelos sujeitos, mas as dificuldades na operacionalização dessa espécie de responsabilidade administrativa são numerosas. Existe baixa juridicidade nesses processos sancionatórios, sendo tímidos os resultados, quando não há, pura e simplesmente, proliferação de abusos. As estruturas desses órgãos nem sempre coincidem com as elevadas expectativas sociais. Patologias ligadas a corporativismos e protecionismos interna corporis repercutem na frustração de legítimas demandas da sociedade, ocasionando altos índices de impunidade e baixas taxas de controle. É possível acionar, pois, outros canais competentes em busca de responsabilidades, simultaneamente. A via disciplinar é apenas um dos caminhos disponíveis e, ainda assim, talvez o mais tímido deles. Peritos que exerçam profissões de médicos, engenheiros, contadores ou advogados são passíveis de fiscalização por suas entidades de origem, as quais ostentam numerosas prerrogativas sancionatórias, passíveis de exercício no contexto de um Direito Administrativo Sancionador turbinado, sempre que vierem, em razão dessas funções, a cometer ato ímprobo através de laudo pericial viciado por dolo ou culpa grave. Então, as instâncias, nesse caso, podem ser acionadas simultaneamente, na tutela da probidade administrativa: a penal; a de reparação dos danos; a administrativo-disciplinar; a administrativo-judicial da ação civil pública. Trata-se de normas que integram o curioso espectro do Direito das responsabilidades.
[59] A Administração do Judiciário do Estado de São Paulo resolveu, como já se disse, em 13 de março de 2003, estabelecer, no Provimento do Conselho Superior da Magistratura (CSM) no. 797/2003, uma série de obrigações, poderes e sujeições dos peritos ao controle do Poder Judiciário, alcançando a prestação de serviços por peritos, tradutores, intérpretes, administradores, liquidantes, comissários, síndicos, inventariantes dativos e outros auxiliares não funcionários na Justiça Estadual. Segundo esse Provimento, caberá ao profissional nomeado pela primeira vez a apresentação, ao respectivo Ofício de Justiça, no prazo de dez dias, de sua qualificação pessoal e de uma série de documentos, inclusive outros a critério do juiz, renováveis periodicamente e sempre que houver alteração na titularidade da Vara, comprovando dados atinentes à integridade (ausência de certidões criminais positivas), quanto da competência técnica. Os documentos passam a integrar acervo passível de controle pela Corregedoria-Geral da Justiça, que monitora os honorários periciais, e pelas partes, justificadamente. Em caso de nomeação de estabelecimento oficial, nos termos do artigo 434 do Código de Processo Civil, sem identificação do perito, deverá o juiz comunicar ao estabelecimento nomeado a proibição de atuação de profissional que tenha parentesco sangüíneo, por afinidade ou civil com o juiz ou servidor da unidade judicial de origem do pedido, bem como de profissional que tenha sofrido punição administrativa ou penal em razão do ofício, submetendo-se ao juiz eventuais dúvidas. O juiz informará à Corregedoria Geral da Justiça e a todos os magistrados da Comarca os nomes dos profissionais nomeados e comunicará inabilitações e punições, com cópias dos respectivos atos. Ao final da fase instrutória de ação em que tenha havido perícia ou outro trabalho técnico que não o de contador do Juízo, o diretor do Ofício Judicial informará à Corregedoria Geral da Justiça o (s) nome (s) do (s) profissional (is) que tenha (m) atuado e a remuneração fixada pelo juiz. A remuneração de perito, intérprete, tradutor, liquidante, administrador, comissário, síndico ou inventariante dativo será fixada pelo juiz em despacho fundamentado, ouvidas as partes e, se atuante, o Ministério Público, à vista da proposta de honorários apresentada, considerados o local da prestação de serviços, a natureza, a complexidade, o tempo necessário à execução do trabalho e o valor de mercado para a hora trabalhada, sem prejuízo do disposto no artigo 33 do Código de Processo Civil. Tais disposições aplicam-se, no que couberem, aos Tribunais e Colégios Recursais do Poder Judiciário do Estado.
[60] Tive oportunidade de referir mais profundamente essa crise endêmica do sistema punitivo noutro lugar. Confira-se: MEDINA OSÓRIO (2005).
[61] Segundo a Lei Geral de Improbidade, em seu art. 13, "a posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração dos bens e valores que compõem o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente § 1° A declaração compreenderá imóveis, móveis, semoventes, dinheiro, títulos, ações, e qualquer outra espécie de bens e valores patrimoniais, localizado no País ou no exterior, e, quando for o caso, abrangerá os bens e valores patrimoniais do cônjuge ou companheiro, dos filhos e de outras pessoas que vivam sob a dependência econômica do declarante, excluídos apenas os objetos e utensílios de uso doméstico. § 2º A declaração de bens será anualmente atualizada e na data em que o agente público deixar o exercício do mandato, cargo, emprego ou função. § 3º Será punido com a pena de demissão, a bem do serviço público, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, o agente público que se recusar a prestar declaração dos bens, dentro do prazo determinado, ou que a prestar falsa.§ 4º O declarante, a seu critério, poderá entregar cópia da declaração anual de bens apresentada à Delegacia da Receita Federal na conformidade da legislação do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza, com as necessárias atualizações, para suprir a exigência contida no caput e no § 2° deste artigo".
[62] Na tipificação do crime de falso testemunho ou falsa perícia, o Código Penal foi enfático, embora deixando aberta a via larga da retratação, no art. 342, in verbis: "Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001) . Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.§ 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001) § 2º O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001) ". Se tomarmos como paradigma o funcionalismo de JAKOBS (1995), a tipificação e punição do crime de falsa perícia tem por objetivo assegurar a vigência geral da norma relativa à lisura e probidade dos peritos, os quais não podem abdicar dos elevados deveres públicos de colaboração com a máquina judiciária e proteção à liberdade intelectual dos juízes. No entanto, o legislador penal ficou centrado nos aspectos pertinentes à corrupção em sentido amplo, alcançando modalidades transgressoras manchadas pela desonestidade funcional. No plano da Lei 8429/92 e, em maior medida, do próprio art.146 do CPC, vê-se novamente a vocação à proteção da vigência das normas que presidem a probidade dos funcionários públicos, agora especialmente reforçada quanto aos peritos, como traço inerente à funcionalidade desse sistema punitivo e disciplinar. Daí por que a probidade ganha o colorido peculiar da eficiência funcional mínima, tanto na Lei Geral de Improbidade, quanto na regra processual que assegura ao juiz atribuição para sancionar com pena de inabilitação o perito inidôneo.
[63] A rejeição à prerrogativa de foro foi ponto de unanimidade entre as entidades representativas das instituições fiscalizadoras. Tanto a chamada Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP), que congrega os membros dos Ministérios Públicos Estaduais e do Trabalho, quanto a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), quanto, ainda, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) defenderam a rejeição, pela Câmara dos Deputados, de dispositivo que estabelece o foro privilegiado para os ex-titulares de cargos ou funções públicas, no que se refere à improbidade administrativa, considerando o tratamento discriminatório que tal previsão constitucional ocasionaria, dificultando, de forma severa, o trabalho fiscalizatório e controlador de juízes e membros do Ministério Público. Tais entidades firmaram posicionamento público, por suas principais lideranças, contrário à própria alteração do art.84 do Código Processual Penal, que contemplou a prerrogativa de foro tanto aos atuais quanto aos ex-agentes políticos, no tratamento das ações de improbidade. A argumentação básica ficou centrada na proteção ao princípio isonômico, ausência de permissivo constitucional e na falta de estrutura dos Tribunais pátrios para enfrentar essa demanda. O certo é que tal tese acabou, realmente, prevalecendo, inclusive, nos Tribunais Estaduais, os quais vinham rechaçando a constitucionalidade da legislação alteradora do CPP. Essa foi também a tese vencedora no STF. Penso que isonomia é, na clássica acepção, o tratamento desigual dos desiguais, na medida mesmo dessas desigualdades. Isso, porque uma prerrogativa de foro nunca foi ofensa à isonomia. No entanto, a tese vencedora é outra.