Aplicação da teoria da coculpabilidade no ordenamento jurídico brasileiro:

análise da responsabilidade penal concorrente do Estado e os instrumentos para a sua efetivação

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11/09/2019 às 14:17
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O princípio da coculpabilidade, defendido principalmente por Zaffaroni, é um tema de primordial importância, pois gera uma responsabilidade ao Estado por conta de sua inércia. Tal responsabilidade é efetivada no momento da aplicação da pena, como se verá.

1 INTRODUÇÃO

O primordial objetivo do presente trabalho é estabelecer o que é e como pode ser aplicado o princípio da coculpabilidade no ordenamento jurídico brasileiro por meio de institutos já existentes.

Para tanto, de início, tratar-se-á sobre a teoria do delito, estabelecendo-se a questão histórica e quais são os seus elementos, de forma que, em resumo, o delito acontece quando ocorre um fato típico, antijurídico e culpável.

Em seguida, passa-se à análise das acepções da culpabilidade e direciona-se o presente trabalho para a culpabilidade como elemento do delito, a qual possui relação com o que se pretende demonstrar.

Por conseguinte, far-se-á um demonstrativo do que é a teoria da coculpabilidade, como ela surgiu e quais são as principais definições da doutrina, para, ato contínuo, tratar-se sobre o que é o princípio da coculpabilidade e, finalmente, como é possível (e se é) a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Após, realizar-se-á um comparativo sobre a jurisprudência pátria, com casos favoráveis e desfavoráveis ao tema em análise, fazendo-se um paralelo sobre a igualdade material e formal, a qual se correlaciona com o assunto.

Ademais, expor-se-á as teorias correlatas à coculpabilidade, quais sejam, culpabilidade por vulnerabilidade e coculpabilidade às avessas, por intermédio de uma breve explanação de suas respectivas definições.

Por derradeiro, na conclusão se discorrerá sobre os resultados obtidos com a presente pesquisa e quais seriam os meios para a efetivação da teoria e do princípio da coculpabilidade no sistema legal pátrio.


2 TEORIA DO DELITO

2.1 DEFINIÇÃO

O Direito Penal, segundo Roxin (2009), possui como função primordial a proteção aos bens jurídicos concretos, quais sejam: integridade corporal, patrimônio, vida, entre outros, excluindo-se da proteção do direito penal “convicções políticas e morais, doutrinas religiosas, concepções ideológicas de mundo ou simples sentimentos” (ROXIN, 2009, p. 12).

Outrossim, consoante ao que leciona Bitencourt (2015), o Direito Penal possui como principal objeto de estudo a denominada Teoria do Delito, também chamada de “Teoria do Fato Punível” (ROXIN, 1997, p. 192), “em cujo núcleo estão as normas inscritas na Parte Geral do Código Penal que nos auxiliam a identificar e delimitar os pressupostos gerais da ação punível e correspondentes requisitos de imputação” (BITENCOURT, 2015, p. 261).

O conceito de crime que se tem hoje é produto, principalmente, da doutrina alemã, a partir da segunda metade do século XIX, a qual aperfeiçoou os diversos elementos que compõem o delito, que é fruto do pensamento jurídico do positivismo científico, afastando-se as valorações filosóficas, psicológicas e sociológicas (BITENCOURT, 2015).

Ademais, no que condiz a Bitencourt (2015), os juristas Von Liszt e Beling produziram o conceito clássico de delito, no qual existe um movimento corporal (ação), que modifica o mundo exterior (resultado), as quais se vinculam por um nexo de causalidade. Por essa estrutura, faz-se a distinção entre aspecto objetivo (tipicidade e antijuridicidade) e subjetivo (culpabilidade).

Nesse sentido, conforme Bitencourt (2015), para se caracterizar um delito e ser ele objeto de persecução penal, a conduta deve ser típica, antijurídica e culpável. Típica, por estar prevista em lei; antijurídica, por ser contrária ao que fora previsto; e culpável pela potencial consciência da ilicitude, a exigibilidade de conduta diversa e a imputabilidade.

Sobre o tema, leciona Greco (2011, p. 135) que, nessa ordem, se trata de um antecedente lógico e necessário à apreciação do elemento seguinte e, além do mais, cita Welzel, o qual menciona que:

A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são três elementos que convertem ação em delito. A culpabilidade – a responsabilidade pessoal por um fato antijurídico – pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo que a antijuridicidade, por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais. A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior.

Assim, nota-se que um elemento decorre de outro e, para a ação caracterizar um crime, o ato deve ser um fato típico, antijurídico e culpável.

2.2 CONCEITO DE CULPABILIDADE

No que tange à culpabilidade, o seu conceito se apoia na “integração de considerações político-criminais sobre os fins preventivos na pena” (BITENCOURT, 2015, p. 465), tendo sido este o ponto de partida para a elaboração da doutrina de Roxin e Jakobs sobre o tema.

Nesse sentido, segundo Bitencourt (2015), para Roxin a conexão entre culpabilidade e prevenção é muito importante no que concerne à estrutura do delito, de forma que este atributo do delito passa a ser a responsabilidade.

Assim, prediz Roxin (1997, p. 792) que:

A responsabilidade depende de dois dados que devem ser acrescentados ao injusto: a culpabilidade do sujeito e a necessidade preventiva da sanção penal, que devem ser deduzidas em lei. O sujeito atua culpavelmente quando realiza um injusto jurídico-penal, a despeito de poder alcançar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta e possuir suficiente autocontrole, de modo que lhe era psiquicamente acessível uma alternativa de conduta conforme o direito.

Nessa acepção, para Bitencourt (2015, p. 466), a referida ideia trata-se de que “o sujeito sobre o qual recai o juízo de culpabilidade possui capacidade de comportar-se conforme a norma”. O referido autor conclui o tema asseverando que, para Roxin, a culpabilidade, com base na biologia, psicologia, psiquiatria, entre outras ciências, constata-se a capacidade que o indivíduo possui de autocontrole e acessibilidade normativa, o que torna o sujeito imputável e presume o conhecimento da ilicitude.

Para Jakobs, por sua vez, segundo Bitencourt (2015), a culpabilidade atine às necessidades preventivo-gerais da pena. Para o autor alemão, a culpabilidade se trata de um juízo de atribuição de falta de fidelidade ao direito, alcançando, pois, a finalidade preventivo-geral da pena.

Assim, para Jakobs (1995, p. 589), “a pena adequada à culpabilidade é, por definição, a pena necessária à estabilização da norma”. Contudo, sobre a mencionada definição de culpabilidade, Bitencourt (2015) menciona que esta não é a mais adequada concepção de culpabilidade, porquanto a perspectiva garantista prevalece sobre a utilitarista.

Cumpre expor, ainda, uma breve consideração sobre o que se entende sobre culpabilidade no ordenamento jurídico pátrio. Nessa esteira, conforme leciona Busato (2013), existem três acepções principais no que tange à culpabilidade: a primeira, sendo a culpabilidade como princípio, concernente à seara objetiva; a segunda, vinculando-se aos limites da pena; e a terceira, sendo elemento do delito, com enfoque subjetivo, diz respeito às características pessoais do indivíduo que comete o crime.

No que tange à culpabilidade como princípio, de acordo com Zaffarori e Pierangeli (2019), tem-se que não há delito sem culpabilidade, enquanto para Moura (2016), trata-se de um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico, pois é requisito necessário para a existência do delito e sua consequente punição, por meio do qual se afere a culpa em sentido amplo, com o dolo e a culpa em sentido estrito, impedindo-se o que por muito tempo vigorou no mundo: a responsabilidade penal objetiva.

Nesse sentido, dispõe Zaffaroni e Pierangeli (2019, p. 469) que

A responsabilidade objetiva não ocorre somente quando se pune uma conduta só porque causou um resultado, mas também quando a pena é agravada pela mesma razão. Ambos os casos implicam, pois, violações ao princípio nullum crimen sine culpa.

Os mencionados autores dizem, no entanto, que essas formas de responsabilidade objetiva estão praticamente erradicadas no denominado direito penal contemporâneo, mas remanescem no direito anglo-saxão com o nome de strict liability, embora seja alvo de muitas críticas.

Contudo, deve-se mencionar que o enfoque, no presente trabalho, será a culpabilidade como elemento do delito, pela qual entende-se que, segundo Bitencourt (2015), refere-se à responsabilidade que se pode imputar ao sujeito pelo cometimento do delito e em qual medida que foi responsável por este, trazendo-se um limite à aplicação excessiva da pena e segurança jurídica.


3. RESPONSABILIDADE ESTATAL NA PRÁTICA DE DELITOS

3.1 TEORIA DA COCULPABILIDADE

O tema em estudo trata de uma questão em voga e de primordial importância, principalmente em relação aos menos favorecidos, os quais, muitas vezes, são deixados de lado pela justiça brasileira. Isso porque, o atual ordenamento jurídico ainda sofre forte influência do sistema processual inquisitório (ALMEIDA JÚNIOR, 2009), sistema este muito comum na idade média, no qual o juiz é o acusador e julgador ao mesmo tempo, e o delito recai sobre a pessoa, gerando um estigma de delinquente, muitas vezes para sempre.

Não obstante, com o advento do iluminismo e as novas ideias, surgiu o sistema garantidor, no qual o juiz deve ser imparcial e o crime recai sobre o fato, buscando-se encontrar as razões que levaram ao indivíduo praticá-lo, bem como adequar a pena à medida da culpabilidade.

Ademais, segundo Moura (2016), surgiram, no mesmo período do iluminismo, as ideias marxistas, com a finalidade de acabar com as desigualdades econômicas muito presentes na época do iluminismo. O que ocorreu, outrossim, por intermédio do direito, criticando-o como uma superestrutura com função ideológica para a manutenção do Estado Capitalista. Por conta disso, muitos autores situam a coculpabilidade no direito socialista.

Nesse sentido, de acordo com Moura (2016), o Direito Penal socialista tem como enfoque não só a igualdade formal, mas sim a material, sendo o direito um produto das condições econômicas de um país.

Além do mais, o mencionado autor ainda diz que o surgimento da coculpabilidade se confunde com o do Estado Liberal pautado em ideais iluministas, visto que a corresponsabilidade estatal na perpetração de ilícitos emergiu no momento da criação do Estado Liberal e seu contratualismo, sendo o delito uma forma de quebra do contrato social. Contudo, o Estado também quebra o contrato social quando deixa de propiciar condições mínimas de vida para os indivíduos.

Sendo assim, pela teoria da coculpabilidade, tem-se que ela nada mais é do que a quebra do contrato social por parte do Estado, devendo ele reconhecer a sua inadimplência, com a coculpabilidade estatal.

Noutra esteira, o Código de Processo Penal Brasileiro, editado na década de 1940, é predominantemente inquisitivo, em razão de, àquela época, viger o período ditatorial. Todavia, com todos os eventos ocorridos ao longo do século XX e a prevalência dos direitos humanos, a Constituição Brasileira adotou o sistema garantidor, recaindo o crime predominantemente ao fato e buscando-se encontrar as razões que levaram o sujeito a cometê-lo.

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Cumpre mencionar que o Estado possui o poder de buscar a persecução penal e, consequentemente, punir o sujeito que comete crimes. Em contrapartida, este mesmo Estado, em sua Constituição Federal, prevê direitos fundamentais e condições mínimas para a dignidade da pessoa humana, princípio este positivado na própria Carta Magna, em seu artigo 1º, inciso III, caracterizado como fundamento basilar do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, pelo que deve ser estritamente observado e aplicado pelos operadores do direito.

Ademais, é notável a grande desigualdade social existente no Brasil, bem como a enorme quantidade de pessoas passando fome e abaixo da linha da pobreza. A título de exemplo, pode-se citar os dados do IBGE, publicados pela Agência Brasil, por Oliveira (2017), segundo os quais em torno de 50 milhões de brasileiros vivem até a linha da pobreza, o que equivale a 25,4% da população, os quais têm renda familiar de até R$387,07 (trezentos e oitenta e sete reais e sete centavos).

 Tamanho estado de necessidade propiciado pela pobreza e ausência de condições mínimas de vida, bem como oportunidades e educação, faz com que o indivíduo retorne ao seu estado de natureza, por vezes deixando de lado a ética subjetiva e a moral existentes em nossa sociedade.

Sendo assim, como o Estado, ao não proporcionar condições mínimas para a sobrevivência do ser humano, bem como diante da ausência de políticas públicas e da desigualdade social vivenciada por muitos, poderia exigir conduta diversa daquele que, em desespero, comete delitos? Tal questionamento foi feito, inicialmente, por Marat (apud BAYER, 2013, online), que, em uma visão extremista, “defendia que os indivíduos marginalizados da sociedade, que não possuem seus direitos fundamentais garantidos, não são obrigados a respeitar a lei, nem suscetíveis às suas sanções”.

A referida ideia inspirou Zaffaroni e Pierangelli (p. 545, 2019) a elaborarem a teoria da coculpabilidade estatal, segundo os quais:

Todo sujeito age numa circunstância dada e com um âmbito de autodeterminação também dado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de coculpabilidade é uma ideia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a coculpabilidade é herdeira do pensamento de Marat e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do art. 66.

Pertinente ao tema, ademais, é o que leciona Greco (2011, p. 425):

Sabemos, como regra geral, a influência que o meio social pode exercer sobre as pessoas. A educação, a cultura, a marginalização e a banalização no cometimento de infrações penais, por exemplo, podem fazer parte do cotidiano. Sabemos, também, que a sociedade premia poucos em detrimento de muitos. [...] A teoria da coculpabilidade ingressa no mundo do Direito Penal para apontar e evidenciar a parcela de responsabilidade que deve ser atribuída à sociedade quando da prática de determinadas infrações penais pelos seus “supostos cidadãos”. Contamos com uma legião de miseráveis que não possuem um teto para se abrigar, morando embaixo de viadutos ou dormindo em praças ou calçadas, que não conseguem emprego, pois o Estado não os preparou ou qualificou para que pudessem trabalhar, que vivem a mendigar por um prato de comida, que fazem uso de bebida alcoólica para fugir à realidade que lhes é impingida. Quando tais pessoas praticam crimes, devemos apurar e dividir sua responsabilidade com a sociedade. (Original com grifos)

Nesse sentido, pode-se dizer que a teoria da coculpabilidade caracteriza-se por tornar o Estado corresponsável pelo cometimento dos delitos daqueles que são menos favorecidos e não tiveram o mínimo existencial.

3.2 PRINCÍPIO DA COCULPABILIDADE

Tal conceito foi recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro como o princípio da coculpabilidade estatal, tratando-se de princípio constitucional implícito, conforme Moura (2016), o qual caracteriza a corresponsabilidade do Estado pelo cometimento de delitos, que são perpetrados por indivíduos que têm menor âmbito de autodeterminação no que tange às circunstâncias do caso, mormente diante das condições econômicas e sociais do agente, que enseja uma menos elevada reprovação social, o que traz consequências na aplicação da pena.

Ademais, Espinoza, ao comentar o artigo 45 do Código Penal peruano, exemplifica a coculpabilidade:

O artigo 45 do Código Penal consagra o princípio Jus Poenali da Coculpabilidade da sociedade e do Estado na perpetração do delito, como causa eficiente ou condicionante das causas sociais, materiais e culturais da conduta criminal dos homens; por isso, se prescreve que o julgador deverá ter em conta no momento de fundamentar a culpa e determinar a pena, as carências sociais que teriam afetado o agente. Nesta forma de sociedade e Estado, que toleram que imperem as desigualdades econômicas, as injustiças sociais, politicas e culturais, estariam reconhecendo que não brindam com iguais possibilidades de superação a todos os homens, para lhes exigir um comportamento com adequação à lei os interesses gerais coletivos da comunidade regulados pelo direito positivo; portanto, se está aceitando uma responsabilidade da sociedade e do Estado, no que se refere à conduta delitiva dos infratores penais, como mea-culpa, conceitua o artigo 45 do Código Penal em reconhecimento oficial do Estado, que a delinquência é gestada nas condições sociais de injustiça que imperam na sociedade. Em atenção ao estatuto, diminui ou desaparece a coculpabilidade na mesma medida em que o delinquente tenha tido condições materais, sociais e culturais para realizar-se como ser humano honrado e se comportar os mandos e proibições normativas e normas culturais de convivência social que requerem ao homem socialmente útil, o que também conduz ao direito e a condutas éticas. Por “mea-culpa” que tem o efeito de enfraquecer ou atenuar o direito de castigar (Jus Puniendi) que o Estado exerce em nome da sociedade (tradução livre).

 Sendo assim, trata-se de uma mea-culpa da sociedade, devendo-se aplicar menor reprovabilidade quando o autor do crime é hipossuficiente, caracterizando-se o Estado, nesse caso, como inadimplente em sua obrigação, devendo, assim, responder conjuntamente pelo delito.

Desta feita, o questionamento a ser realizado é: como, então, aplicar o princípio da coculpabilidade estatal ao ordenamento jurídico brasileiro? Responde-se, inicialmente, a tal pergunta utilizando-se o princípio da individualização da pena, o qual pressupõe que a pena se adeque a cada caso concreto (SILVA, 2009).

Nesse sentido, salienta-se que já existem elementos no ordenamento jurídico brasileiro que propiciam a referida individualização, prescindindo, assim, de inovação legislativa. Pode-se dizer que tais elementos estão previstos no artigo 187, § 1º, do Código de Processo Penal[1] e no artigo 59 do Código Penal[2], em que ambos se relacionam, podendo-se ainda, em substituição a este, aplicar-se a denominada circunstância atenuante inominada, positivada no artigo 66 do Código Penal[3].

Desta forma, em relação ao primeiro artigo mencionado, aplica-se o referido princípio analisando-se, já no momento do interrogatório em juízo, as oportunidades sociais que o indivíduo teve ao longo de sua vida.

A análise em comento é aplicada na fase da dosimetria da pena, utilizando-se do segundo elemento mencionado, o artigo 59 do Código Penal, no qual o juiz, ao aplicar a pena, atenderá à culpabilidade do agente, que, como já mencionado, deve ser minorada, por conta da corresponsabilidade estatal, gerando assim uma diminuição da pena.

O artigo 66, por sua vez, pode ser adotado na segunda fase da dosimetria da pena, a qual, consoante o entendimento de Greco (2017), denota o caráter exemplificativo das circunstâncias atenuantes, previstas no artigo 65 do Código Penal.

A título de exemplo de aplicação do mencionado princípio, pode-se citar os dizeres de Greco (2017, p. 321), segundo o qual “pode o juiz considerar o fato de que o ambiente no qual o agente cresceu e se desenvolveu psicologicamente o influenciou no cometimento do delito”.

Isto posto, deve-se considerar que o Estado responde por sua omissão, quando deixou de propiciar o mínimo existencial ao indivíduo, e responde conjuntamente com este, por diminuir a pena na fase da persecução criminal.

No entanto, insta mencionar o grande empecilho à aplicação coculpabilidade: os julgados dos tribunais, visto que a jurisprudência pátria é majoritariamente contrária à utilização do princípio da coculpabilidade estatal, justificando que fere o princípio da igualdade, constituindo-se este como premissa máxima do art. 5º, caput, da Constituição Federal, conforme se vê pelo seguinte julgado:

DESNECESSIDADE DE VISTA AO MINISTÉRIO PÚBLICO EM SEGUNDA INSTÂNCIA. PRELIMINAR REJEITADA. PROVAS DA AUTORIA E MATERIALIDADE. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DECOTE DA MAJORANTE. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA COCULPABILIDADE. APLICAÇÃO DA ATENUANTE GENÉRICA DO ART. 66 DO CÓDIGO PENAL. DESCABIMENTO. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO MANTIDA. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA PROPROCIONALIDADE E DO “NON REFORMATIO IN PEJUS”. RÉU REINCIDENTE E PORTADOR DE MAUS ANTECEDENTES. FIXAÇÃO DE REGIME FECHADO. – A ausência de abertura de vista ao representante do Ministério Público em segunda instância é causa de nulidade do processo, devendo por isso, até manifestação em sentido contrário da Corte Suprema, se realizada. – Se as provas se mostram suficientes para demonstrar a materialidade e autoria do delito de roubo majorado pelo concurso de pessoas, não há como absolver o acusado por negativa de autoria, devendo prevalecer a palavra do próprio agente na fase policial, do comparsa e das testemunhas, admitindo a participação no crime. – Utilizar o princípio da coculpabilidade para justificar a aplicação da atenuante genérica do art. 66 do CP significa violar o princípio da igualdade, já que como é sabido, e por demais honroso, nem todas as pessoas pobres, que passam por sérias dificuldades financeiras para garantir sua sobrevivência, buscam no mundo do crime a saída para todas as suas mazelas. (TJ-MG, 2013, online).

CÓDIGO PENAL. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. ART. 155, § 4º, INCISOS II E IV. FURTO QUALIFICADO. FRAUDE. CONCURSO DE AGENTES. ART. 244-B DA LEI Nº 8.069/90. CORRUPÇÃO DE MENORES. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. [...] PRINCÍPIO DA COCULPABILIDADE. Não prospera a tese defensiva em atribuir ao Estado responsabilidade pela vida criminosa do agente. Teoria de viola o princípio da igualdade e não tem previsão na legislação pátria. Réu que teria condições de agir de modo diverso, pois não há nexo causal entre sua conduta e sua condição financeira [...] (TJ-RS, 2013, online).

Contudo, ao aplicar desta maneira o mencionado princípio, deixa-se de observar a efetiva igualdade, porquanto os desiguais, no caso, os menos favorecidos e que não obtiveram acesso a benefícios mínimos que deveriam ser prestados pelo Estado, devem ser tratados desigualmente e na medida de suas desigualdades (MOURA JÚNIOR, 2013), por meio de uma diminuição da pena, utilizando-se, assim, da igualdade material, ou aristotélica, visto que apenas assim seria possível aplicar a igualdade de uma maneira verdadeiramente justa.

Não obstante, o juiz, ao deixar de aplicar a igualdade material, em virtude dos próprios valores, torna-se, como mencionado na doutrina de Streck (2010), o denominado sujeito solipsista, ou individualista, que decide conforme a própria consciência, de forma discricionária, o que deve ser repelido do ordenamento jurídico, sob pena de prejudicar, sobremaneira, a segurança jurídica.

Assim, com o presente trabalho não se busca a aplicação efetiva da ideia de Marat, ao dizer que os indivíduos menos favorecidos não devem ser punidos, tampouco vitimizá-los, mas apenas aplicar a pena de maneira justa, porquanto o Estado, ao deixar de propiciar as condições mínimas de vida e dignidade, torna-se corresponsável pelo crime.

A seguir, mostra-se, a título de exemplo, um caso favorável e outro parcialmente favorável da jurisprudência:

APELAÇÃO CRIMINAL – ROUBO IMPRÓPRIO EM CONCURSO DE PESSOAS. [...] 2. ABRANDAMENTO DE PAN PELA COCULPABILIDADE ESTATAL [...] A coculpabilidade do Estado não pode ser reconhecida e aplicada de modo indistinto, devendo ser reconhecida com parcimônia, apenas se comprovado, de modo inequívoco, que o agente seja fruto de sociedade injusto e que lhe propiciou desiguais oportunidades, se comparadas às de seus pares. [...] (TJ-MT, 2010, online).

Como pode-se notar, no primeiro caso, diz-se que, embora o princípio da coculpabilidade não pode ser aplicado de modo indistinto, ele deve sim ser aplicado quando surgir uma situação que se subsume ao princípio. Outrossim, no caso delineado adiante, diz-se, de igual forma, que quando ocorrer um caso equivalente ao princípio da coculpabilidade estatal, ele deve, sim, ser aplicado.

APELAÇÃO – FURTO – PROVAS SUFICIENTES DA AUTORIA E MATERIALIDADE – CONDENAÇÃO MANTIDA – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – NÃO APLICAÇÃO – TENTATIVA – RECONHECIMENTO – IMPOSSIBILIDADE – CO-CULPABILIDADE – RECONHECIMENTO PARA FINS DE PROPORCIONALIDADE – NÃO-APLICABILIDADE – PENA-BASE EXACERBADA – DIMINUIÇÃO – REINCIDÊNCIA – AUMENTO EXACERBADO DA PENA-BASE – PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE – AUMENTO MÁXIMO DE 1/6 SOBRE A PENA-BASE. Sendo o conjunto probatório idôneo a comprovar a autoria e materialidade deve ser mantida a sentença condenatória. Não se pode reconhecer a incidência do princípio da insignificância quando o valor da res furtiva é de quarenta reais, superando, em muito, o critério balizador do crime de bagatela, ou seja, dez por cento do salário mínimo vigente à época dos fatos. A consumação do crime de furta verifica-se quando o agente retira o bem da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que por pouco tempo, não sendo necessária a posse mansa e pacífica. Sendo a maioria das circunstâncias judiciais favoráveis ao réu, a pena-base da privativa de liberdade deve ser fixada no mínimo legal. É de se reconhecer a circunstância atenuante inominada, descrita no art. 66 do Código Penal, quando comprovado o perfil social do acusado, desempregado, miserável, sem oportunidades na vida, devendo o Estado, na esteira da co-culpabilidade citada por Zaffaroni, espelhar a sua responsabilidade pela desigualdade social, fonte inegável de delitos patrimoniais, no juízo de censura penal imposto ao réu. Tal circunstância pode e deve, também, atuar como instrumento da proporcionalidade na punição, imposição do Estado Democrático de Direito. Apesar de nosso Código Penal não determinar qual a quantidade de aumento ou de diminuição das agravantes e atenuantes, doutrina e jurisprudência majoritárias tem aceitado que a variação dessas circunstâncias, atendido o princípio da razoabilidade, não deve modificar a pena-base, em mais de 1/6 (um sexto). (TJ-MG, 2007, online).

Sendo assim, a mencionada jurisprudência corrobora o que se busca demonstrar no presente trabalho, ao aplicar a atenuante inominada na aplicação da pena de um indivíduo hipossuficiente, o que se pretende evidenciar com este artigo.

Ademais, por ser o Estado o responsável pela punição dos indivíduos que descumprem a lei, bem como pela persecução criminal, faz-se mister aplicar uma diminuição de pena aos hipossuficientes, ao utilizar-se da igualdade material, respondendo, assim, conjuntamente por sua omissão.

3.2.1 Igualdade material e formal

Considerando que os juízes deixam de aplicar o princípio da coculpabilidade baseando-se, muitas vezes, na igualdade formal, insta fazer um paralelo sobre o que é igualdade material e formal. Segundo Canotilho (1993), a igualdade material do princípio da igualdade trata-se de uma igualdade real, na qual existe um dever de prestação positiva da desigualdade de oportunidades.

Noutro vértice, Silva (2005) cita Aristóreles, o qual vincula a ideia de igualdade à ideia de justiça, tratando-se de uma suposta justiça relativa, na qual os desiguais são tratados desigualmente na medida de suas desigualdades. Esta é a denominada igualdade material.

O supracitado autor ainda narra que, em razão de existirem desigualdades, é que se ambiciona à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais. À medida que a igualdade formal é o sentido oposto, trata-se daquela na qual se aplica friamente a letra da lei sem se importar com as diferenças existentes nos indivíduos, o que pode gerar injustiças.

Nesse sentido, para Silva (2005), a justiça formal, que se relaciona com a igualdade formal, consiste em um princípio de ação, na qual os seres de mesma categoria devem ser tratados de forma igual.

Ainda, prediz Silva (2005) que o princípio da igualdade se dá perante dois prismas. O primeiro no qual o juiz tem de aplicar a lei a casos iguais, ao passo que o segundo se dá diante do legislador, ao editar leis que possibilitem tratamento desigual aos desiguais na medida de sua igualdade, para assim se encontrar a real igualdade.

Deste modo, resta claro que a justiça reside na aplicação da igualdade material, na qual se trata o indivíduo desigualmente na medida de suas desigualdades, para assim se chegar a uma igualdade real, conforme dispõe Canotilho (1993).

3.3 TEORIAS CORRELATAS

3.3.1 Teoria da culpabilidade por vulnerabilidade

A principal teoria correlata à da coculpabilidade é a teoria da culpabilidade por vulnerabilidade, segundo a qual dispõe Cumiz (online):

Antes da apresentação dessas questões em particular, considero essencial uma explicação sucinta da coculpabilidade social e sua inclusão em nossa legistação, destacando assim essa teoria, que foi considerada a criação de ordens jurídicas socialistas, embora uma raiz anterior possa ser encontrada no século XVIII ou no início do século XX, com os juízos do juiz Magnaud, como antecedente fundamental da culpa pela vulnerabilidade.

Ademais, Zaffaroni e Pierangeli (2019, p. 49) dispõem que:

O sistema penal opera, pois, em forma de filtro para acabar selecionando tais pessoas. Cada uma dela se acha em umcerto estado de vulnerabilidade ao poder punitivo que depende de sua correspondência com um estereótipo criminal: o estado de vulnerabilidade será mais alto ou mais baixo consoante a correspondência com o estereótipo for maior ou menor. No entanto, ninguém é atingido pelo poder punitivo por causa desse estado, mas sim pela situação de vulnerabilidade, que é a posição concreta de risco criminalizante em que a pessoa se coloca. Em geral, já que a seleção dominante corresponde a estereótipos, a pessoa que se enquadra em algum deles não precisa fazer um esforço muito grande para colocar-se em posição de risco criminalizante (e, ao contrário, deve esforçar-se muito para evitá-lo), porquanto se encontra em um estado de vulnerabilidade sempre significativo. Quem, ao contrário, não se enquadra em um estereótipo, deverá fazer um esforço considerável para posicionar-se em situação de risco criminalizante, de vez que provém de um estado de vulnerabilidade relativamente baixo. Daí o fato de que, em tais casos pouco frequentes, seja adequado referir-se a uma criminalização por comportamento grotesco ou trágico. Os raríssimos casos de falta de cobertura servem para alimentar a ilusão de que qualquer pessoa pode ascender até a cúspide social a partir da própria base da pirâmide (self made man), e servem também para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema, que através de tais casos pode se apresentar como igualitário.

Nesse sentido, as pessoas em situação de vulnerabilidade correm maior risco de receberem o estigma de delinquente, com um maior risco criminalizante. Ou seja, pessoas de classes mais baixas têm uma chance maior de serem objeto da persecução penal, devido à seletividade do sistema.

No entanto, diferentemente da diminuição de pena que se tem no princípio da coculpabilidade, na culpabilidade por vulnerabilidade a doutrina dispõe que ela pode ser vista como causa de inexigibilidade de conduta diversa, conforme leciona Miranda (2013), não havendo, pois, crime, visto que se trata de uma excludente de culpabilidade.

3.3.2 Teoria da coculpabilidade às avessas

Segundo Moura (2016), a coculpabilidade às avessas pode ser interpretada de três formas: a) a primeira na qual se tipifica condutas relativas a pessoas já marginalizadas, como é o caso dos artigos 59 e 60 da Lei de Contravenções Penais, a qual tipificou vadiagem e mendicância, sendo estas condutas típicas dos indivíduos menos favorecidos da sociedade; b) a segunda na qual se aplicam penas mais brandas aos detentores de poder econômico; e c) a terceira, que será mais bem explicada adiante, como fator de diminuição ou aumento da reprovação social e penal.

O supracitado autor, nesse sentido, faz o seguinte questionamento:

É possível a aplicação do princípio da coculpabilidade como forma de maior reprovação da conduta, isto é, a reprovação penal daqueles que sempre foram incluídos socialmente e tiveram boas condições culturais e socioeconômicas não é maior do que a dos socialmente excluídos?

Responde-se a esta pergunta afirmando-se que, segundo os códigos penais argentino e português, isso é possível.

Nesse sentido, utilizando-se da interpretação teleológica, concebe-se a coculpabilidade para se aumentar a reprovação social e, consequentemente, elevar a pena.

Pode-se dizer (Moura, 2016), ademais, que a corresponsabilidade estatal é variável conforme as condições socioeconômicas e culturais de agente que comete o delito, de forma que quanto menor esta, maior aquela. Em contrapartida, quanto melhores sejam as condições sociais do agente, menor é a corresponsabilidade estatal, existindo, pois, maior reprovação social.

Inclusive, pode-se dizer que a coculpabilidade estatal às avessas já existe no ordenamento jurídico brasileiro, no artigo 76, IV, “a”, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor)[4] e no artigo 4º, § 2º, IV, “a”, da Lei nº 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia Popular)[5].

Contudo, Moura (2016) menciona que a coculpabilidade às avessas desvirtua o objetivo para a qual foi criada, visto que a coculpabilidade tem como escopo responsabilizar o Estado por sua inadimplência, ressaltando que a aplicação da coculpabilidade às avessas afrontaria os princípios da necessidade e suficiência previstos no artigo 59 do Código Penal.

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