A pretensão de se aplicar o princípio in dubio pro reo, preceituado no art. 112 do CTN para se excluir a exigência da multa fiscal dos concordatários não deve prosperar, tendo em vista os seguintes fatores:
1. não há dúvida quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou ainda quanto à natureza ou extensão dos seus efeitos, como prevê o inciso II deste artigo. Com todas as vênias, o argumento segundo o qual o citado artigo deve ser aplicado aos concordatários porque os mesmos se encontram em dificuldades financeiras é desprovido de qualquer fundamento lógico-jurídico. Ora, parece evidente que a concordata só se aplica aos comerciantes que se encontrem em dificuldades financeiras, no entanto, ainda assim o legislador não permitiu que se estendesse aos mesmos a norma destinada exclusivamente os falidos.
2. Na realidade, os destinatários do citado benefício não são os comerciantes falidos, mas sim seus credores. Através deste mecanismo, objetivou-se evitar que os mesmos credores - suportassem as penalidades pecuniárias aplicadas aos primeiros falidos. Assim, uma vez estendido aos concordatários o favor legal, a citada finalidade resta comprometida, visto que seriam beneficiados não os credores, mas sim os próprios concordatários.
3. o citado artigo está a dispor que a dúvida deve ser com relação à "lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades". Porém, como é cediço, este não é o caso do artigo 23 da Lei de Quebras, que não está a definir nenhuma infração nem, muito menos, cominando penalidade alguma. Pelo contrário, a citada norma está a excluir uma penalidade pecuniária nos casos de falência.
4. tomado pelo ângulo de suas conseqüências no âmbito meramente fiscal, cumpre observar que o artigo 23, parágrafo único, inciso III, da Lei de Falências, está em verdade a anistiar os comerciantes falidos das multas fiscais. Noutro dizer, o citado artigo concede verdadeira anistia das penas pecuniárias fiscais aos falidos. Porém, como é sabido, nos termos do CTN a anistia é hipótese de exclusão da exigibilidade do crédito tributário (art. 175, inciso II). Logo, o referido artigo da Lei de Falências não comporta interpretação extensiva para abranger as multas aplicadas aos concordatários, sob pena de infringência aos artigos 111, inciso II e 141, ambos do CTN.
À guisa de conclusão, e em suma, infere-se que a norma estatuída no art. 23, parágrafo único, inciso III, da Lei de Falências deve ser aplicada levando-se em conta os seguintes fatores:
- a multa fiscal é um tipo de penalidade administrativa, sendo por isso inexigível daqueles comerciantes que se encontram com a falência decretada;
- à multa moratória deve ser conferido o mesmo tratamento de quaisquer outras multas fiscais, possuindo - igualmente - caráter de pena administrativa, penitenciando o sujeito passivo tributário que se encontra em mora; entendimento este sufragado pela Súmula 565 do STF;
- a clarividência da formulação verbal estatuída pelo citado artigo não pode suscitar maiores dúvidas, a norma é direcionada aos comerciantes falidos, não aos concordatários. Aliás, relembre-se que o citado artigo faz parte do Título II, que trata dos "Efeitos Jurídicos da Sentença Declaratória da Falência";
Finalmente, cumpre observar que para aqueles que entendem ainda estar vigorando o Decreto-lei 1.893/81, o artigo 23, parágrafo único, inciso III, do Decreto-lei 7.661/45 não será aplicável nem mesmo nos casos de falências, no que pertine às multas fiscais aplicadas pela Fazenda Pública Federal. (40)
NOTAS
- Teoria Pura do Direito, Trad. João Batista Machado, pg. 366.
- Comentários à Lei de Falências, Vol. I, 2 ed., Revista Forense, Rio de Janeiro, pg. 191
- ibidem, pg. 192.
- Supremo Tribunal Federal, RE 48.377, 1ª Turma, Rel. Gonçalves de Oliveira, "Acórdão", J. 12/07/1962, DJ 15/09/1961, pg. 01952.
- Neste sentido, RE 26.042, RE 62.960, RE 65114, RE 75.301, RE 75.590, RE 76.563, RE 77.032, RE 78.005, RE 78.170, RE 81.262 e RE 81332.
- Supremo Tribunal Federal, Súmula de Jurisprudência nº 191, J. 16/12/1963
- Supremo Tribunal Federal, Súmula de Jurisprudência nº 191, J. 16/12/1963
- In Revista Dialética de Direito Tributário, Vol. 14, pg. 13.
- Supremo Tribunal Federal, RE 80.093, Tribunal Pleno, Rel. Bilac Pinto (para o Acórdão), "Acórdão, J. 02/04/1975, RTJ Vol. 0082-03, pp. 809.
- Neste sentido, RE 80.123, RE 80.134, RE 80.147, RE 80.185, RE 80.528 e RE 81.378
- Supremo Tribunal Federal, RE 80.093, Tribunal Pleno, "Acórdão", J. 02/04/1975, RTJ, Vol. 0082-03, pp. 809
- O julgado do tribunal paulista posto à apreciação do STF entendeu que a distinção era descabida em função, especificamente, da norma do artigo 113, parágrafo 3º do CTN.
- Relator para o julgamento, Min. Xavier de Albuquerque.
- Como é cediço, posteriormente, o entendimento segundo a qual a correção monetária seria uma espécie de penalização restou superado.
- Supremo Tribunal Federal, RE 79.625, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cordeiro Guerra, "Acórdão", DJ. 08/07/1976
- O Ilmo. Ministro Xavier de Albuquerque, em seu voto no RE 80.093, entendeu que, pelo contrário, o parág. único do art. 134 do CTN "não apenas não desautorizou a distinção consagrada pela jurisprudência do Supremo Tribunal, como a acolhe, ele próprio, desenganadamente." Posição esta que, para nós, encerra meia verdade, pois, como declinado supra, esta norma, de fato, faz menção a uma espécie de sanção moratória; contudo, inegavelmente, qualifica-a de penalidade.
- Supremo Tribunal Federal, Súmula de Jurisprudência nº 565, J. 15/12/1976, DJ 03/01/1977, pg. 003.
- Curso de Direito Tributário brasileiro, pg. 642.
- Aqui, levou-se em consideração um contribuinte que declarou regularmente suas contribuições na GFIP. Caso contrário, estes percentuais seriam aplicados em dobro.
- Obviamente, a denominação legal de "multa de ofício", que lhe
empresta a legislação, não lhe altera a natureza moratória, já que o fato que
autoriza a sua aplicação é o não cumprimento da obrigação tributária principal -
deixar de pagar tributo no prazo previsto pela legislação tributária. De fato, a quem
possa interessar, pode-se chamá-la de multa moratória aplicada de ofício.
Contudo, seja lá qual for a terminologia adotada, não se lhe pode impor um tratamento diferenciado, como por exemplo no caso de denúncia espontânea (art. 138 do CTN), em que os órgãos Fazendários persistem em reconhecer os efeitos tributários deste instituto, no que tange à mora no pagamento, somente para se afastar as chamadas "multas de ofício", assim denominadas em seus regulamentos; em detrimento daquelas multas que seriam "simplesmente moratórias", i.é, recolhidas pelos próprios contribuintes na ausência de atividade fiscal. Ora, todas as duas são multas moratórias. Na verdade, trata-se da mesma coisa. Havendo ou não autuação fiscal, o que vai apenas alterar-lhe o percentual de agravamento, estas multas são a manifestação diversa de uma mesma sanção, qual seja a aplicação de penalidade em função da mora ano cumprimento de obrigação tributária substancial - dar dinheiro, pagar tributo -, e bem por isso são punitivas, devendo-se observar para ambas e de maneira uniforme todas as conseqüências legais advindas deste fato. - Percentual cobrado no caso de notificação fiscal de débito não declarado na GIFP. Neste caso, a multa se agrava também em função do descumprimento de obrigação acessória, qual seja, a não declaração dos valores na GIFP.
- Direito Tributário Brasileiro, pg. 407.
- Quanto à analogia, o art. 108 do CTN a admite como método de integração da legislação tributária, com as limitações que lhes são impostas pelo princípio da legalidade, ao qual rendeu-se o parágrafo 1º deste mesmo artigo.
- Curso de Direito Tributário, pg. 82.
- Superior Tribunal de Justiça, R. Esp. 218.532, 1ª Turma, Rel. Min. Gacia Vieira, "Acórdão", DJ. 13/12/1999.
- No mesmo sentido, Recursos Especiais de números 38.997, 111.926, 115.454, 140.577, 151.323, 177.827, 191.542, 208.107 e 219.768.
- Rubem Ramalho, Curso Teórico e Prático de Falência e Concordatas, pg. 98.
- Nelson Abrão, Curso de Direito Falimentar, pg. 309.
- Rubem Ramalho, Curso Teórico e Prático de Falência e Concordatas, pg. 267.
- A inegável relevância social e econômica da "empresa" pode, com algum
esforço, vir a justificar a regra, mas não se presta a justificar o privilégio
concedido apenas aos comerciantes, pois, há cada vez mais empresas de relevante papel
econômico e social exercendo atividades que, pela teoria do ato de comércio, estariam
fora de alcance das normas que estatuem o regime jurídico dos comerciantes, e por
conseqüência, dos benefícios do Decreto-lei 7.661/45.
anteprojeto da nova Lei de Falências corrige a citada anomalia, determinando que ficam sujeitas ao procedimento de recuperação e liquidação judicial as "pessoas jurídicas de natureza civil e o devedor individual que explorem atividade econômica, este quando o faça em nome próprio e de forma organizada, com a finalidade de produzir bens ou serviços para o mercado". - Superior Tribunal de Justiça, R. Esp. 178.401, 2ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, "Acórdão", DJ. 16/11/98.
- Curso de Direito Tributário, pg. 77.
- Conforme art. 175, inciso II, do CTN, a anistia é uma das formas de exclusão do crédito tributário.
- A bem da verdade, a norma do artigo 23, parág. único, inciso III, do Decreto-lei 7.661/45 não se amolda ao conceito de "legislação tributária", conforme definida pelo art. 96 do CTN. No entanto, aqui sim, entendemos que a proibição advinda do artigo 111, inciso I, do CTN direcionada à legislação tributária aplica-se, analogamente, à citada norma do Lei de Falências (art. 23, parág. único, inciso III), vedando a interpretação extensiva da mesma para beneficiar os concordatários.
- Apud Sacha Calmon Navarro Coêlho, Curso de Direito Tributário Brasileiro, pg. 219.
- Sacha Calmon Navarro Coêlho, ob. cit., pg. 570, entende ser cabida a dispensa das multas fiscais nos casos de concordata, mediante o emprego da eqüidade: "(...) A dispensa das multas fiscais nos processos falimentares e nas concordatas é outro exemplo de jurisprudência sensata e eqüidosa." Data venia, não comungamos da mesma opinião, por todas as razões expostas neste trabalho.
- Superior Tribunal de Justiça, R. Esp. 178.427, 2ª Turma, Rel. Min. Adhemar Maciel, "Acórdão", DJ. 07/12/98.
- Superior Tribunal de Justiça, Embargos de Divergência no R. Esp. 181.709, 1ª Seção, Rel. Min. José Delgado, "Acórdão", DJ. 17.12.99.
- Supremo Tribunal Federal, Ação Rescisória 1.316, Tribunal Pleno, Rel. Ilmar Galvão, "Acórdão", DJ. 07.05.93.
- O Plenário do extinto TFR já declarou a inconstitucionalidade formal do art. 9º, do Decreto-lei 1.893/81.
BIBLIOGRAFIA
- Abrão, Nelson. Curso de Direito Falimentar. 4. ed., São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1997.
- Baleeiro, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 8. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1976.
- Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 8. ed., São Paulo: Saraiva, 1996.
- Coelho, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 9. ed. brasileira, São Paulo: Saraiva, 1997.
- Coêlho, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999.
- Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed., tradução de João Batista Machado, São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1987.
- Ramalho, Rubem. Curso Teórico e Prático de Falência e Concordata. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1993.
- Valverde, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 2. ed., Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955.