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Da exigibilidade da multa fiscal na Lei de Falências e Concordatas

(Decreto-Lei 7.661/45)

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01/07/2000 às 00:00
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Sumário: 1 – Introdução; 2 - Da multa fiscal segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal; 3 - Da aplicação do inciso III, parágrafo único, artigo 23 do Decreto-Lei 7.661/45 em benefício dos concordatários; 4 – Conclusão.


1 - INTRODUÇÃO

Não são reclamáveis na falência, por expressa disposição do Decreto-lei 7.661/45, as "penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas". (inciso III, parágrafo único, art. 23).

A norma, posto que vetusta, e não obstante a simplicidade e a clarividência de seus termos, ainda hoje, tem causado infundada celeuma quanto à sua aplicação e alcance, inclusive no Superior Tribunal de Justiça. Analisando-se os recentes julgados provenientes desta Corte, verifica-se uma inquestionável tendência em ampliar o benefício concedido por esta norma aos comerciantes concordatários, anistiando-os das multas fiscais.

A discussão acerca da natureza da multa fiscal, com vistas à sua aplicação nas variegadas situações postas em pauta, sempre causou controvérsia nos nossos tribunais.

Inicialmente, discutiu-se acerca do conceito da expressão "penalidade administrativa", para se saber se as multas fiscais seriam aplicáveis ou não nos processos falimentares. Posteriormente, e com o mesmo objetivo, debateu-se a natureza íntima das multas fiscais, para se conferir um tratamento diferenciado à multa fiscal moratória. Hodiernamente, verifica-se uma tendência em abranger a norma do parágrafo único, inciso III, do artigo 23 - destinada aos casos de falência - aos débitos das empresas e comerciantes concordatários, a nosso ver, através de uma interpretação desvirtuada e casuísta do art. 112 do Código Tributário Nacional.

Segundo Hans Kelsen, ao se interpretar uma determinada norma, sempre se confere ao aplicador do Direito uma margem, maior ou menor, de liberdade. "O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível."

O professor austríaco preleciona, inclusive, que na atividade de interpretação não é possível se revelar um sentido singular da norma, como se a mesma portasse um comando único e excludente de qualquer outro. Ao contrário, o comando emanado da norma geral prescreve a delimitação da "moldura" dentro da qual a norma individual poderá ser produzida.

"Se por ‘interpretação’, se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de um interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão, que ela está contida na moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral."(1)

A questão, no caso em comento, consiste em saber se deve ou não prevalecer o entendimento segundo o qual as multas fiscais não devem ser cobradas, também, dos concordatários. Por conseguinte, cumpre indagar se as normas individuais produzidas pelos julgados que adotam o referido entendimento são legítimas, ou, noutro dizer, se estão adstritas à moldura delineada pelo comando extraído das referidas normas jurídicas.

Desta forma, procurar-se-á demonstrar, com o auxílio das normas basilares de hemenêutica, que a regra extraída do inciso III, parágrafo único do artigo 23 da Lei de Falências, em conjunção com as demais normas falimentares e tributárias, não autorizam o mencionado entendimento.

O presente estudo, bem longe de pretender esgotar a matéria, propõe-se a apresentar, em linhas gerais, a problemática suscitada em torno da aplicação e alcance das normas envolvidas na questão, tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo por finalidade primordial o oferecimento do tema a uma análise mais aprofundada por parte da doutrina autorizada e dos estudiosos de maior fôlego.

A relevância da questão acentua-se, pelo fato de se encontrar em fase final de tramitação o anteprojeto de lei número 4.376/93, que substituirá a presente Lei de Quebras.


2 - DA MULTA FISCAL SEGUNDO O ENTENDIMENTO
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Trajano de Miranda Valverde, em comentário ao parágrafo único, inciso III, do artigo 23 da Lei de Falências, afirma que aquelas sanções decorrem "de ações e omissões, pelas quais respondem pessoalmente os seus autores. Podem vir, ou não, acompanhadas de outra cominação e tomam, tanto no direito penal, quanto no direito tributário, e em outros ramos do direito público, o nome de multas. Funcionam como meio coercitivo sobre a pessoa do devedor e convertem-se, em regra, no direito penal, em prisão."

O respeitado autor faz ainda uma abordagem teleológica da norma, ao revelar que:

"A proibição, que figura no nosso direito falimentar desde a Lei 2.024, de 1908, provém da lei alemã sobre falências que, no § 63, nº 3, ordena a exclusão do concurso dos créditos por penas pecuniárias, porquanto se eles pudessem ser incluídos na falência, feririam não tanto o devedor, quanto os credores dela, contrariando, ainda hoje, o princípio, que não necessita estar mais nos Códigos, de que a responsabilidade penal é absolutamente pessoal"(2).

De se observar que Valverde perfilhou doutrina que já não prevalece mais na atualidade, ao sustentar que não se enquadrava nas penalidades administrativas as multas de caráter fiscal. Assim entendia porque, segundo ele, as multas fiscais equivaleriam, por assim dizer, às perdas e danos em função do inadimplemento no cumprimento da obrigação tributária ou pela infração de certas obrigações legais que atingiriam o próprio patrimônio do falido. (3) Contudo, a abordagem histórica fornecida por Valverde deve ser anotada, pois, indiscutivelmente, virá em auxílio de nossa conclusão no que tange ao aspecto teleológico desta norma da Lei de Falências.

De fato, na jurisprudência remota do Pretório Excelso, chegou-se a adotar o entendimento segundo o qual a multa fiscal não teria a natureza de pena administrativa. Nesse sentido, in verbis:

          "FALÊNCIA. MULTA FISCAL.

Sua inclusão, pois não se equipara a pena pecuniária, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal." (4)

Contudo, o mesmo autor já reconhecia a existência de tese contrária, que já vinha conquistando adeptos no Supremo Tribunal Federal, e não tardou muito para que se firmasse o entendimento no sentido de que a multa fiscal seria uma espécie de penalidade administrativa. Todavia, insta relevar que o STF não compreendia entre as penalidades administrativas as multas fiscais moratórias. Assim, segundo o entendimento até então dominante, a multa fiscal comportaria duas espécies: uma resultante da infração de um dever legal (penalidade pecuniária aplicada em função de um ilícito - no caso - tributário), e outra, a qual se acostumava adjetivar de "simplesmente" moratória. Desta forma, a primeira não seria cobrável na falência, enquanto que a segunda, por ser simplesmente moratória - e não uma penalidade administrativa - poderia ser cobrada da massa falida(5).

Dito entendimento restou consagrado nos verbetes das súmulas 191 e 192, julgadas na mesma ocasião e redigidas nos seguintes termos:

"Inclui-se no crédito habilitado em falência a multa fiscal simplesmente moratória"(6)

"Não se inclui no crédito habilitado em falência a multa fiscal com efeito de pena administrativa." (7)

A distinção entre multa fiscal moratória e multa fiscal punitiva é descabida, porquanto a função da multa moratória é e sempre foi, de fato, punir o inadimplemento, e não remunerar o capital - que seria função dos juros - nem, muito menos, recompor o valor real da moeda - o que viria a ser feito pela correção monetária.

Oportuna a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho, segundo a qual "a função da indenização é recompor o patrimônio danificado. Em direito tributário é o juro que recompõe o patrimônio estatal lesado pelo tributo não empregado. A multa é para punir, assim como a correção monetária é para garantir, atualizando-o, o poder de compra da moeda. Multa e indenização não se confundem." (8)

Perfilhando-se à melhor doutrina, o próprio STF logrou redirecionar seu posicionamento quanto à multa fiscal moratória. O curioso é que, inicialmente, passou-se a entender que a citada multa não seria exigível na falência em função da correção monetária, sendo que a incidência da multa moratória conjugada com a correção monetária consistiria num bis in idem. Assim, confira-se a seguinte ementa:

"FALÊNCIA. MULTA FISCAL DE NATUREZA MORATÓRIA.

Sua inexigibilidade, diante de abuso do poder fiscal e ocorrência, em razão da correção monetária, de bis in idem.

Recurso Extraordinário do Estado não conhecido." (9) (10)

Como se nota, o julgado supra caminha em direção à tese que viria a se tornar vencedora; porém, a fundamentação adotada ancora-se no argumento de que a multa fiscal moratória seria inexigível não por ser uma penalidade administrativa (conforme o inciso III, parág. único, art. 23 do Decreto-lei 7.661/45), mas pelo fato de ser exigida conjuntamente com a correção monetária, pois os dois institutos teriam uma finalidade idêntica.

Vencido o relator, Ministro Xavier de Albuquerque, o voto vencedor do Ministro Bilac Pinto conduziu o posicionamento fixado no acórdão, hoje já superado. Confira-se, a propósito, excerto do citado voto, onde se apresenta explicitada a sua tese:

"Se os dois institutos têm a mesma finalidade e se a multa moratória pertencia ao sistema de penalização do contribuinte em uma época em que inexistia a correção monetária, estou em que a cobrança cumulativa desses dois encargos - correção monetária mais multa moratória - caracteriza um abuso do poder fiscal do estado, que deve ser coibido pelo judiciário.

Para corrigir este bis in idem, teremos que considerar inexigível a multa moratória." (grifos do original)

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O Ilmo. Ministro - prolator do voto vencedor -, ao apartear o voto do Ilmo. Ministro Leitão de Abreu, ainda asseverou que:

"(...) É da tradição do Direito Tributário Brasileiro a multa moratória. Acontece que existe lei nova que introduziu em matéria fiscal a correção monetária. Que é a correção monetária senão uma forma de punir a mora? É um bis in idem. A correção monetária é aplicada não apenas sobre o crédito fiscal originário, mas também sobre a multa." (11) (grifos do original)

Nessa assentada, foi posta em análise o entendimento do tribunal paulista que havia decidido não ser mais aplicável a Súmula 191 do STF. Naqueles idos, já entendia o citado tribunal que não havia mais que se falar em espécies distintas de multas fiscais, tendo em vista as (relativamente) novas normas do Código Tributário Nacional. (12)

Contudo, apesar do esforço do relator(13) no sentido de se manter o debate nos termos em que fora proposto, a consagração da tese de inexistência de distinção entre multa fiscal punitiva e multa fiscal moratória(14) ainda não ocorreria nesta ocasião.

O verbete da Súmula 191 viria a ser cancelado somente no julgamento do RE 79.625, ementado com o seguinte teor:

"MULTA MORATÓRIA. SUA INEXIGIBILIDADE EM FALÊNCIA. ART. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, III, DA LEI DE FALÊNCIAS.

A partir do Código Tributário Nacional, Lei N. 5.172, De 25.10.966 não há como se distinguir entre multa moratória e administrativa. Para a indenização da mora são previstos juros e correção monetária.

RE não conhecido." (15)

Como se nota, entendeu-se que com o advento da Lei 5.172/66 - instituindo o Código Tributário Nacional - não havia mais motivo para se discutir a natureza da multa fiscal moratória, apresentando a mesma, a partir de então, um caráter punitivo.

De fato, o Código Tributário Nacional, no que tange às penalidades, não faz distinção entre as espécies de multa. Na verdade, até mesmo pelo contrário, estamos que o legislador do CTN tomou partido na questão, e o fez para afirmar que a multa moratória é uma espécie de penalidade. Assim, confira-se o artigo 134 do CTN, que ao estipular os atos e omissões que acarretam a transferência da responsabilidade tributária aos terceiros ali elencados, prescreve, em seu parágrafo único, que o disposto naquele artigo - no que tange às penalidades - só se aplica às (penalidades, frisa-se) de caráter moratório; tratando a multa moratória como genuína penalidade(16).

Neste contexto, veio a lume o verbete da Súmula 565, pacificando o entendimento do STF quanto à multa fiscal moratória, eis a sua redação:

"A multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no credito habilitado em falência"(17).

Enfim, pode-se inferir, extreme de dúvidas, que o único objetivo da multa moratória fiscal é apenar, repreender, castigar, possuindo a mesma um caráter eminentemente punitivo. Destarte, como já pacificado atualmente, a citada multa não se destina a recompor o poder aquisitivo da moeda, pois, que para isto se aplica o instituto da correção monetária; nem, da mesma forma, para recompor o patrimônio do sujeito ativo que deixou de receber seu crédito tributário a tempo e modo, o que é feito pelos juros.

Inoportuno, ainda, traçar-se qualquer paralelo entre a multa fiscal moratória e a cláusula penal do Direito Civil. Para tanto, de se notar a opinião, sempre arguta, de Sacha Calmon Navarro Coêlho, segundo o qual:

"No campo do Direito Privado, existem multas compensatórias ou indenizatórias e multas punitivas. A diferença é a seguinte: a multa punitiva visa sancionar o descumprimento do dever contratual, mas não a substitui, e a multa compensatória aplica-se para compensar o não-cumprimento do dever contratual principal, a obrigação pactuada, substituindo-a. Por isso mesmo, costuma-se dizer que tais multas são ´início de perdas e danos´. Ora, se assim é, já que a multa moratória do Direito Tributário não substitui a obrigação principal - pagar tributo - coexistindo com ela, conclui-se que a sua função não é aquela típica da multa compensatória, indenizatória, do Direito Privado (por isso que seu objetivo é tão-somente punir). Sua natureza é estritamente punitiva, sancionante." (18)

Ademais, às razões do nomeado mestre, acrescenta-se a observação de que as denominadas multas moratórias fiscais nunca são cobradas de forma e nem em montantes compatíveis com a finalidade de compensar ou indenizar a fazenda pública, fato que se presta a evidenciar a índole penal das mesmas.

Como nos juros, por via de regra, as multas moratórias têm o vencimento do tributo como termo inicial para o seu cálculo. Contudo - já diferentemente do que ocorre com os juros - as multas fiscais moratórias são aplicadas em percentuais fixos e progressivos, ou em função do "prazo de inadimplemento" ou em função da "ocorrência de determinado fato fixado pela legislação". Ademais, outro fator que as distanciam dos juros é o fato de que a legislação tributária estabelece um limite para o percentual a ser utilizado na aplicação da multa fiscal moratória. Por exemplo, atualmente, nos tributos de competência da União, a multa moratória é aplicada à razão de 0,33% (trinta e três centésimos por cento) por dia de atraso, limitada, porém, ao máximo de 20% (vinte por cento). Já no descumprimento das contribuições para com o I.N.S.S(19) o infrator fica sujeito à multa cobrada da seguinte forma: 4% (quatro por cento), dentro do mês de vencimento do tributo; 7% (sete por cento) no mês seguinte; atingindo o máximo de 10% (dez por cento) a partir do segundo mês seguinte ao do vencimento. Nos dois casos acima, ocorre a progressão da multa em função do "prazo de inadimplemento", nos percentuais máximos de 20% (no caso da União) e de 10% (no caso do I.N.S.S.).

A multa fiscal moratória passa por uma progressão em função da "ocorrência de fato determinado", por exemplo, quando ocorre notificação fiscal por parte do I.N.S.S., sendo os seguintes os fatos que determinam a progressão: a inscrição em dívida ativa, a ocorrência ou não de parcelamento e o ajuizamento da respectiva execução fiscal. Da mesma forma, a multa será elevada para 75% (setenta e cinco por cento) nos casos de notificação fiscal por parte da Receita Federal, podendo ser agravada para 150% (cento e cinqüenta por cento) na ocorrência de outro fato, qual seja a verificação do "evidente intuito de fraude" por parte do contribuinte. (20)

Assim, se por exemplo, o devedor pagar o tributo só após quatro anos, o valor da multa seria o mesmo daquele em que pagaria ao tempo em que o escalonamento da multa atingiu seu limite máximo (v.g., 20% no caso da União e 50% no caso do I.N.S.S).

No outro extremo, quando o sujeito passivo quita o crédito tributário com apenas um dia de atraso, estaria pagando já de saída um percentual que não mantém proporção adequada à uma eventual finalidade indenizatória ou compensatória (de 0,33% a 75% no caso da União e de 4% a 24%(21) no caso do I.N.S.S.).

Certamente, não se pretende revelar a natureza íntima da multa fiscal moratória através apenas da análise de seus percentuais, mas também por aí pode-se notar sua indisfarçável índole punitiva, buscando desestimular a conduta indesejada, a inadimplência.


3 - DA APLICAÇÃO DO INCISO III, PARÁGRAFO ÚNICO,
ARTIGO 23 DO DECRETO-LEI 7.661/45 EM BENEFÍCIO DOS CONCORDATÁRIOS

Uma vez firmado o posicionamento quanto à natureza punitiva das multas fiscais - moratórias ou não, conforme proclamado no verbete da Súmula 565 do STF – verifica-se o levantamento de nova tese, já posta sob a apreciação do Superior Tribunal de Justiça, qual seja a de que a exclusão das penalidades administrativas, entre elas as multas fiscais, alcançariam também os casos de concordata.

Para tanto, os defensores dessa tese pretendem-se amparados na regra insculpida no artigo 112 do Código Tributário Nacional. O citado artigo importa do direito penal, para aplicar na seara tributária, o princípio da interpretação benigna - in dubio pro reo.

"Art. 112 - A lei tributária que define infrações, ou lhes comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I - à capitulação legal do fato;

II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

III - à autoria, imputabilidade ou punibilidade;

IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação."

"O CTN dispôs, por outras palavras, que, em relação às penalidades, observe-se o caráter restrito do Direito Penal, infenso - salvo opiniões isoladas - à analogia. A máxima in dubio pro reo vale aqui também.(...)" (22) , disse-o Aliomar Baleeiro(23).

Paulo de Barros Carvalho, comentando o citado dispositivo, conclui que "Não poderia ser de outra maneira. Vigendo no direito tributário o princípio da estrita legalidade, que traz consigo a necessidade de uma tipificação rigorosa, qualquer dúvida sobre o perfeito quadramento do fato à norma (melhor dizendo, do conceito do fato ao conceito da norma) compromete aquele postulado básico que se aplica com a mesma força no campo do direito penal - in dubio pro reo." (24)

Pois bem, ao conjugar a norma do artigo 23, parágrafo único, inciso III, da Lei de Falências com o retrotranscrito artigo 112 do Código Tributário Nacional, alguns têm entendido que as multas fiscais não seriam exigíveis - também - na concordata.

Desta forma, aplicando-se a norma da interpretação benigna do art. 112 do CTN, tem-se ampliado o proveito em benefício dos comerciantes concordatários, não obstante a literalidade da norma da Lei de falências quanto à sua aplicação estrita aos casos de falência.

Neste sentido e com estas razões, vem decidindo a 1ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça:

"TRIBUTÁRIO – EMPRESA EM CONCORDATA – EXCLUSÃO DA MULTA FISCAL.

Em razão do disposto no artigo 112 do Código Tributário Nacional, que prevê a interpretação da lei tributária de maneira mais favorável ao contribuinte, deve-se afastar a exigência de multa fiscal contra empresa em concordata, aplicando-se a regra contida no artigo 23, parágrafo único, inciso II da Lei de Falências. (25) (26)

Contudo, a citada tese não resiste à uma análise mais detida da matéria, sobretudo se contrastada com os princípios básicos de hermenêutica, com as normas do próprio Código Tributário Nacional e, ainda, com a natureza distinta dos institutos da falência e a da concordata.

Como se sabe, a falência é um procedimento judicial de execução concursal. É através dela que os credores obtêm a satisfação de seus créditos, e por via de conseqüência, o devedor solve seus débitos, por intermédio do rateio de seu patrimônio. (27)

Já a concordata, por sua vez, consiste num "procedimento judicial visando a regularizar as relações patrimoniais entre o devedor comerciante, impontual ou insolvente, e seus credores quirografários, evitando, ou removendo os efeitos da falência." (28)

Desta diversidade de natureza jurídica entre os institutos da falência e da concordata que se verifica o primeiro comprometimento lógico da tese aqui hostilizada.

Assim, observa-se que a falência, entre outros aspectos, apresenta-se como uma execução extraordinária e coletiva (concursal), onde o patrimônio do falido assume uma natureza complexa - a massa falida - a responder por todos os débitos do falido. Contudo, o mesmo não pode ser dito da concordata, que opera tão-somente uma dilação, uma moratória, sob condições especiais, dos débitos do comerciante que se encontra abalado economicamente. "É uma forma legal de prorrogação de prazo ou de redução da dívida, com o objetivo de superar o estado de pré-insolvência do devedor comerciante ou industrial, evitando ou suspendendo a sua falência." (29)

Assim, cumpre inferir que o privilégio excepcional estatuído pelo art. 23, parágrafo único, inciso III, da Lei de Quebras só podia mesmo ser aplicável ao devedor falido. Relembrando a lição de Miranda Valverde, citada linhas atrás, chama-se a atenção para o fato de que a norma, procedida da legislação alemã, tem por escopo cumprir o princípio, já há muito consagrado nos ordenamentos jurídicos dos povos ditos civilizados, de que as penas não devem passar da pessoa do infrator. Assim, se se permitisse a incidência de penalidades administrativas, entre elas as fiscais, no patrimônio do falido, quem na verdade as suportaria seriam os credores.

Todavia, o mesmo não ocorre na concordata. Extreme de dúvida, ao se aplicar, por extensão, a citada norma aos concordatários, não se estará evitando a penalização dos credores, mas, beneficiando indevidamente o próprio concordatário. Ora, a própria concordata já representa um privilégio, privilégio de classe, já que só beneficia a classe dos comerciantes. (30) Não é qualquer um que pode dela se favorecer, mas tão-somente os comerciantes. Seria absurdo ampliar este privilégio que, para uma boa parte da doutrina, já é concedido em demasia. Assim, os comerciantes concordatários, além de terem os prazos de cumprimento de suas obrigações dilatados para quitá-las em condições excepcionalíssimas, ainda seriam beneficiados com a anistia das multas fiscais.

Acolhendo-se a este entendimento, decidiu com propriedade a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça:

"TRIBUTÁRIO. MULTA FISCAL. CONCORDATA.

O motivo que inspirou o artigo 23, inciso III, do Decreto-lei nº 7.661/45, excluindo as multas fiscais do processo de falência, foi o de evitar que essas penalidades fossem suportadas por terceiros alheios à infração; esse tratamento não se justifica no processo de concordata, porque implicaria favorecer o próprio infrator. Recurso Especial conhecido e improvido"(31)

Mas, a par da precisão das razões expostas neste acórdão, julgamos cabíveis, ainda, alguns outros argumentos, suficientes a demonstrar a incoerência da tese contrária.

Paulo de Barros Carvalho(32) assevera que "(...) a interpretação é um ato de vontade e um ato de conhecimento e que, como ato de conhecimento, não cabe à Ciência do Direito dizer qual é o sentido mais justo ou correto, mas, simplesmente, apontar as interpretações possíveis."

Então, se é justo ou não, ou, se é conveniente ou não conceder dita benesse ao comerciante concordatário é questão a ser debatida no parlamento, vale dizer, em momento pré-legislativo. Contudo, posta a questão sob a ótica da Ciência do Direito, a quem cabe conhecer e descrever seu objeto - a norma jurídica objetivamente posta - deve-se verificar se seria juridicamente válido extrair-se tal entendimento da norma sub examine.

De pronto, afirma-se que não.

A interpretação forçada do dispositivo legal da Lei de Quebras (art. 23, parág. único, inciso III), encontra severa e explícita resistência por parte do Código Tributário Nacional.

De fato, ampliando o favor legal aos concordatários, estar-se-á concedendo, por vias transversas, verdadeira anistia fiscal aos mesmos. Porém, não é permitido ao intérprete aplicar a analogia nem a interpretação extensiva nestes casos, tendo em vista a vedação expressa do artigo 111, inciso I, do CTN, ao prescrever que deve ser interpretada literalmente a legislação tributária que disponham sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário. (33) (34)

Do mesmo modo, o artigo 141 do CTN determina que só se exclui a exigibilidade do crédito tributário "nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei (...)".

De mais a mais, torna-se necessária uma releitura, desta feita um pouco mais atenciosa, dos termos do artigo 112 do CTN. Assim, há que se atentar para o fato de que este artigo prescreve a interpretação benigna a favor do acusado nos seguintes casos:

a. quando a lei prescreve penalidade ou comine infração; e

b. quando há dúvida quanto: 1) à capitulação legal do fato; 2) à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; 3) à autoria, imputabilidade ou punibilidade; 4) à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

Ora, de partida, cabe o seguinte questionamento: qual a dúvida que poderia advir da leitura do inciso III, parágrafo único do artigo 23 da Lei de Falências para se justificar a aplicação do art. 112 do CTN?

A literalidade e a clarividência dos termos do artigo 23 da Lei de Quebras não dá azo a qualquer digressão, porquanto a exclusão da pena pecuniária por infração às leis penais e administrativas só não são aplicáveis na falência. O artigo sequer faz menção às concordatas.

Com efeito, o citado dispositivo legal encontra-se inserido na Seção I, do Título II, que trata dos "Efeitos Jurídicos da Sentença Declaratória da Falência", não havendo, destarte, nenhuma referência à concordata, que vem a ser tratada pelo Decreto-lei 7.661/45 no seu Título X.

Ademais, este diploma legal ainda reserva o Título XIII para as "Disposições Gerais", traçando normas comuns aos institutos da falência e da concordata. Contudo, da mesma forma, daqui não se extrai nenhuma norma que opere a exclusão da exigência das penalidades administrativas pecuniárias dos concordatários.

Oportunos os ensinamentos de Gilberto de Ulhôa Canto(35) (36), quanto aos abusos - cada vez mais comuns - que se cometem a pretexto de se interpretar as normas:

"Um erro grave que no trato das questões tributárias se comete com lastimável freqüência é buscar na lei uma amplitude de aplicação que do seu teor não se infere. A título de lhes dar interpretação ´funcional´, compatível com a ´realidade econômica´, e outras expressões vazias de conteúdo, certas autoridades lançam-se com enorme açodamento na interpretação dos textos, como se eles tivessem, sempre, de ser interpretados. Na verdade, a lei deve ser lida, e entendida como se depreende do seu contexto. A interpretação é um processo gnoseológico de maior complexidade, que somente cabe quando (a) no seu texto não se encontre, de modo claro e conclusivo, um comando da norma (b) quando aquilo que deflui da mera leitura torna a regra legal inaplicável porque contra as leis da natureza, (c) quando um dispositivo de lei aparente, pela leitura, uma determinação que se choca com a de outro artigo da mesma lei, ou (d) quando a disciplina que ela estabelece na sua expressão vocabular é contrária ao sistema de direito positivo em que se insere. Fora desses casos, não há que interpretar a norma, e muito menos para descobrir nas suas palavras uma ordem que ela não formula.

Se ocorrendo alguma das situações mencionadas no parágrafo anterior, for necessário interpretar a lei, então isso deve ser feito com o emprego de todos os métodos exegéticos normalmente adotados e acolhidos pela teoria geral do direito, como o sistemático, o histórico, e o teleológico, do qual a dita ´interpretação econômica´ seria espécie. Mas, não há por que procurar num texto já suficientemente claro o que ele não diz, só porque na opinião do intérprete ele deveria ter dito. Os princípios da isonomia e da certeza das relações, com ênfase na estrita legalidade do tributo, todos eles muito bem expressos na Constituição vigente, devem ser respeitados de modo que se harmonize, e não como se um tivesse de sobrepor-se ao outro e afastar-lhe a incidência."

A admoestação feita por Gilberto de Ulhôa Canto refere-se à chamada "interpretação econômica", porém, os mesmos argumentos são plenamente aplicáveis para se alcançar o real sentido das normas do artigo 112 do CTN e do artigo 23, parágrafo único, inciso III, da Lei de Quebras.

A Segunda Turma do STJ também refutou a tese contrária usando os mesmos argumentos, verbis:

"TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. MULTA FISCAL. COBRANÇA DE EMPRESA CONCORDATÁRIA. POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.

I - É legítima a cobrança de multa fiscal em face de empresa em concordata.

II - A interpretação benigna, prevista no art. 112 do CTN, pressupõe a existência de dúvida objetiva na exegese da legislação fiscal. Não havendo divergência acerca da interpretação(37) da legislação tributária, o art. 112 do CTN não pode ser aplicado.

III - Precedentes do STJ: REsp. n. 9.571/RJ e REsp. n. 41.928/SP.

IV - Recurso Especial conhecido e improvido, "confirmando-se "o acórdão proferido pela Corte de segundo grau."

Entretanto, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça - data venia, persistindo no desacerto - vem firmando seu entendimento no sentido contrário, tendo assentando recentemente o seguinte:

"EXECUÇÃO FISCAL - EMPRESA CONCORDATÁRIA - MULTA - EXCLUSÃO.

Processual Civil e Tributário. ICM. Execução movida pela Fazenda Pública. Embargos. Embargante em concordata. Exclusão da multa moratória. Possibilidade. 1. Na espécie, encontrando-se a ora recorrida em concordata, evidenciando-se, destarte, a dificuldade de saldar as suas dívidas, é viável o afastamento da exigibilidade da multa moratória, consoante o artigo 112, do CTN, e seguindo corrente jurisprudencial oriunda do Pretório Excelso. Precedentes. 2. Embargos de Divergência conhecidos, para fazer prevalecer o v. Acórdão paradigma." (38)

O presente julgado espelha a posição da Primeira Turma, que adotou a tese em benefício dos concordatários, sempre por intermédio de argumentos cientificamente questionáveis.

Da mesma forma que a maioria dos acórdãos proferidos pela Primeira Turma, este julgado afirma estar seguindo "corrente jurisprudencial oriunda do Pretório Excelso". De fato, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 110.399, na data de 20.03.1987, a Segunda Turma do STF entendeu não ser aplicável à concordata "a regra do inciso III do parágrafo único do artigo 23 da lei de falências. E que a exigência fiscal não afeta, diretamente, o interesse dos credores, uma vez que é assegurada a continuidade dos negócios do devedor." No entanto, afastou-se a exigência da multa fiscal através da interpretação equivocada da norma do art. 112 do CTN.

Entrementes, já que se pretende ancorado no posicionamento do Pretório Excelso, o recente julgado da Primeira Seção do STJ está a negligenciar relevante fato, qual seja, o de que o STF já havia alterado seu posicionamento desde 05.03.1993.

Deste modo, o Recurso Extraordinário de nº 110.399 - supra referido - foi objeto da Ação Rescisória nº 1.316, julgada procedente pelo seu Tribunal Pleno, nos seguintes termos:

"EMENTA: AÇÃO RESCISÓRIA. ACÓRDÃO QUE EXCLUIU MULTA FISCAL DA RESPONSABILIDADE DE CONCORDATÁRIA, MEDIANTE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA NORMA DO ART. 23, PARAGRAFO ÚNICO, INC. III, DO DECRETO-LEI N. 7.661/45. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 97, INC. VI; 111 E 112, INC. II, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E NO ART. 23, PARAGRAFO ÚNICO, INC. III, DA LEI DE FALÊNCIAS.

A norma do art. 23, parágrafo único, inc. III, da Lei n. 7661/45, que exclui da falência as multas penais e administrativas, não tem aplicação na concordata, que não sujeita a empresa ao regime de liquidação, razão pela qual o pagamento das ditas penalidades não se reflete senão sobre o próprio concordatário, não alterando os índices fixados para o saldo das contas de seus credores quirografários.

Caso em que a decisão impugnada aplicou normas jurídicas que a espécie não comportava.

Configuração da hipótese do art. 485, V, do CPC.

Procedência da ação." (39)

Assim sendo, também incabível buscar guarida no entendimento do STF para se estender os benefícios do art. 23, parágrafo único, inciso III, do Decreto-lei 7.661/45 aos comerciantes concordatários.

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Sobre o autor
Gilberto S. Amarante

advogado em Belo Horizonte, técnico da Receita Federal, mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Gilberto S.. Da exigibilidade da multa fiscal na Lei de Falências e Concordatas: (Decreto-Lei 7.661/45). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/765. Acesso em: 22 dez. 2024.

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