Em meu texto anterior, "E-commerce e Regulação Jurídica: Direitos do Consumidor" escrevi sobre a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos empreendimento como um todo.
Pois bem. Um dos direitos que o Código de Defesa do Consumidor estabelece é o direito de arrependimento quando a compra ocorre fora do estabelecimento comercial. Vejam:
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Este dispositivo surgiu, pois, entendeu-se que os métodos de venda fora do estabelecimento comercial retiravam o poder de reflexão do consumidor, sujeitando-o a compras impulsivas.
Segundo os comentários dos próprios autores do código, a premissa é que quando o consumidor deseja realizar uma compra, ele faz cotações, examina as especificações e, posteriormente, vai a um estabelecimento comercial previamente escolhido e ciente do que irá adquirir.
Agumentam que, de modo diverso, ocorre nas vendas fora do estabelecimento, como a venda de porta a porta, por telefone, por catálogo, por fax, dentre outras hipóteses, mais comuns à época do surgimento da lei.
Ocorre que tal regra é de 1990, quando da edição do Código de Defesa do Consumidor. Neste período, os telefones e computadores eram pouco acessíveis e não havia uma cultura de consumo a distância no Brasil. Sequer se poderia imaginar que o comércio eletrônico e a internet se difundiriam tão profundamente como ocorre hoje.
Para se ter ideia, somente em 1994 a Embratel iniciou o serviço de acesso à internet em caráter experimental, com funcionamento definitivo em maio de 1995.
Vê-se, portanto, que a legislação consumeirista foi criada em época totalmente diversa da atual, em que o comércio eletrônico e as inovações tecnológicas são protagonistas no mercado.
Pois bem.
Tendo em conta a expressão "fora do estabelecimento comercial", contida no artigo 49 o CDC, bem como, o fato do consumidor não ter acesso físico ao produto, a doutrina e as decisões judiciais majoritaritárias entendem que o direito de arrependimento se aplica às compras realizadas no comércio eletrônico.
Ademais, o decreto n° 7.962/13, editado para trazer normas mais específicas ao E-commerce, disciplinou que a contratação por este meio deve respeitar o direito ao arrependimento.
Há, porém, uma posição divergente na doutrina, encabeçada por Fábio Ulhoa Coelho, entendendo pela não aplicação do direito de arrependimento na internet em alguns casos.
Segundo Ulhoa, não havendo práticas agressivas de marketing por determinado fornecedor via comércio eletrônico, de modo a inibir a reflexão do consumidor, não há que se falar em direito de arrependimento no E-commerce.
Em meu julgamento, vou ainda mais além do entendimento de Ulhoa: o direito ao arrependimento não deve ser adotado na internet, independentemente das práticas de marketing adotadas.
Ora, no comércio eletrônico, é o consumidor quem opta por clicar ou "desclicar" nas páginas de sua preferência, de maneira muito mais cômoda e, ainda, sem pressão de vendedores, tal como ocorre em lojas presenciais. Consegue comparar preços e produtos de vários estabelecimentos e marcas em poucos minutos; tem acesso a comentários de consumidores que adquiriram determinado produto, criticas à empresa que o comercializa, vídeos e demonstrações do produto no próprio site da empresa ou em canais do youtube e blogs, etc.
Não é possível militar, no estado de tecnologia atual, que a compra online não permite ao consumidor se informar inteiramente acerca das características do produto ou serviço adquirido.
Tal regra pode gerar um oportunismo por parte dos consumidores, além do fato de haver infinitos casos peculiares, que pioram ainda mais a situação. Pode, por exemplo, o consumidor que comprou móveis pela internet, ciente de todas as medidas, componentes, cores e demais especificações técnicas, arrepender-se? E se ele mesmo deu as especificações para fabricação do móvel, fornecendo as medidas e cores desejadas?
Fato é que a legislação na seara consumeirista tende a favorecer excessivamente o consumidor, partindo da premissa de que quanto mais direitos, melhor. Contudo, isso cria custos de transação e incerteza aos comerciantes, o que é internalizado nos preços/lucros do negócio (afinal, quanto maior o risco, maior deve ser o retorno, não?!).
Em resumo: o preço aumenta e todos consumidores pagam para alguns se arrependerem, pois “consumiram por impulso”.
Muito embora a doutrina e a jurisprudência seja majoritária no sentido de aplicação do direito de arrependimento no comércio eletrônico, é possível verificar algumas divergências.
Conforme mencionado, o doutrinador Fabio Ulhoa Coelho, influentíssimo na academia jurídica, defende que só há direito de arrependimento em caso de marketing agressivo no e-commerce.
Em alguns tribunais estaduais, também é possível encontrar exceções.
Nos processos 0002317-28.2012.8.07.0018 , 0069072-96.2005.8.19.0001, 0040776-88.2010.8.19.0001 e 0164391-13.2013.8.19.0001, por exemplo, entendeu-se que o direito ao arrependimento não é aplicável na compra de passagens aéreas, pois, a venda de passagens na internet proporciona as mesmas condições que a venda presencial, e o direito ao arrependimento só é aplicável quando a compra realizada fora do estabelecimento não proporciona uma aquisição consciente do produto/serviço e suas qualidades.(*)
Apesar de raras, as decisões judiciais e autores que mitigam o direito ao arrependimento no comércio eletrônico, cabe ao advogado, nos tribunais e, sobretudo, na academia, debater e argumentar cada vez mais este tema, defendendo uma aplicação mais coerente do CDC ao comércio eletrônico.
A legislação consumeirista e, principalmente, o pensamento jurídico, devem ser atualizados e compreender as particularidades do mercado de consumo atual, eliminando incoerências que geram custos de transação desnecessários.
Nota
(*) A ANAC editou a regulamentação n° 400 em 2016, regrando o direito de se desisitir da passagem aérea adquirida sem qualquer ônus no prazo de 24 horas do recebimento do comprovante, desde que a compra tenha sido realizada com antecedência de no mínimo sete dias do embarque.