Essencialidade do inquérito policial brasileiro

27/09/2019 às 10:57
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O inquérito policial é o instrumento mais importante em toda a persecução penal. Este artigo teve por objetivo demonstrar esse fato.

1 INTRODUÇÃO

Será demonstrado neste artigo a essencialidade do inquérito policial durante toda a persecução penal. Sua finalidade e importância vai muito além a de servir de base ao oferecimento da denúncia pelo promotor de justiça, uma vez que tudo que nele for trabalhado irá repercutir nos demais atos futuros durante a ação penal.

 

2 A POLÍCIA NO BRASIL (SEGURANÇA PÚBLICA)

Nas palavras de Marcelo Novelino (2018, p.768), o artigo 144 da Constituição Federal lista os órgãos de Segurança Pública (não se confundindo com as forças armadas). Segundo o artigo mencionado, a segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio, exclusivamente, dos seguintes órgãos: (I) polícia federal; (II) polícia rodoviária federal; (III) polícia ferroviária federal; (IV) polícias civis; (V) polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Para evitar divergências, o Supremo Tribunal Federal consolidou sua jurisprudência ao afirmar que o rol do artigo 144 da Constituição Federal, que relaciona os órgãos de segurança pública, é taxativo, de modo que não pode ser ampliado por Constituição Estadual. Portanto, não há a possibilidade de incluir outros órgãos entre aqueles previstos no artigo supramencionado.

Leciona Rodrigo Padilha (2018, p.937) que o termo “segurança” significa garantia, proteção e estabilidade. Diversas formas de segurança nos são apresentadas pelo Direito, como a segurança jurídica, a segurança social (seguridade social) e a segurança pública. Assim, segurança pública constitui um mecanismo de tutela institucional, buscando preservar ou restabelecer a ordem pública e a paz social.

A polícia pode ser classificada em preventiva, administrativa ou ostensiva, sendo aquele que busca manter e preservar a ordem pública e a paz social (normalmente representada pela Polícia Militar) e repressiva, judiciária ou investigativa, sendo a polícia criada para investigar ofensas e restaurar a ordem pública e paz social (sendo em regra as funções da Polícia Civil).

O autor conclui explicando que apesar da diferenciação constitucional em tipos de polícia, colocando a polícia militar como ostensiva e a polícia civil como repressiva, esta distinção esta cada vez mais se apagando, pois é comum a polícia militar exercer atividade repressiva e a civil preventiva.

Interessante ressalva deve ser feita em relação ao exposto. Apesar de excepcionalmente, e muitas vezes de forma necessárias, um determinado órgão policial pode exercer as funções de outro (exemplo; Investigadores “fardados” realizando patrulhamento com fins preventivos e Policias Militares realizando diligências investigativas sem farda para localizar um suspeito de roubo). Isso não pode se tornar uma regra. Cada órgão público integrante do artigo 144 da Constituição Federal é capacitado para uma determinada função, e toda a formação do polícial dentro daquele órgão (seja em cursos ofertados pelo próprio órgão ou mesmo o próprio processo de formação do policial na academia de polícia) é destinado a sua especialidade.

Talvez, para evitar esses problemas (dentre muitos outros) deveríamos ter ou uma polícia unificada (ao invés de Policia Civil e Militar, uma Polícia Estadual), com funções distintas, onde caso o Policial apresentasse uma vocação para a investigação ou para o patrulhamento ostensivo, bastaria ele ser designado para esta função dentro da mesma instituição.

Sem mais delongas, como o objetivo deste artigo é demonstrar a importância do inquérito policial para o processo penal, será tratado com mais detalhamento a Polícia Civil e a Federal, órgãos onde o procedimento administrativo inquisitivo do inquérito é mais presente.

A Polícia Federal é o órgão mantido e administrado pela União. Exerce as funções de polícia judiciária a ser desempenhada quando a competência para apuração e julgamento do delito seja da Justiça Federal.

A Polícia Civil exerce a função de Polícia Judiciária, tendo como objetivo a apuração das infrações de competência da justiça estadual. Existe exceção apenas em relação as infrações militares, onde as investigações são realizadas pelas polícias militares através do Inquérito Policial Militar.

Segundo Alexis Couto de Brito (2019, p.101), além da função judiciária, a Polícia Civil também poderá exercer funções administrativa e preventiva especializada. Como Polícia Administrativa, poderá ser encarregada da prestação e controle de atividades de caráter puramente administrativo, ou seja, que não tenha como objeto a investigação de uma infração penal, mas que pela importância estratégica do serviço prestado, deverá permanecer sob a fiscalização policial. É o caso dos Departamentos Estaduais de Trânsito, dos Institutos de Identificação Civil, dentre outros. Como atividade preventiva especializada, a Polícia Civil complementa e auxilia a atividade da polícia ostensiva, atuando diretamente em regiões ou tipos de infração penal para a redução focalizada de determinados delitos.

Ainda, segundo o referido autor, qualifica-se, assim, de Polícia Judiciária o órgão estatal responsável pela atividade investigatória e auxiliar das atividades judiciais voltadas à investigação do fato criminoso (crime ou contravenção) e de sua autoria, bem como ao cumprimento de quaisquer outras diligências requisitadas pelo Judiciário, necessárias à prestação de sua atividade jurisdicional.

 No Direito Brasileiro, a exemplo da maioria dos países de influência romano-germânica, a Polícia Judiciária integra o Poder Executivo, ou seja, é órgão da Administração Pública Federal ou Estadual. Portanto, embora receba o adjetivo Judiciária, este indicativo apenas faz referência ao tipo de atividade que será prestada pelo órgão policial.

Em relação a classificação da Polícia Civil como polícias judiciária, leciona Norberto Avina (2019, p.299) que na atualidade, outra concepção tem vigorado, inclusive referendada pelo STF e pelo STJ , a qual, embora sem afastar as atribuições relacionadas à polícia administrativa,  reclassificou o que antes, consubstanciava apenas a polícia judiciária em polícia judiciária e polícia investigativa, compreendendo-se, na primeira, as atividades de auxílio ao Poder Judiciário no cumprimento de suas ordens (por exemplo, a execução de mandados de busca1, o cumprimento de ordens de prisão e a condução de testemunhas) e, na segunda, a atribuição relacionada à colheita de provas da infração penal em todos os seus aspectos (autoria, materialidade, ilicitude etc.).

 

3 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO INQUÉRITO POLICIAL

Nas palavras de Alexis Couto de Brito (2019, p.100), o termo inquérito deriva do verbo inquirir, que significa pesquisar, investigar, querer saber. É o nome utilizado para designar um procedimento oficial, legal e formal para se apurar um fato criminoso. O mais comum dos inquéritos é o conduzido pela polícia, e, portanto, nomeado inquérito policial. Mas diante do preciso significado da expressão, outras legislações acabaram por adotar a mesma designação, e encontramos outros tipos de inquéritos voltados tanto a fatos civis ou administrativos, quanto presididos por outras autoridades.

Segundo Renato Brasileiro (2019, p.109) o inquérito policial pode ser conceituado como o procedimento administrativo inquisitório e preparatório, presidido pela autoridade policial. O inquérito policial consiste em um conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa objetivando a identificação das fontes de prova e a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade da infração penal, a fim de possibilitar que o titular da ação penal possa ingressar em juízo.

Trata-se de um procedimento de natureza instrumental, porquanto se destina a esclarecer os fatos delituosos relatados na notícia de crime, fornecendo subsídios para o prosseguimento ou o arquivamento da persecução penal.

Ainda, segundo o mesmo autor, de seu caráter instrumental, podemos atribuir uma dupla função.

Pela primeira existe uma função preservadora, pois a existência prévia de um inquérito policial inibe a instauração de um processo penal infundado, temerário, resguardando a liberdade do inocente e evitando custos desnecessários para o Estado.

Já a segunda seria a função preparatória. Por esta função, o inquérito fornece elementos de informação para que o titular da ação penal ingresse em juízo, além de acautelar meios de prova que poderiam desaparecer com o decurso do tempo.

No mesmo sentido, inquérito policial para Norberto Avina (2019, p.299) compreende o conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial para obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade das infrações penais investigadas, permitindo ao Ministério Público (nos crimes de ação penal pública) e ao ofendido (nos crimes de ação penal privada) o oferecimento da denúncia e da queixa-crime. Tratando-se de um procedimento inquisitorial, destinado a angariar informações necessárias à elucidação de crimes, não há ampla defesa no seu curso.

Por fim, para Eugênio Paelli (2019, p.94), o inquérito policial, atividade específica da polícia denominada judiciária, ou seja, a Polícia Civil, no âmbito da Justiça Estadual, e a Polícia Federal, no caso da Justiça Federal, tem por objetivo a apuração das infrações penais e de sua autoria (art. 4º, CPP).

A denominação de polícia judiciária somente se explica em um universo em que não há a direção da investigação pelo Ministério Público, como é o brasileiro. Quem preside e conduz o inquérito policial é o Delegado de Polícia ou o Delegado de Polícia Federal. Apenas eles, como se sabe e vem garantido em Lei (12.830/13 – art. 2º, § 1º).

Tratando-se de ação penal pública, na qual, tal como ocorre com a jurisdição, a processualização da persecução penal é monopolizada, o inquérito policial deve ser instaurado de ofício pela autoridade policial (delegado de polícia, estadual ou federal), a partir do conhecimento da existência do cometimento do fato delituoso. A notícia do crime, ou notitia criminis, pode ser oferecida por qualquer pessoa do povo e, obviamente, pode ter início a partir do próprio conhecimento pessoal do fato pela autoridade policial (art. 5º, § 3º, CPP).

O doutrinador Victor Eduardo Rios Gonçalves (2018, p.45), em seu livro Processo Penal Esquematizado, lista as seguintes características relacionados ao inquérito policial:

 

a) Ser realizado pela Polícia Judiciária (Polícia Civil ou Federal).

A presidência do inquérito é exercida pela autoridade policial (delegado de polícia ou da Polícia Federal). Para a realização das diligências, é auxiliado por investigadores de polícia, escrivães, agentes policiais etc. De acordo com o art. 2º, § 1º, da Lei n. 12.830/2013, “ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”.

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Os membros do Ministério Público podem acompanhar as investigações do inquérito (art. 26, IV, da Lei n. 8.625/93) e até instaurar procedimentos investigatórios criminais na promotoria. Contudo, se instaurado inquérito no âmbito da Polícia Civil, a presidência caberá sempre ao delegado de polícia e, em hipótese alguma, a órgão do Ministério Público.

O fato de determinado promotor de justiça acompanhar as investigações do inquérito não o impede de propor a ação penal, não sendo considerado, por tal razão, suspeito ou impedido. Nesse sentido, a Súmula n. 234 do Superior Tribunal de Justiça: “a participação de membro do Ministério Público na fase investigativa criminal não acarreta seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”.

 

b) Caráter inquisitivo.

O inquérito é um procedimento investigatório em cujo tramitar não vigora o princípio do contraditório que, nos termos do art. 5º, LV, da Constituição Federal, só existe após o início efetivo da ação penal, quando já formalizada uma acusação admitida pelo Estado-juiz.

Apesar do caráter inquisitivo, que torna desnecessário à autoridade policial intimar o investigado das provas produzidas para que possa rebatê-las, é possível que ele proponha diligências à autoridade ou apresente documentos que entenda pertinentes, cabendo à autoridade decidir acerca da realização da diligência solicitada ou juntada do documento. A lei faculta, ainda, a apresentação durante a investigação, por parte do advogado do investigado, de quesitos relacionados à realização de prova pericial (art. 7º, XXI, a, da Lei n. 8.906/94). A própria vítima da infração penal também possui esse direito de requerer diligências.

 

c) Caráter sigiloso.

De acordo com o art. 20 do Código de Processo Penal, “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Resta claro, pela leitura do dispositivo, que sua finalidade é a de evitar que a publicidade em relação às provas colhidas ou àquelas que a autoridade pretende obter prejudique a apuração do ilícito.

 

d) É escrito.

Os atos do inquérito devem ser reduzidos a termo para que haja segurança em relação ao seu conteúdo.

 

e) É dispensável.

A existência do inquérito policial não é obrigatória e nem necessária para o desencadeamento da ação penal. Há diversos dispositivos no Código de Processo Penal permitindo que a denúncia ou queixa sejam apresentadas com base nas chamadas peças de informação, que, em verdade, podem ser quaisquer documentos que demonstrem a existência de indícios suficientes de autoria e de materialidade da infração penal.

Entretanto, apesar de dispensável, grande parte das denúncias atualmente são ofertadas com base no inquérito policial.

 

4 FINALIDADE E IMPORTÂNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL.

Roberto Brasileiro (2019, p.109) ensina que a partir do momento em que determinado delito é praticado, nasce para o Estado o poder/dever de punir o autor do ilícito.

Para que o Estado possa dar início a persecução criminal em juízo, é indispensável a presença de elementos que informem a autoria e a materialidade da infração penal. Ademais, é necessário a presença de um lastro probatório mínimo apontando no sentido da prática de uma infração penal e da probabilidade de o acusado ser o seu autor. O próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 395, inciso III, com redação dada pela Lei n° 11.719/08, aponta a ausência de justa causa para o exercício da ação penal como uma das causas de rejeição da peça acusatória.

Daí a importância do inquérito policial, instrumento geralmente usado pelo Estado para a colheita desses elementos de informação, viabilizando o oferecimento da peça acusatória quando houver justa causa para o processo, mas também contribuindo para que pessoas inocentes não sejam injustamente submetidas às cerimônias degradantes do processo criminal.

Ainda, segundo o referido autor, esses elementos de informação colhidos no inquérito policial são decisivos para a formação da convicção do titular da ação penal sobre a viabilidade da acusação, além de exercerem papel fundamental em relação à decretação de medidas cautelares pessoais, patrimoniais ou probatórias no curso da investigação policial. De fato, para que medidas cautelares como a prisão preventiva ou uma interceptação telefônica sejam determinadas, é necessário um mínimo de elementos quanto à materialidade e autoria do delito. Além disso, também são úteis para fundamentar eventual absolvição sumária (CPP, art. 397).

Por fim, sendo que o juiz irá julgar com base naquilo que foi ofertado na denúncia, e esta tem por base na imensa maioria das vezes o próprio inquérito policial, fica óbvio a sua importância para toda a persecução penal.

Apesar de diversos atos, como o interrogatório, serem repetidos na fase judicial, devido a ausência do contraditório e ampla defesa durante as investigações policiais (lembrando que em algumas oportunidades ele está presente, como nos acordos de colaboração premiada previstos na lei 12.850/2013), tais atos normalmente são realizados com base no que foi trabalhado durante as investigações policiais.

Exemplo: via de regra o juiz irá ouvir os depoimentos das pessoas já ouvidas na fase pré processual, possibilitando o contraditório e a ampla defesa; as partes irão contestar o laudo pericial que foi lavrado a pedido do Delegado de Polícia e posteriormente juntado aos autos do inquérito; as provas que serão contestadas, serão aquelas colhidas durante a investigação policial.

 

5) BIBLIOGRAFIA

AURY, Lopes Jr. Fundamentos do Processo Penal, Introdução Crítica. 5ª ed; Saraiva, São Paulo, 2019.

AVENA, Norberto. Processo Penal. 11º ed. Método; Goiás, 2019.

BRASILEIRO, Renato de Lima. Manual de Processo Penal. 7º ed. Juspodivm, 2019

BRITO, Alexis Couto de Brito.  Processo Penal Brasileiro, 4º ed. Atlas, 2019.

GONÇALVES, Eduardo Rios. Direito Processual Penal. 7º ed. Saraiva, 2018.

MADEIRA, Guilherme. Curso de Processo Penal . 2ª ed. Revista dos Tribunais; São Paulo, 2016.

NOVELINO, Marcelo. Constituição Federal para Concursos. 9º Ed; Jus Podivm; Bahia, 2018.

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal . 23º ed. Atlas; São Paulo, 2019.

PADILHA, Rodrigo. Direito Constitucional. 5º ed; Método; Goiás, 2018.

 

 

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Sobre o autor
André Luis Turri

Escrivão de Polícia, graduado em Direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, especialista em Direito e Processo Penal, especialista em Direito Público com ênfase em Gestão Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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