Considerações finais
Exposto o quadro fático e as normas que regem a matéria, bem como as circunstâncias que cercaram o caso, conclui-se que os AFTs goianos extrapolaram suas atribuições legais, pois a lei não lhes dá amparo para auditar estoques de farmácias para verificar se estão adequados às necessidades do hospital, para investigar se os medicamentos corretos estão sendo ministrados aos pacientes, para averiguar se o número de médicos de UTIs ou de comissões de controle de infecção hospitalar está adequado ao número de leitos, e, o mais grave, para avaliar a confiabilidade do ato médico a ponto de interditar o exercício profissional de médicos. As impropriedades chegaram ao ponto de eles, os agentes fiscais, se valerem de “opiniões médicas” emitidas por quem não tem competência legal para diagnosticar doenças e, a partir delas, decretar a interdição de atividade de profissionais da saúde, acarretando sérios riscos à saúde dos pacientes hospitalizados.
A interdição de atividade médica implica obstáculo ao exercício da profissão. Tanto é verdade que os AFTs impuseram à direção do Hospital a redução dos atendimentos de urgência e emergência. No plano abstrato, essa é a principal ilegalidade cometida pelos agentes da Inspeção do Trabalho. Em vista do que foi argumentado, os AFTs responsáveis correm o risco de se verem incursos na alínea j do art. 3º da Lei n.º 4.898/65 (praticar qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional), bem como na alínea h do art. 4º da mesma Lei (ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal), tipos que caracterizam o abuso de autoridade. Quem representou criminalmente corre o risco de se ver no polo oposto. Como diz a sabedoria popular, pau que bate em Chico, bate em Francisco.
As extravagâncias perpetradas pela equipe de AFTs resultam de uma peculiar visão jurídica. Eles são inspirados pela máxima de que a proteção ao trabalhador vai além de portarias, decretos, leis ou da Constituição Federal. E que o enfrentamento de problemas reais e complexos que afetam a vida e integridade de trabalhadores reais deve fugir da lógica alienante, de “check-lists”, protocolos e ritos infralegais vergonhosos. Intitulam-se “guerreiros”. Nessa perspectiva, apresentar dados técnicos parece ser, para eles, um rito infralegal vergonhoso. E respeitar atribuições de outras autoridades e órgãos faz parte de uma lógica alienante.
É assim que o ativismo judicial veio bater às portas da Inspeção do Trabalho, dando origem ao que se poderia chamar de ativismo administrativo.
Nesse contexto, são válidas as inúmeras críticas a esse desvio. Por ora, transcrevo a visão incisiva do magistrado federal Roberto Wanderley Nogueira expressa no artigo Ativismo judicial destrói o Estado Democrático de Direito, publicado na Revista Eletrônica Conjur39. Diz ele:
“A propósito disto, toda falta de consciência de limites é vício radical que torna imprestável o agente de Estado quanto ao exercício das atribuições de competência que lhe foram confiadas igualmente. Um tal exercício é, no sentido de Norberto Bobbio (“Teoria do Ordenamento Jurídico”), antinônimo da ordem jurídica e atenta contra a estabilidade das Instituições da República, quer a atuação resulte de ignorância técnica, quer provenha de motivação decidida nessa mesma direção antinômica da ordem constitucional e legal.”
Episódios desse tipo põem em xeque a legitimidade da instituição Inspeção do Trabalho. A legitimidade aqui é aquela caracterizada pelo magistrado e professor George Marmelstein em A Judicialização da Ética 40 . Ele chama a atenção para a discussão sobre a legitimidade democrática dos juízes para decidirem questões sensíveis, e anota o sentido de legitimidade para se referir ao grau de respeito, confiança, aceitação e aprovação da sociedade em relação ao poder heterômano. E mais adiante, lembra que quando se fala em poder, fala-se em seu efeito narcótico: quanto mais se tem, mais se quer. “O abuso, com boas ou más intenções, é inevitável”, diz ele41.
Pois é sob esse mesmo marco da legitimidade que se pode afirmar que a legitimidade da Inspeção do Trabalho vem sendo afetada negativamente por conta de excessos e abusos derivados de entusiasmos desgovernados embalados por subjetivismos ativistas e egos napoleônicos. Vale lembrar o episódio em torno da caracterização de trabalho degradante pela falta de suporte para sabonete e cabide para toalhas próximos ao chuveiro em um alojamento42, em meio a outras infrações mais graves que não mereceram atenção da mídia. A isso se soma agora a interdição, por AFTs, de atividades médicas e de enfermagem em hospital público de urgências em Goiás, o diagnóstico de doenças com base em avaliações de enfermeiras e farmacêuticas, a ingerência de auditores-fiscais em estoques de farmácias, sobre os medicamentos mais apropriados aos pacientes e absurdos do tipo. Além, é claro, da potencialização de riscos para os cidadãos que necessitassem dos serviços de urgência e emergência e dos pacientes já internados, situação que revela um paradoxo: para afastar médicos e enfermeiros de condições de riscos graves e iminentes abstratos que lhes causavam ansiedade e estresse, os auditores-fiscais do trabalho decidiram que era melhor o estresse e a ansiedade serem suportados pelo pacientes e cidadãos que necessitassem de atendimentos de urgência.
A medida despropositada e irracional, adornada com subterfúgios de aparente legalidade, pode até impressionar leigos da mídia e autoridades republicanas que nada sabem dos meandros da atividade da inspeção laboral. Mas, ao fim, afeta negativamente o respeito, a confiança e a aprovação da Inspeção do Trabalho junto à sociedade e às demais instituições públicas envolvidas com a questão, como os conselhos regionais de profissões, a Vigilância Sanitária e o Ministério Público. Não será por meio de ações extravagantes e tresloucadas que a Inspeção do Trabalho terá sua legitimidade fortalecida. Ocorre justamente o contrário. Condutas personalistas acabam por confirmar discursos generalistas de que “servidores fazem o que querem”. O caso aqui narrado corrobora essa narrativa.
No caso concreto, essa percepção negativa resulta também do olhar complacente de dirigentes da Inspeção do Trabalho. Essas autoridades têm o dever de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo (Lei 8.112/90, art. 116, I), em especial a vigilância e o controle43 dos procedimentos fiscais como forma de preservar a legalidade e a moralidade na atuação dos AFTs, estado funcional que garante, ao fim, a legitimidade da instituição junto à sociedade. Na época dos fatos aqui relatados, o cargo de secretário de Inspeção do Trabalho era exercido pelo AFT Claudio Secchin. E em matéria de segurança e saúde no trabalho, a tarefa incumbia ao então Diretor do Departamento de Segurança e Saúde da Secretaria de Inspeção do Trabalho, o AFT Kleber Pereira de Araújo e Silva44.
Essa complacência deu curso à saga. Nos últimos dias de abril de 2019, os AFTs goianos determinaram a interdição total do Hospital Materno Infantil de Goiânia. Matéria jornalística sobre o fato revela algumas situações que, em tese, ensejariam a interdição de áreas e de equipamentos45. Porém, o inusitado nesse caso é que a interdição foi decretada após quatro meses de auditoria fiscal trabalhista naquele estabelecimento de saúde. Se existiam situações de grave e iminente risco para a segurança e saúde dos trabalhadores, elas pairaram como ameaças a esses trabalhadores sem que algum AFT envolvido na ação fiscal tivesse a iniciativa de expedir uma notificação para adoção de medidas técnicas de cumprimento imediato conforme determina o inciso XI do art. 18. do RIT ante cada irregularidade grave encontrada.
Essa foi uma das razões que a juíza do Trabalho da 10ª Vara do Trabalho de Goiânia suspendeu a interdição, segundo noticiado pela imprensa46. Em conformidade com a notícia, a magistrada ponderou que a determinação da interdição só foi feita após meses de instalação da auditoria realizada, o que geraria dúvida sobre a urgência. Além disso, ela teria argumentado que não havia documentos que demonstrassem que o Estado tivesse sido notificado, no prazo, para mudanças nas condições indicadas.
Podemos inferir a razão para tal disparate: notificação para cumprimento imediato não rende repercussão na mídia; interdição, sim.
Como dito, este ensaio crítico é uma forma de exercer o controle social sobre a Inspeção do Trabalho, apontando os erros e excessos que precisam ser combatidos. Espera-se que na gestão atual a disciplina seja uma componente importante para preservar a legitimidade da Inspeção do Trabalho e o Direito. Um passo importante é a conscientização das autoridades e dos AFTs de que os agentes da Inspeção do Trabalho não têm a tão propalada “independência funcional”. A independência que advogam é submissa à vigilância e ao controle por parte da autoridade central da Inspeção do Trabalho, conforme preconiza a própria Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em seu art. 4º, item 147.
A resposta cabe à nova gestão da Inspeção do Trabalho no Brasil. E a depender dela, corre-se o risco de o Brasil adotar o modelo da Inspeção do Trabalho Tabajara, aquela que usa soluções mirabolantes ou gambiarras jurídicas como soluções para problemas do mundo do trabalho.
Certamente surgirão opiniões acolhendo a iniciativa dos AFTs sob a justificativa de que a ação surtiu efeito, pois o MPF, comunicado do fato pela Inspeção do Trabalho, agiu na esfera judicial e obteve medida judicial que garantiu recursos públicos do Estado de Goiás para que o Hospital voltasse a prestar serviços de saúde para a população. Todavia, é preciso rememorar a observação do jurista e professor George Marmelstein quando chama a atenção para o efeito narcótico do poder e a inevitabilidade do abuso do poder, com boas ou más intenções. Em um Estado Democrático de Direito, não se deve ceder espaços para o abuso de poder com boas intenções. A ação dos AFTs deveria ter se limitado à auditoria das condições de trabalho dos médicos, enfermeiros, farmacêuticos e demais trabalhadores no estabelecimento de saúde, mas jamais ter ultrapassado esse limite e avançar para estado de coisas que não são da competência da Inspeção do Trabalho, especialmente a interdição de atividades de profissionais, usurpando prerrogativa do Cremego. Eventual omissão do Cremego – que, diga-se, é contrariada pelos fatos – não constitui motivação para o abuso de poder com boas intenções.
Notas
1 POSNER, Eric. OS ESTADOS UNIDOS ESTÃO SE ENCAMINHANDO PARA UMA DITADURA?. REI - REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, [S.l.], v. 1, n. 1, p. 302-306, jan. 2016. ISSN 2447-5467. Disponível em: <https://estudosinstitucionais.com/REI/article/view/20/30>. Acesso em: 04 jul. 2019. doi:https://doi.org/10.21783/rei.v1i1.20.
4 TRT da 14ª Região. Segunda Turma. Processo 0010450-12.2013.5.14.0008.
5 Esse é o conceito adotado pela Norma Regulamentadora n.º 3 (NR-03), sobre embargo e interdição.
6 edificações, riscos ambientais, equipamentos de proteção individual e coletivo, instalações elétricas, ergonomia, insalubridade, periculosidade, máquinas e equipamentos, condições sanitárias, conservação e limpeza, sinalização de segurança, sistema contra incêndio, entre outras.
7 Classe 3: risco individual elevado para o trabalhador e com probabilidade de disseminação para a coletividade. Podem causar doenças e infecções graves para o ser humano, para as quais nem sempre existem meios eficazes de profilaxia ou tratamento. Classe 4: os mesmos riscos da classe 3, com probabilidade elevada de disseminação e grande poder de transmissibilidade de um indivíduo para outro, com as mesmas restrições para profilaxia e tratamento do risco 3.
8 STF. Adin 953, Acórdão do Plenário, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 21.05.2003. Adin 1.893, Acórdão do Plenário, Rel. Min, Carlos Velloso, DJ de 23.06.2004. Adin 2.609, Acórdão do Plenário, Rel. Min. Dias Toffoli, DJ de 15.12.2016.
9 Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução n.º 7/2010. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2010/res0007_24_02_2010.html
10 https://www.medicinanet.com.br/pesquisa/cid10/nome/stress.htm
11 https://www.medicinanet.com.br/pesquisa/cid10/nome/ansiedade.htm
12 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n.º 2.062/2013..Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2013/2062
13 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011. p. 263/264.
14 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011. p. 216.
15 VELLOSO, Galba. Desvio de Poder. Doutrina – Jurisprudência – Aplicação Prática. São Paulo : Malheiros, 2007. p. 15.
16 Lotados na Superintendência Regional do Trabalho de Goiás, em Goiânia.
17 Disponível para leitura e download em: https://is.gd/cGUcdB
18 Disponível para leitura e download em https://is.gd/termodeinterdicaohugo
19 Silva, M. da C. de M., & Gomes, A. R. da (2009). Stress ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com médicos e enfermeiros portugueses. Estudos de Psicologia, 14.3, 239-248. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/epsic/v14n3/a08v14n3
20 Disponível em https://is.gd/entrevista_presidente_cremego
21 Ata de audiência na Procuradoria Regional da República em Goiás. Disponível em: https://is.gd/CcF4Cb
22 Pedido de informação PR-GO-00010095/2019, respondido via e-mail 366/2019, de 15/03/2019.
23 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/pronto-socorro-do-hospital-santa-marcelina-em-sp-e-interditado-pela-vigilancia-sanitaria.ghtml
24 Portal G1 noticia interdição do Hugo. Disponível em https://is.gd/ministerio_interdita_hospital
25 Conselho Federal de Farmácia; Resolução n.º 558, de 09.10.017 – DOU de 11.10.2017, Seção 1, p. 176/178.
Conselho Federal de Enfermagem:
26 Disponível para leitura e download em https://is.gd/laudodemanutencaodeinterdicao
27 Logo após a interdição, o relatório técnico foi divulgado em grupo virtual de discussões dos AFTs. Ciente do caso, repassei o relatório ao então secretário de Inspeção do Trabalho Cláudio Secchin alertando para ilegalidades, ao que ele agradeceu pela minha “preocupação”.
28 Nota à imprensa: disponível em https://www.emaisgoias.com.br/wp-content/uploads/2018/10/NOTA-AFT-sobre-o-HUGOx-1.pdf
29 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado: estudo integrado com processo e execução penal: apresentação esquemática da matéria: jurisprudência atualizada. 14. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, 2014. p. 1.319.
30 Idem, p. 1.319.
31 MPF. Ação Civil Pública. Disponível em: https://is.gd/2SRsk7
32 G1: Justiça Federal bloqueia R$ 27,5 milhões do Estado de Goiás para pagar dívidas do Hugo. Disponível em: https://is.gd/8bCyMe Acesso em: 26/02/2019.
33 https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2019/01/21/governo-de-goias-decreta-estado-de-calamidade-financeira.ghtml
34 https://sagresonline.com.br/noticias/politica/85611-confira-as-principais-polemicas-da-campanha-de-2018
35 https://g1.globo.com/go/goias/noticia/hospital-e-interditado-pelo-cremego-por-falta-de-estrutura-fisica-materiais-e-medicamentos-em-goiania.ghtml
36 Dados sobre a pesquisa do CFM em unidades básicas de saúde. Disponível em: https://is.gd/oEOfuL
37 Dados sobre a pesquisa do CFM em unidades básicas de saúde. Disponível em: https://is.gd/oEOfuL
38 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-16/comite-cnj-propoe-cuidados-saude-mental-juizes
39 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-06/opiniao-ativismo-judicial-destroi-estado-democratico-direito
40 LIMA, George Marmelstein. A judiciallização da ética. Brasília: Conselho de Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2018. Série monografias do CJF; V. 30, p. 47, nota 73.
41 Idem,, p. 63.
42 https://veja.abril.com.br/brasil/trabalho-degradante-ate-falta-de-saboneteiras-gera-acoes/
43 Convenção 81, sobre a inspeção do trabalho na indústria e comércio, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), art. 4º, 1: “Tanto quanto isso for compatível com a prática administrativa do Membro, a inspeção do trabalho será submetida à vigilância e ao controle de uma autoridade central.” Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235131/lang--pt/index.htm
44 Regimento Interno da Secretaria de Inspeção do Trabalho (Portaria n.º 1.153, de 30/10/2017, Anexo IX art. 22, inciso II).
45 https://globoplay.globo.com/v/7582080/
46 https://www.dm.com.br/politica/2019/05/apos-decisao-da-justica-pedido-de-interdicao-do-hospital-materno-infantil-e-suspenso.html
47 Convenção 81 da OIT. “Art. 4. – 1. Tanto quanto isso for compatível com a prática administrativa do Membro, a inspeção do trabalho será submetida à vigilância e ao controle de uma autoridade central.” Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235131/lang--pt/index.htm. Acesso em: 11/07/2019.