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Direito Internacional Privado.

Parte Geral

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Resumo:


  • O Direito Internacional Privado (DIP) é o ramo da ciência jurídica que estabelece princípios e regras para determinar a lei aplicável às relações jurídico-privadas internacionais, assegurando o reconhecimento e a aplicação de situações jurídicas constituídas sob a égide de um sistema de direito estrangeiro.

  • A regra de conflitos é o instrumento utilizado pelo DIP para coordenar a aplicação de diferentes sistemas jurídicos, indicando a lei competente para reger determinada relação jurídica internacional, com base em elementos de conexão como a nacionalidade, o domicílio ou a residência das partes envolvidas.

  • A qualificação é um processo fundamental no DIP que visa determinar quais normas jurídicas materiais de um ordenamento jurídico competente se subsumem ao conceito-quadro da regra de conflitos, levando em conta o conteúdo e função que essas normas assumem no sistema jurídico em questão.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Lei A

Lei B

Lei C

Nulo

Anulável

Anulável

Prazo de 3 anos

Prazo de 1 ano

Qual a lei que devemos aplicar?

A opinião do curso é a de que nesta situação, como o negócio jurídico jamais será válido, devemos aplicar a lei que invalida menos, ou seja, a lei C, pois passado 1 (um) ano, o negócio jurídico estabiliza-se, tornando-se inatacável.

Outros autores, contudo, entendem que, se o negócio jurídico em causa jamais poderá ser considerado válido, não vamos promover o resultado material desejável; e se já não há um resultado material a prosseguir, vamos escolher a conexão que tenha um contacto mais forte com a situação, ou seja, a lei competente para regular a substância do referido negócio, pois é essa a lei que está em primeiro lugar e porque já a nível histórico a tendência é conseguir um estatuto unitário para os negócios jurídicos (forma e substância reguladas pela mesma lei).

Imaginemos agora que há duas leis que consideram o negócio jurídico válido e a outra como inválido, ou até as três o consideram como válido. Por qual das leis em concurso devemos optar?

De acordo com o que dissemos supra, devemos aplicar a lei apontada pela primeira conexão, ou seja, aquela que for competente para regular a substância do negócio em causa, pois devemos prosseguir os fins do DIP.

Contudo, também se pode pensar em regras de conexão una ou simples (ou seja, que só têm uma conexão ― v.g.: para os imóveis só se aplica a «lex rei sitae») que também tenham em vista um determinado resultado material.

1.Regras que facilitam a constituição de certos estados ou que visam assegurar certas faculdades ou liberdades jurídicas (artigo 60º, n.º 2 do Cód. Civ. ― promove a constituição do vínculo da filiação adoptiva).

Há certos ordenamentos jurídicos em que, pelo menos na altura em que outros ordenamentos proibiam o divórcio, tinham determinadas regras que possibilitavam a dissolução do vínculo conjugal, ou seja, escolhiam o ordenamento jurídico que possibilitasse o divórcio.

Outro caso: não se concedia um estatuto próprio à mulher casada; determinadas ordens jurídicas propendiam para escolher as normas que concediam mais liberdades.

2.Regras de conflitos que visam a protecção, em termos mais amplos e mais efectivos, de uma determinada pessoa (em regra a parte mais débil ― «favor personae»).

O artigo 45º do Cód. Civ. que prescreve as regras da responsabilidade civil extracontratual trata de uma regra de conexão múltipla subsidiária (há duas conexões, sendo que se a primeira não puder ser aplicada aplica-se a segunda que vai ser aplicada segundo critérios materiais e não meramente localizadores).

2.4.3. Terceiro nível de aproximação

Próximo da materialização (mas não se confundindo com ela) nota-se, amiúde dos sistemas conflituais, uma sensibilização à influência do fim e conteúdo das normas materiais como passo importante na determinação da sua aplicação espacial.

Visa-se a análise do conteúdo material das normas para determinar o seu âmbito de aplicação espacial.

Quais os três momentos?

a)Qualificação;

b)adaptação; e

c)regras espacialmente auto-limitadas.

2.4.3.1. A qualificação

A consideração do conteúdo e escopo dos preceitos jurídico-materiais releva também no momento da qualificação. Isto é válido para quem aceite a ideia de que toda a qualificação em DIP ou, pelo menos, a chamada qualificação secundária (que é uma qualificação de normas e não de relações jurídicas ou de factos).

O que se pretende é: dada uma lei potencialmente aplicável a determinada situação jurídica em virtude de uma regra de conflitos do foro, devemos averiguar se essas normas regulativas daquele tipo de situações correspondem à categoria normativa visada pela própria regra de conflitos e expressa pelo respectivo conceito quadro. Para tal, haverá que analisar-se, à luz do seu escopo ou função sócio-jurídica, os preceitos materiais cuja aplicação está justamente em causa. Se tais preceitos não se ajustarem às características definidas pelo conceito-quadro da regra de conflitos, terá de concluir-se pela sua inaplicabilidade.

Porém, deve ser dito que não se trata de aplicar (ou não) tal preceito em virtude da sua aptidão (ou não) para realizar a justiça material no caso concreto, ou porque a política em que se inspira comanda ou, antes, desaconselha a sua aplicação. O que decide da aplicação do preceito é tão somente a circunstância de ele se destinar, no ordenamento jurídico a que pertence, a desempenhar uma função normativa idêntica ou, pelo menos, semelhante àquela que o legislador do foro teve em vista ao estabelecer a regra de conflitos em causa. Importa que o preceito material em análise constitua, de alguma forma, uma resposta à questão formulada pela regra de conflitos, mas sem que releve para quaisquer efeitos o teor concreto da resposta.

O problema que se põe não é um problema de escolha entre dois preceitos ou duas séries de preceitos materiais provenientes de legislações diferentes, e isso quer em função do resultado ou que uns e outros levariam no caso de espécie, quer atendendo às políticas por elas prosseguidas. Não se trata, em suma, de estabelecer um confronto entre aqueles preceitos, mas sim entre determinado preceito de direito material, nacional ou estrangeiro, e uma regra de conflitos do foro.

2.4.3.2. A adaptação

Há hipóteses em que se impõe o recurso ao método das soluções materiais «ad hoc».

Na tentativa de resolver os problemas suscitados pelas relações plurilocalizadas deparamos, por vezes, com situações de «cúmulo jurídico» ou de «vácuo jurídico». Na primeira hipótese, trata-se de uma concorrência de normas, porventura, contraditórias; na segunda hipótese verifica-se a ausência de toda e qualquer norma aplicável.

Esta problemática, característica de todo o direito, assume especial relevo em DIP., sendo uma das questões mais complexas oferecidas por este ramo do direito. Estas situações devem, sempre que possível, ser obviadas através da criação de regras de conflitos especiais (regras de segundo grau ou de segundo escalão) e, só quando esta via esteja precludida é que deverá recorrer-se ao mecanismo da adaptação ― comparando as normas dos ordenamentos em presença, combinando-as, tentaremos encontrar uma solução que, respeitando-lhes o sentido ou a «ratio», se adapte à realidade do caso vertente. Esta técnica da adaptação é extremamente complicada e falível e, como tal, já o dissemos, só em casos extremos é que se deverá lançar mão dela.

O ponto de vista que se defende é que, perante situações de «cúmulo» ou de «vácuo» jurídico, a primeira coisa a fazer é tentar descobrir uma regra de conflitos especial, uma regra de conflitos de segundo grau ou de segundo escalão. Não sendo isso viável, deverá, então, recorrer-se à adaptação. Aliás, a adaptação tanto pode recair sobre normas de direito material, como sobre normas de DIP A forma mais importante e conhecida de adaptação é a que incide sobre preceitos jurídico-materiais.

Por força do processo de especialização («dépeçage»), visa-se resolver o problema das extradições normativas.

No DIP., quando uma questão é suscitada, só raramente é que a podemos resolver recorrendo a uma só regra de conflitos. Ou seja, cada questão pode levantar vários problemas, problemas estes que o juiz deverá separar aplicando, a cada um deles, a sua regra de conflitos, e desse facto podem resultar soluções contraditórias tendo o juiz que corrigir isto através de uma concordância prática ou hierarquização dos princípios.

Há uma incompatibilidade dos efeitos jurídicos produzidos por leis diferentes, mas que são aplicáveis por força da regra de conflitos; contudo, não podendo a decisão do juiz ser contraditória, impõe-se que seja operada uma correcção através de «uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão e no uso de uma faculdade quase legislativa» (BAPTISTA MACHADO).

2.4.3.2. Normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas

O método tradicional de dirimir os conflitos de leis, como já ficou dito, abriu-se com certa largueza ao aproveitamento e valorização de critérios de justiça material e do conteúdo e escopo das normas de direito substantivo possivelmente aplicáveis ao caso concreto.

As normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas são normas que só se querem aplicar às situações da vida que se encontram ligadas à ordem sócio-jurídica do respectivo Estado por uma conexão espacial de certo tipo, desde que essa conexão seja expressamente estabelecida pelo próprio preceito material, ou desde que isso pudesse deduzir-se do seu escopo. A especificidade destas normas reside exactamente em estas serem normas de direito material internas que, para além de estabelecerem uma disciplina material, recortam, elas próprias, o seu âmbito espacial de aplicação através de um processo técnico muito semelhante ao das regras de conflitos (mas têm uma actuação diferente da regra de conflitos, já que são as próprias normas materiais que vão delimitar o seu âmbito de aplicação material). Contudo, é do próprio fim visado pela norma que derivam os limites impostos à sua aplicação material.

Podem ser formuladas expressamente ou implicitamente (infere-se por interpretação de uma norma ou conjunto de normas por parte do tribunal ou por parte da doutrina).

Ainda estão dentro do método conflitual, pois elas mesmas inscrevem uma regra de conflitos «ad hoc» ao delimitar o seu campo de aplicação espacial, mas não se confundem com as regras de conflitos.

Não se trata propriamente de emitir um juízo sobre a competência de uma lei estrangeira, mas, tão somente, sobre o domínio de aplicação de uma norma da lei previamente definida como aplicável a dado caso. Por consequência, a falta do elemento de conexão exigido implicitamente pela norma só conduz ao seu afastamento, mas não ao afastamento da legislação em que se insere, cuja competência aquela circunstância em nada afecta.

Como a norma espacialmente auto-limitada é, por via de regra, uma norma especial, a sua não aplicação só determinará que se passe à aplicação do preceito de direito comum.

Se o juiz da causa se depara, ao analisar o ordenamento jurídico declarado competente pela regra de conflitos do foro, com uma destas normas espacialmente auto-limitadas de que temos vindo a ocupar-nos, não terá ele outra atitude a tomar que não seja a de conformar-se estritamente com o que resulta da mesma norma ou da disposição anexa. Aqui é do próprio preceito material (da sua «ratio») que decorrem os elementos modeladores desse âmbito; e se a razão da lei se incorpora na própria lei, não tomar em conta aqueles elementos modeladores seria atraiçoar a mesma norma a que eles pertencem e de que fazem parte integrante.

A doutrina exposta tem certas semelhanças com a doutrina de CURRIE. Pois não pretende CURRIE resolver os conflitos de leis determinando o campo de aplicação de cada norma através de uma análise da «policy» que lhe está subjacente?

Sem dúvida que sim. No entanto, há uma diferença fundamental entre as duas posições. A de CURRIE define-se por uma atitude de rejeição radical das regras de conflitos: o autor pensa ser possível e necessário inferir de cada norma de direito material (da sua «ratio» ou da sua «policy») o seu domínio de aplicação espacial. Diferentemente, a ideia central da teoria exposta é que, se se verifica que o fim da norma concreta delimita efectivamente, por si próprio, o respectivo campo de aplicação, há que aceitar todas as implicações deste facto. Na verdade, aplicar a norma espacialmente auto-limitada fora das fronteiras que lhe assinalam, seja, embora, só de maneira implícita, o seu escopo e fundamento, redundaria, em última análise, em aplicar uma norma diferente... não aquela norma, mas outra.

Do exposto resulta que o reconhecimento da categoria das normas materiais espacialmente auto-limitadas é um factor, ao lado de outros, que propicia a relevância, no âmbito do direito conflitual, do elemento representado pelo conteúdo e fins dos preceitos jurídico-materiais das leis concorrentes.

Afinal, o DIP actual está bem longe de ser aquele conjunto de regras de conexão de actuação mecânica, cegas para o conteúdo das normas substanciais concorrentes e para os valores de justiça material que tantos autores e, seguramente, muitos dentre os melhores se empenharam durante anos a criticar.

São duas as modalidades que podem assumir as normas espacialmente auto-limitadas:

a)normas espacialmente auto-limitadas em sentido estrito (que são de carácter restritivo); e

b)normas espacialmente auto-limitadas de carácter ampliador (são as NANI).

2.4.3.2.1. Normas espacialmente auto-limitadas de carácter restritivo

São normas do ordenamento jurídico do foro que exigem, para se aplicarem a uma situação internacional, um contacto mais forte relativamente ao contacto exigido pela regra de conflitos (têm, portanto, uma aplicação mais restrita). Um determinado ordenamento jurídico vai ser competente para reger um certo complexo de situações, mas dentro desse ordenamento inscreve-se uma norma deste tipo. Isso significa que aquela norma não vai ser aplicada porque ela própria não se quer aplicar (elas só se aplicam a situações especiais, exigindo sempre um contacto mais forte com a situação a regular).

Exemplos característicos deste tipo de normas são os artigos. 36º do DL 248/86 (EIRL), 33º do Cód. Civ. e 3º do Código das Sociedades Comerciais., pois para que este diploma seja aplicável, não basta que o EIRL tenha sede real e efectiva em Portugal, é ainda preciso que ele tenha sido constituído em Portugal (critério da constituição).

2.4.3.2.2. Normas espacialmente auto-limitadas de carácter ampliado (NANI)

São normas materiais que delimitam (pelo seu fim e conteúdo) o seu âmbito de aplicação espacial e que exige um contacto mais ténue e menos exigente do que o exigido pela regra de conflitos, tendo, assim, uma força expansiva e aplicando-se mesmo que o ordenamento jurídico onde se inserem não se queira aplicar (são exactamente o contrário das outras).

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Em regra, pela regra de conflitos o ordenamento jurídico onde se inserem não é o competente, mas elas exigem um contacto mais ténue e são, por isso, expansivas.

- Visam proteger os interesses do foro.

- São de aplicação necessária porque se aplicam de forma imperativa, não admitindo, por isso, postergação, já que visam proteger valores caros do ordenamento jurídico onde se inserem.

- São de aplicação imediata porque prescindem (e podem, inclusivamente, preceder) da actuação da regra de conflitos.

Isto muito embora suponham sempre um contacto espacial (elas inserem uma regra de conflitos específica unilateral «ad hoc»).

2.5. O Direito Internacional Privado Material

A concepção clássica do DIP busca a solução dos seus problemas através da regra de conflitos ― é este o sistema ou via conflitual, segundo o qual, em face de cada situação da vida e da questão jurídico que, no caso, se levanta, a regra de conflitos relativa a esse tipo de questões dirá qual a conexão relevante e, desse modo, qual a lei aplicável.

Contudo, este não é o único caminho que se nos apresenta. Em alternativa, oferece-se a solução de proceder à regulamentação das relações privadas internacionais através da criação de normas especiais de direito material.

As normas de DIP material são manifestações de um método diferente do método conflitual e que consiste na criação de normas materiais especiais para regular as situações internacionais.

Tal solução tem um célebre precedente histórico: o «ius gentium» que não era outra coisa senão um sistema de regras materiais aplicáveis às relações dos cidadãos romanos com os peregrinos (já nesta altura existiam normas específicas para regular as situações internacionais).

ROBERTO AGO entende que, para a resolução dos problemas do DIP., tanto se poderia seguir o rumo tradicional como, ao invés, optar pela criação de um sistema particular de normas de direito material aplicáveis às relações que se apresentam como estranhas à vida jurídica do Estado local.

2.5.1. Vias pelas quais os defensores de uma maior «materialização» do DIP fizeram avançar as suas propostas

a)Redefinição do papel do juiz no processo, dando-lhe o poder ― mais ou menos vinculado a alguns critérios ― de escolher a lei mais adequada à resolução da situação concreta ou de criar, mesmo, uma nova norma no caso de as circunstâncias assim o exigirem.

Nos ordenamentos jurídicos da família romano-germânica, o juiz não é a instância mediadora entre a lei e o caso, não competindo a ele actualizar a intenção normativa do legislador de forma a que o direito a aplicar resultasse de uma criação judicial. A mais, o juiz também não é a «viva vox iuris civilis».

Na Europa continental, a tentativa de «materializar» o DIP não foi prosseguida por orientações que privilegiassem o poder do juiz, e isso deve-se, principalmente:

- a tradicional desconfiança perante a actividade judiciária, vista quase unanimemente como fonte de arbítrio e desigualdades.

Porque a lei, em princípio, resultado da vontade dos órgãos representativos, é o resultado da emancipação da sociedade perante o soberano, ele é o instrumento privilegiado da realização da justiça entre os «cives» e as suas fórmulas possuem algo de mágico no tocante às virtualidades de assegurar, dentro do espaço e do tempo, que a sua vigência abrange a perfeita justiça.

O juiz, que é titular de uma força do Estado de dignidade equiparável às restantes, quase surge como um mero órgão de ligação, desprovido de qualquer autonomia na operação de aplicar os comandos legais a um qualquer caso concreto a eles subsumido.

b)Criação de normas especiais de direito material para regulamentarem as relações privadas internacionais.

2.5.2. Modalidades de normas de DIP material
2.5.2.1. Normas de DIP material de fonte interna

As normas de DIP material de fonte interna podem ter as seguintes origens:

a)legislativa;

b)jurisprudencial; e

c)doutrinal.

2.5.2.1.1. Normas de DIP material de origem legislativa

A elaboração na ordem interna dos Estados de um sistema completo de normas aplicáveis a determinada categoria de situações internacionais não corresponde a qualquer firme tendência do direito contemporâneo. Ao invés, é com certa frequência que nos deparamos, nas leis internas dos diferentes Estados, com normas materiais expressamente criadas para regular determinados aspectos de certas situações internacionais. Trata-se de normas que se aplicam fora do domínio definido pelas regras de conflitos do ordenamento jurídico a que pertencem, mas cuja aplicação depende, em todo o caso, da existência de um elemento de conexão entre a situação a regular e o respectivo ordenamento jurídico. Exemplos:

- Código Comercial da antiga Checoslováquia ― normas materiais específicas para as situações internacionais: o sistema jurídico interno era diferente do sistema que deveria reger as situações internacionais (países de ideologia comunista).

Contudo, mesmo aqui não se prescindia do critério espacial: as normas só se aplicavam quando as regras de conflitos estabeleciam a competência do seu ordenamento jurídico.

- O artigo 2223º do Cód. Civ., que disciplina o testamento, estabelece que, se o testamento tiver sido feito no estrangeiro por um português, este testamento só pode ser válido em Portugal se tiver sido observada uma formalidade solene (é uma regulamentação específica; não remete para nenhum ordenamento jurídico, pois dá já a solução).

- O artigo 52º, n.º 2 do Cód. Civ., «in fine», que disciplina o casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de um português com um estrangeiro, estabelece que, em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicação (aqui está a norma material).

- Os artigos. 32º e 35º da Lei 31/86, de 29 de Agosto regula a arbitragem internacional quando esta ocorre em Portugal (critério espacial).

- O artigo 3º, n.os 2 a 6, do CSC., que regula as transferências internacionais da sede das sociedades comerciais, é uma regulamentação específica para as situações internacionais.

- O artigo 3º, n.º 1, 2ª parte, do CSC., dispõe sobre o relevo da sede estatutária em Portugal quando a sociedade seja estrangeira (sem sede real e efectiva em Portugal).

2.5.2.1.2. Normas de DIP material de origem jurisprudencial

As normas materiais de que até agora nos ocupamos apresentam a dupla característica de serem normas de fonte legislativa e de inspiração internacionalista, regras inspiradas pela intenção de dar satisfação adequada às necessidades específicas do comércio jurídico internacional. Todavia, elas não operam à margem do jogo das regras de conflitos, antes o pressupõem.

Há, contudo, outras normas materiais, de elaboração jurisprudencial (também de inspiração internacionalista) que se poderia dizer estarem libertas do jogo das regras de conflitos, pois actuariam só pelo facto de o litígio pertencer à esfera de competência dos tribunais locais..

Nós entendemos que a criação, por via jurisprudencial, de tais regras de DIP material não é de encorajar. Não é pelo facto de essas regras se inspirarem nas necessidades específicas do comércio internacional que elas perdem a natureza de normas de direito interno: são normas especiais de direito interno. É, portanto, indispensável, para que a sua intervenção se torne legítima, que o problema surja num litígio que tenha com o Estado do foro alguma conexão efectiva... alguma conexão válida à luz dos princípios gerais do DIP Por outro lado, é chocante que um Estado reserve para as relações nascidas da vida jurídica internacional um tratamento diferente do que dispensa às relações puramente internas.

VON MEHREN invoca a esse respeito o princípio da igualdade, advertindo que aquela diferença de tratamento só se justifica quando as circunstâncias exijam claramente o afastamento da norma representada pelas soluções do direito interno comum.

Contudo, estas considerações em nada infirmam o que dissemos acerca das normas materiais espacialmente auto-limitadas. Em nosso entender, o recurso a esta figura permitirá corrigir boa parte dos resultados «inadequados» a que conduziria a aplicação pura e simples, aos casos internacionais, das normas mediante as quais a «lex fori» procede à regulamentação das relações de direito interno.

O direito especial das relações internacionais, onde, porventura, exista, quer provenha de fonte legislativa ou de fonte jurisprudencial, não exclui ou não deve excluir o processo conflitual clássico.

Em regra, acontece no ordenamento jurídico francês. Numa situação interna ou internacional as partes celebram um contrato e, adstrito a este contrato, um acordo compromissório.

- Nas situações jurídicas internas, quando o contrato é inválido, o acordo também o é.

- A jurisprudência, contudo, construiu uma norma de DIP material diferente: a nulidade do contrato não acarreta a nulidade do acordo, assim, há a criação de um regime específico para as situações internacionais, regime este estabelecido pelos próprios aplicadores do direito.

2.5.2.1.3. Normas de DIP material de origem doutrinal

Há uma variante doutrinal das normas de DIP material (mas não é bem uma fonte interna).

VON MEHREN adopta uma visão salomónica do DIP., propugnando pela conciliação e reconhecimento dos pontos de vista de todos os ordenamentos jurídicos em contacto.

Caso NEUMEIER vs. KUEHNER (1972)

Coloca-se questão da responsabilidade do transportador pelos danos causados ao passageiro transportado gratuitamente, na hipótese de acidente de viação. O transportado era nacional de Ontário, foi convidado por um amigo nova-iorquino a dar um passeio no seu automóvel através desse país, veio a falecer em consequência dos ferimentos aquando da colisão do carro com um comboio; o carro, de matrícula nova-iorquina, era conduzido pelo proprietário na ocasião do acidente. O Ordenamento jurídico de New York concedia o direito à indemnização ao transportado gratuitamente em caso de acidente, enquanto que o ordenamento jurídico de Ontário não concedia tal direito ao transportado gratuitamente. Na acção de indemnização, o tribunal de New York considerou aplicável o direito de Ontário e, consequentemente, absolveu o réu.

VON MEHREN observa que para chegar a esta conclusão o tribunal qualificou o conflito de leis como falso, considerando que a «guest-passenger law» do Ontário, dada a sua «ratio», teria sido julgada aplicável, no caso em exame, pelos tribunais desse Estado. A conclusão é contestada pelo autor: ele pensa que um tribunal do Ontário teria justamente aplicado, no caso vertente, o direito em vigor em New York. É perante um autêntico conflito de leis que nos encontramos ― um dos sistemas é favorável e o outro contrário à indemnização pedida ― conflito negativo: cada uma das jurisdições interessadas aplicaria a regra da outra.

Neste tipo de casos, VON MEHREN entende que é possível uma solução de compromisso, uma solução que conceda um certo reconhecimento às «políticas» em que se inspiram as duas leis concorrentes e que, por essa razão, seria aceitável para ambas; o que nos poria no caminho da harmonia de decisões. Neste caso, a solução de compromisso poderia consistir em reconhecer-se ao sucessor «mortis causa» do passageiro canadiano o direito a metade da indemnização correspondente aos prejuízos sofridos, pois a dita solução conciliaria ambas as perspectivas.

A ideia fundamental do autor: «dever-se-iam reconhecer os pontos de vista de todas as ordens jurídicas que tenham uma pretensão fundada a controlar uma certa situação multinacional, de harmonia com a medida do interesse de cada uma delas em tal situação».

A colocação do problema nestes termos implica uma concepção do DIP que nós não podemos aceitar. Há casos em que se faz mister olhar ao conteúdo de duas leis, operando numa delas, ou eventualmente em ambas, as adaptações ou ajustamentos tornados necessários pelo facto de a situação em causa se encontrar sujeita aos dois sistemas em virtude das regras de conflitos da «lex fori». O problema que aí se levanta é justamente o da adaptação.

É necessário, para que se torne legítimo recorrer ao expediente ou técnica da adaptação, que ambas as leis em presença sejam chamadas pelas normas de DIP do forum a resolver a questão de direito suscitada. Quanto a nós, o problema de saber se esta condição se encontra preenchida não pode solucionar-se tentando determinar quais as leis que, pelos resultados que visam, têm um interesse legítimo na situação multinacional considerada e podem, por isso, reivindicar o respectivo controle: o problema não pode resolver-se senão tomando em consideração:

- as finalidades gerais do DIP.; e

- os objectivos específicos visados nos seus diferentes sectores.

Não cremos que no caso Neumeier a situação «sub judice» apresentasse com o direito do Estado de New York um vínculo suficiente para justificar a aplicação deste sistema jurídico. Logo, o tribunal de New York decidiu correctamente o problema, ao declarar aplicável (unicamente) a lei do Ontário.

Não nos parece que a solução preconizada por VON MEHREN constitua um compromisso aceitável para ambas as ordens jurídicas interessadas. Não é para nós claro que se possa dizer que a lei do Ontário se julgava «desinteressada» nesse caso e não queria ser-lhe aplicada. Se admitirmos que a «guest-passenger law» aponta para dois alvos, sendo um deles desencorajar e frenar a ganância dos passageiros ingratos, não podemos deixar de entender que, então, a norma alcança logo à cabeça os residentes do Ontário «transportados em veículos que circulem no interior do país». São eles, naturalmente, os primeiros destinatários da norma, na medida em que esta se apoie no fundamento indicado.

Esta teoria cria uma situação de insegurança, pois é o próprio juiz que constrói a solução material.

2.5.2.2. Normas de DIP material de fonte internacional

As normas de DIP material de fonte internacional podem surgir por ocasião de:

a)convenções de unificação; e

b)leis uniformes.

2.5.2.2.1. Convenções de unificação

Estabelecem regras materiais específicas para as relações internacionais, continuando as relações internas a ser regidas por normas internas, ou seja, estabelecem regras exclusivamente destinadas a certa classe de relações internacionais, deixando subsistir em cada Estado contraente o direito interno nacional, mas restringindo a aplicação desse direito às relações não internacionais. A maior parte dessas convenções limitam a aplicação do respectivo direito uniforme ou às relações que se desenvolvam entre dois Estados contraentes, ou àquelas que tenham certa conexão com o território de um desses Estados (v.g.: Convenção de Varsóvia sobre transporte aéreo internacional).

Outras convenções há, porém, que prescindem desse elemento de localização, devendo as regras uniformes por ela criadas aplicar-se a quaisquer relações internacionais da categoria em vista.

2.5.2.2.2. Leis uniformes

Ao lado das convenções de unificação, encontramos as convenções que estabelecem leis uniformes cujo destino é serem incorporadas na ordem jurídica interna dos Estados contraentes para aí passarem a constituir direito comum da matéria jurídica a que respeitam, ou seja, as leis uniformes estabelecem regimes jurídico materiais aplicáveis tanto às situações internacionais como às internas.

2.5.3. Argumentos a favor desta teoria

1.O processo clássico teria o inconveniente de gerar soluções não adequadas à especificidade dos casos autenticamente internacionais. As leis internas são elaboradas tendo em vista as situações da vida jurídica nacional e a elas apenas seriam dirigidas. As relações verdadeiramente internacionais dizem respeito a interesses e levantam problemas que lhes são peculiares. Resolver estes problemas através da aplicação de normas de direito interno é ignorar o risco inevitável de se chegar a soluções inapropriadas.

2.Por outro lado, as dúvidas e as incertezas que são inerentes ao método conflitual dificultam, ao mais alto nível, o desenvolvimento do comércio internacional. O método conflitual não é de molde a propiciar a realização da confiança, facilidade e segurança que é necessária no DIP.

3.Criar por via legislativa as regras de conflitos mais ajustadas à natureza das várias matérias do direito privado é uma tarefa deveras complexa. E, se isso é grave, não menos grave é o problema da sua interpretação e aplicação (controvérsias como a qualificação, o reenvio, a ordem pública, a adaptação).

4.Há um desajustamento profundo entre o DIP como direito de conflitos e os objectivos para que aponta. Em muitos casos, as partes têm uma grande dificuldade para determinar a lei a que a sua relação jurídica ficará sujeita ou não terão, sequer, a possibilidade de indicar, de modo seguro, essa lei, daqui resultando o conhecido fenómeno do «forum shopping».

5.Este estado das coisas afecta profundamente a previsibilidade das decisões judiciais e a segurança jurídica, o que, por sua vez, impede a realização dos fins a que o DIP se propõe.

2.5.4. Críticas a estes argumentos

Contudo, estas razões não constituem base suficiente para justificar uma adesão à via ou perspectiva «substancialista». É errado supor que a opção por normas de DIP material eliminaria o problema da conexão e da escolha da lei. Se assim fosse, violaríamos um princípio fundamental de DIP.: o princípio da não transactividade, segundo o qual, não é lícito aplicar a uma situação da vida uma lei que lhe seja completamente estranha, uma lei que não tenha com ela qualquer contacto efectivo. A fundamentação deste princípio (limitação espacial do campo de aplicação da lei) consiste no facto de a regra de direito pretender influenciar o comportamento dos indivíduos, fornecendo-lhes motivos que os levem a agir de certa maneira ou a abster-se de determinadas condutas. Esta conexão é um pressuposto de aplicabilidade da lei, pressuposto esse ao qual não é possível renunciar senão em casos verdadeiramente excepcionais. Assim será principalmente quando se trata de evitar uma denegação de justiça. Segundo o direito português (cfr. os artigos 23º e 348º do Cód. Civ.), quando se torna impossível determinar o conteúdo do direito estrangeiro aplicável, recorre-se à lei que for subsidiariamente competente; não é senão no caso de não se conseguir estabelecer o conteúdo desta última lei que o juiz deverá recorrer ao próprio direito material português, mesmo que nenhuma conexão exista entre este direito e a situação em causa.

Outro caso excepcional no direito português é o do artigo 68º, n.º 2 do Cód. Civ.: trata-se de uma norma relativa à comoriência e às presunções de sobrevivência, regra esta que o artigo 26º, n.º 2 declara aplicável a qualquer caso, desde que as presunções de sobrevivência das leis nacionais das pessoas falecidas se mostrem incompatíveis.

Daqui se conclui que o direito material especial das relações internacionais nunca poderá substituir-se ao direito de conflitos. A sua aplicabilidade a dado caso concreto sempre haverá de pressupor a existência de uma qualquer ligação entre esse caso e a legislação do país em que se contém o referido «ius» especial. Esta ligação poderá ou não coincidir com a que seria exigida pela regra de conflitos geral do respectivo sistema jurídico, mas não é isso que importa: o que importa é que se trate de uma conexão real e efectiva.

Porventura a conclusão se altera pelo facto de a regulamentação especial provir de fonte internacional?

Pense-se, por exemplo, na Convenção de Genebra sobre Letras e Livranças de 07 de Julho de 1930.

Aqui, a aplicação das disposições da convenção pressupõe a existência de uma certa conexão entre o caso a regular e o Estado onde a questão se põe. A regra da convenção que formula essa exigência é uma regra de conflitos especial que tem primazia sobre qualquer outra da «lex fori». Deste modo, não nos encontramos aqui perante a hipótese de um direito material situado acima do direito de conflitos.

Mas é justamente esta a hipótese que se verifica no caso daquelas convenções que instituem um regime uniforme para determinada categoria de relações internacionais e cujo alcance, dentro dessa fronteira, é universal.

Assim, devendo os tribunais de um Estado contratante julgar um litígio resultante de uma relação compreendida no âmbito das referidas convenções da Haia, o direito aplicável será necessariamente o contido na respectiva lei uniforme.

Não nos parece que esta orientação seja a melhor. Nenhuma lei, por mais perfeita que seja, pode ter a pretensão de reger situações que com ela não tenham uma conexão efectiva: princípio da não transactividade.

Sem dúvida que a criação, por tratado, de normas materiais presta reais serviços, visto contribuir para a unificação progressiva do direito privado, reduzindo o espaço em que os conflitos de leis podem surgir (reduzindo, mas, note-se, não eliminando). Assim, a criação, por via de convenções de unificação, de um direito próprio das relações privadas internacionais é desejável, embora, na medida em que reduz o espaço em que os conflitos de leis podem surgir, não constitui alternativa válida, no plano metodológico, para o processo conflitual.

A tendência para a resolução do problema do DIP através da elaboração de soluções de nível ou índole material deriva basicamente do pressuposto da inadequação dos resultados a que a via ou o processo conflitual nos conduziria com frequência. Mas a tensão entre esses dois pólos ― a harmonia jurídica internacional e a justiça dos resultados ― devia resolver-se pela prevalência do último.

A nossa opção é precisamente oposta. A adesão à tese por nós contestada levaria ao sacrifício de um princípio ou pressuposto essencial de todo o ordenamento jurídico: princípio da não transactividade.

Para além disso, a opção que rejeitamos, tomada em si mesma, realmente não se justifica. E, dentre os fins gerais que o DIP prossegue, é justamente à harmonia jurídica internacional que cabe a primazia.

Consideremos agora que a inadequação das soluções decorrentes do método da «localização» das situações plurilocalizadas resultará, quase sempre, das circunstâncias do caso concreto assim como do conteúdo dos preceitos materiais que nas leis em concurso se aplicam às relações homólogas de direito interno. Aos inconvenientes resultantes da criação, por via legislativa, de normas materiais de DIP., viriam a somar-se os que são específicos do método de elaboração casuística de soluções desse mesmo tipo.

No entanto, essa orientação tem impressionado muitos autores e acaba de ser relançada por VON MEHREN: o autor tece considerações de grande interesse a propósito de certas categorias de casos. São casos em que uma situação determinada se encontra em contacto com duas leis que, ao regulamentar a matéria em questão, reflectem ópticas diferentes e visam objectivos diferentes.

VON MEHREN entende que é possível uma solução de compromisso, uma solução que conceda um certo reconhecimento às «políticas» em que se inspiram as duas leis concorrentes e que, por essa razão, seria aceitável para ambas (o que nos poria no caminho da harmonia das decisões). A ideia fundamental do autor é que deveriam reconhecer-se os pontos de vista de todas as ordens jurídicas que tenham uma pretensão fundada a controlar uma certa situação multinacional, de harmonia com a medida do interesse de cada uma delas em tal situação.

Porém, colocar o problema nestes termos implica uma concepção de DIP que nós não podemos aceitar. É claro que há casos em que importa olhar para o conteúdo de duas leis, operando, numa delas ou em ambas, as adaptações ou ajustamentos tornados necessários pelo próprio facto de a situação em causa se encontrar sujeita aos dois ordenamentos jurídicos em virtude da regra de conflitos da «lex fori». O problema que se põe é, justamente, o da adaptação.

É necessário, para que se torne legítimo recorrer à adaptação, que ambas as leis em presença sejam chamadas pelas normas de DIP do foro a resolver a questão «sub judice». Ora, este problema não se pode solucionar tentando determinar quais as leis que, pelos resultados que visam, têm um interesse legítimo na situação plurilocalizada considerada e podem, por isso, reivindicar o respectivo controle.

2.5.5. Principais conclusões

- As objecções dirigidas contra a concepção clássica de DIP (ao método conflitual) são, na sua maioria, inconvincentes.

O DIP clássico (na sua ortodoxia, na sua justiça puramente formal, na rigidez das suas normas) era presa fácil da crítica, mas o amplo movimento contestatório de que se falou não leva na devida consideração o facto de que o DIP dos nossos dias perdeu muito dessa feição antiga, pois tem vindo a adaptar-se gradualmente às novas exigências, a abrir-se a mais rasgadas perspectivas.

- As outras soluções imaginadas para o problema do conflito de leis não são alternativas válidas ao método conflitual.

Desde logo, a orientação segundo a qual haveria que deduzir a solução do nosso problema de uma definição do domínio de aplicação das normas materiais em causa, graças ao método da «governamental interest analysis» ou equivalente. É que esta doutrina opõe-se frontalmente à teleologia própria do DIP Por outro lado, as dificuldades, ambiguidades e incertezas inerentes aquele método não podem facilmente clarificar-se.

Tão pouco é recomendável a tese que preconiza a substituição do sistema clássico da localização das situações plurilocalizadas pela da escolha da regra material susceptível de conduzir ao resultado mais adequado. Esse método não deixaria de causar grave dano à certeza jurídica das partes.

Outro tanto se diga da tendência para a elaboração sistemática de normas materiais de DIP Esse DIP material não poderá prescindir de uma ideia de conexão espacial, ou seja, não se pode substituir ao direito de conflitos.

Quanto às regras materiais de fonte jurisprudencial, se a razoabilidade de algumas soluções a que se chegou por esta via não sofre contestação, não é menos certo que a idêntico resultado se teria podido chegar por outro caminho.

Resta o caso do DIP material criado por tratados. Ao falar das convenções que estabelecem leis uniformes e das convenções de unificação, notamos que tão pouco aí se deveria prescindir da referida ideia de localização ou de conexão espacial das situações contempladas, mas nem sempre as coisas se passam assim.

- Não obstante as críticas que lhe têm sido dirigidas, é ao método conflitual que convém recorrer para solucionar os problemas derivados das situações plurilocalizadas. Contudo, há que reconhecer que o método conflitual não implica, necessariamente, a existência de normas de conflitos de leis. A regra de conflitos estabelecida na lei não é senão um dos caminhos que nos podem levar ao resultado desejado (à designação do ordenamento jurídico que tenha com o caso a conexão mais significativa). A outra solução que se nos oferece consiste em confiar ao juiz a tarefa de definir, ele próprio, tendo em conta certos factores dentre os quais se contam a natureza e circunstâncias do caso «sub judice» e as expectativas dos interessados) a lei mais estreitamente conectada com a situação a regular.

O que agora se considera é um casuísmo de carácter ou nível conflitual e não material.

- A nossa preferência vai para a solução tradicional das regras de conflitos legislativas.

Porém, contra a codificação do DIP têm sido levantadas certas objecções:

a)aponta-se o facto de que, em matéria de conflito de leis, a ciência jurídica não logrou ainda atingir uma fase de plena maturidade;

b)produziu-se também o argumento de que a publicação de uma lei entrava sempre a evolução, coisa que seria particularmente nociva em matéria de conflitos de leis;

c)segundo NEUHAUS, a objecção de maior monta contra a codificação do DIP é a de que ela poderá entravar a uniformização das regras de conflitos a nível internacional.

- Preconizaremos a codificação do DIP e ninguém dirá que o imperativo de certeza do direito se faz sentir com menor intensidade no campo das relações multinacionais do que no das relações puramente internas. Todos os países têm a necessidade de normas que dêem aos tribunais a possibilidade de decidir com justiça qualquer caso que lhes seja submetido.

Uma vez assente a ideia da necessidade de directivas consagradas na própria lei quanto à maneira de resolver os conflitos entre sistemas jurídicos, põe-se a questão de saber que forma deverão revestir essas regras. Vejamos os principais modelos que se nos oferecem:

a)«Restatement Second» e as regras do Segundo «Restatement» são, na sua maioria, «open-ended rules»: concluiu-se que, no estado actual dos nossos conhecimentos, o máximo que se poderia fazer (e mesmo isso só em determinadas hipóteses) seria indicar um certo número de elementos de conexão, competindo ao tribunal determinar, em cada caso, conforme os princípios gerais (enunciados na 6ª Secção), o mais significativo dentre eles ― «the most significant relationship». V.g.: o art. 145º sobre a responsabilidade «ex delicto».

A ideia fundamental do «Restatement», sem embargo do considerável interesse que apresenta para o progresso do DIP., presta-se largamente à crítica. A principal objecção que contra ele é tecida é a que vem do seu próprio redactor, o Professor W. REESE, quando reconhece que, num futuro imediato, os tribunais não poderão fazer outra coisa que não seja decidir cada caso à luz dos princípios gerais que estão na base do DIP e que a referida Secção 6ª formula. As suas decisões terão de ser, fundamentalmente, meras decisões «ad hoc».

b)Por nós, continuamos a propender para o modelo da regra de conflitos.

Todavia, estas regras de conflitos não devem ser olhadas como algo de preciso, definido e concluso, mas apenas como balizas ou marcos indicativos: a sua função não é tanto impor dogmaticamente um percurso sem desvios, como, antes, definir apenas uma linha de rumo; o rumo a observar em tanto quanto corresponder às razões que ditaram a opção. Não vamos pôr aqui em questão a validade desta ideia pelo que toca às normas jurídicas em geral. Seja como for, ela é, para nós, válida justamente no que tange ao DIP.: um sector da ciência jurídica ainda em plena evolução... ainda longe da maturidade.

É fundamental aceitar a ideia de que as regras de conflitos são regras instrumentais relativamente aos valores axiais do DIP e aos objectivos específicos visados nos seus diversos sectores. Num estudo recente, MOURA RAMOS sublinha, com razão, a vantagem de concebermos as regras de conflitos «como um meio ao serviço dos fins do DIP., da justiça conflitual, numa concepção em que a regra de conflitos tem um papel instrumental, com uma actuação que está, portanto, subordinada aos fins do DIP.».

c)Não deixará de se opor à doutrina aqui preconizada a objecção de que ele também reduz a margem de certeza jurídica que se poderia esperar da codificação do DIP Ora, nós não contestaremos que assim seja, mas negaremos que isso ponha em causa o bem-fundado da doutrina; de resto, é indiscutível que a solução proposta afectará muito menos a certeza jurídica do que uma orientação do tipo da do «Restatement».

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Sobre o autor
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota

licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, José Eduardo Dias Ribeiro Rocha. Direito Internacional Privado.: Parte Geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 921, 8 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7714. Acesso em: 5 dez. 2025.

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