I – OS FATOS
Um casal foi autorizado a cultivar cannabis sativa (maconha) para o tratamento do filho, que sofre de paralisia cerebral e Síndrome de West. A decisão é da 3.ª Vara Criminal de Uberlândia, em Minas. O processo tramita em segredo de justiça.
A criança apresentava 50 abalos (ataques epiléticos) ao dia, o que a impedia de se alimentar. O relatório médico do neurologista infantil aponta que ‘o paciente apresenta um quadro de paralisia cerebral mais síndrome de West, de grande desafio terapêutico e de difícil controle’.
De acordo com a Justiça de Minas, outro relatório mostra que a criança ‘não respondeu aos tratamentos convencionais, então, iniciou o tratamento com o óleo da cannabis’.
Após a introdução da medicação, a criança apresentou melhora significativa das crises, porém, a família não tem condições financeiras para arcar com o tratamento de alto custo.
São quase 50 decisões judiciais autorizando as pessoas a cultivarem cannabis para fins medicinais. A autorização são dadas para casos de pessoas com doenças graves ou crônicas. Elas produzem o próprio remédio [em casa] com acompanhamento médico e com os ajustes necessários. Há muitas pessoas que podem se beneficiar do cannabis para curar doenças graves. Muitas pessoas podem se beneficiar do uso da cannabis.
Há não menos de cinco mil anos a Humanidade conhece as aplicações terapêuticas da maconha(cannabis sativa) e seus derivados. Os chineses, aliás, já a empregavam na medicina há milênios.
Vasta literatura surgiu de modo que se pôde observar alguns efeitos da maconha:
a) Alivia dores em geral especificamente as relacionadas a nervos, enxaquecas e menstruações;
b) No tratamento da síndrome da emaciação por infecção do HIV, reduziu sintomas como náusea, perda de apetite, cansaço extremo, ansiedade e dores;
c) No tratamento do glaucoma, diminui a pressão intraocular causada pela doença;
d) No tratamento da esclerose múltipla, alivia sintomas como espasmos musculares, dores e mau funcionamento de órgãos como intestino e bexiga;
e) No tratamento da epilepsia, contém compostos canabinóides com propriedades anticonvulsivas;
f) Com relação ao sistema imunológico, diminui a capacidade das cédulas T(de defesa) de lutar contra as infecções, prejudicando soropositivos como o organismo já comprometido. A inalação de THC diminui as defesas do pulmão, aumentando os riscos de infecções no órgão;
g) O uso recreativo da maconha traz problemas para o aprendizado, a memória de curto prazo; as funções executivas, como a capacidade de se concentrar, prejudicando, principalmente, adolescentes, cujo cérebro está em construção;
h) Um em cada nove fumantes de maconha se torna dependente;
i) Há estudos que apontam o risco de câncer no pulmão causados pelo fumo;
j) A maconha prejudica o desempenho psicomotor em várias tarefas, tais como a coordenação motora, a atenção no uso de máquinas complexas, com aumento de risco de acidentes de pessoas.
Acreditava-se que o sistema do corpo humano sensível aos compostos da maconha agia primordialmente no cérebro.
Recentemente cientistas brasileiros descobriram que o chamado sistema endocanabinoide atua sobre os rins, possibilitando estudos que levem a desenvolvimento de remédios contra a hipertensão e curar lesões renais, estas sem tratamento da diálise e do transplante de rins.
Um grupo de professores do Instituto de Biofísica da UFRJ trabalhou com versões sintéticas de endocanabinoides, substâncias produzidas pelo próprio corpo.
Noticia-se que um estudo iniciado com a tese de doutorado de Luzia Sampaio, hoje pós-doutoranda na UFRJ, levou a uma descoberta, resolvendo questão importante no sentido de que se era possível tratar lesões renais ao ativar o sistema endocanabinoide. Esse estudo está publicado na edição on line da revista “British Journal of Pharmacology”.
Mais um capítulo da história “maconha e medicina”, de forma a relatar que professores descobrem que sistema sensível aos compostos da “cannabis” atua também nos rins.
A medicação historiada no combate à hipertensão é uma notícia impactante.
Essa descoberta é formidável e aguça a discussão com relação à constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas e a questão da criminalização do uso da droga.
II – A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 28 DA LEI DE DROGAS
Necessário discutir o artigo 28 da Lei de drogas.
Anteriormente a Lei incriminava o usuário como aquele que adquiria drogas, guardava drogas e ou trazia consigo drogas para consumo pessoal. A Lei nº 11.343/2006 configura usuário como aquele que adquiri, guarda, traz consigo, tem em depósito e transporta drogas.
O artigo 28 caput da Lei promoveu um alargamento na incriminação do usuário de drogas. Quanto as condutas de ter em depósito e transportar o tipo penal apresenta a hipótese de novatio legis incriminadora, de forma que somente deverão ser punidos aqueles que praticarem tais condutas a partir de 8 de outubro de 2006.
Adquirir é comprar mediante pagamento. Guardar é armazenar para consumir em curto período de tempo, tomar conta de algo, proteger.
Na modalidade trazer consigo, entende-se o transporte pessoal do tóxico. É conservar a coisa junto à própria pessoa, oculta no corpo, nas vestes, ou de qualquer outro modo ligada ao sujeito. Ter em depósito é ter armazenado suprimento que traga uma ideia de mais perpetuidade, maior quantidade. Transportar é levar de um lugar para outro, em malas, veículos etc.
Insista-se no fato de que o artigo 28 da Lei 11.343/06 não afastou o crime de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal(antes, uso próprio) da esfera do crime de drogas. Não se afastou a criminalidade no fato de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Está assim redigido o artigo 28:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
No passado, frente à legislação anterior a Lei nº 6.368/1976, Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume IX, 139) entendia que o viciado não pratica o crime, sendo antes vítima dele.
Com o devido respeito, a posição de Luiz Flávio Gomes, primeiro doutrinador a discutir a questão, não se trata de discriminalização, mas de não utilização de penas privativas de liberdade, servindo-se o Estado-Acusação do mecanismo da transação penal: multa e penas restritivas de direito.
A sentença que homologa a transação penal tem eficácia declaratória-constitutiva(RT 753/449). Não há falar em condenação penal. Aplicam-se penas alternativas, com medidas restritivas(artigo 28, incisos I, II e III).
Não será caso de aplicação do princípio da insignificância, afastando-se o crime, para os casos de condutas envolvendo consumo pessoal, cultivo, semeadura e coleta de plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
É o que ocorre nos chamados crimes de porte de drogas para uso pessoal, linha esta que deve ser mantida no novo Código Penal. Será hipótese de lavrar um termo circunstanciado, providenciando-se as requisições.
Registre-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento de Questão de ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou as teses de abolitio criminis e infração penal sui generis para o crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/06, afirmando a natureza de crime da conduta perpetrada pelo usuário de drogas, não obstante a despenalização.
Não importa que o acusado não chegue a vender o tóxico, pois trazer consigo já é delito consumado, segundo uma das normas múltiplas contidas no artigo 33 da Lei de Drogas No HC 241.376/SC, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 5 de setembro de 2012, o Superior Tribunal de Justiça assentou que ¨trazer consigo¨ ou fornecer ainda que gratuitamente substância entorpecente ilícita são núcleos do tipo do delito de tráfico de drogas, crimes de perigo abstrato, de ação múltipla, de conteúdo variado, que se consuma com a prática das hipóteses já referenciadas.
Embora o artigo 28 da Lei 11.323, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, tenha alterado o tratamento penal para o porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, substituindo a prisão de seis meses a dois anos pelas penas de advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa obrigatória, a nova legislação manteve o desvalor penal do comportamento, não retirando a natureza delitiva da conduta.
A matéria voltou a ordem do dia com o posicionamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que considera inconstitucionais todas as prisões de usuários de drogas, matéria que poderá ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal em breve, no RE 635659, que tem como Relator o ministro Gilmar Ferreira Mendes.
Em 2013, o defensor público de são Paulo, Leandro de Castro Gomes, recorreu ao Supremo Tribunal Federal da decisão do Colégio Recursal do Juizado Especial de Diadema/SP que condenou réu, naquele processo, a dois meses de prestação de serviço à comunidade, por guardar 3(três) gramas de maconha num único invólucro para consumo próprio.
Para Pier Paolo Bottini, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afronta não só a norma constitucional que protege a intimidade e a vida privada, mas, sobretudo, a que prevê as bases sobre as quais se sustenta todo o modelo político e jurídico nacional; a dignidade da pessoa humana e a pluralidade.
Disse o Professor Bottini:
“Ao criminalizar o porte de droga para uso pessoal, a lei parece afrontar a ideia de dignidade da pessoa humana e de pluralidade, ambas previstas na Constituição Federal (artigo 1º, III e V). A primeira pode ser definida como a capacidade de autodeterminação do ser humano para o desenvolvimento de um mundo de vida autônomo, onde seja possível a reciprocidade. Pluralidade significa a tolerância no mesmo corpo social de diferentes mundos de vida,estilos, ideologias e preferências morais, respeitadas as fronteiras do mundo de vida dos outros.
Os princípios da dignidade e da pluralidade limitam o uso do direito penal como instrumento de controle social ou de promoção de valores funcionais. Em sendo esta a faceta mais grave e violenta da manifestação estatal, sua incidência se restringe à punição de comportamentos que violem esta liberdade de autodeterminação do indivíduo, que maculem este espaço de criação do mundo de vida..
Nesse sentido, a definição do espaço de legitimidade do direito penal exige do intérprete da Constituição o reconhecimento de que comportamentos praticados dentro do espaço de autodeterminação do indivíduo, sem repercussão para terceiros — ou seja, que não afetem a dignidade de outros membros do corpo social — não têm relevância penal.
Com base nessa assertiva, são estranhos ao direito penal comportamentos religiosos, sexuais, ideológicos, ínsitos à liberdade individual, que possam ser praticados com reciprocidade, ou seja, cujo exercício mútuo seja possível por todos os demais membros da sociedade. Em suma, que não afetem a autodeterminação de outros componentes do corpo social. Não por acaso, a criminalização do homossexualismo, da opção religiosa, do incesto, são rechaçadas pelo direito penal brasileiro, e duramente criticadas — quando presentes — nas legislações estrangeiras.
Como ensina ROXIN, “la protección de normas morales, religiosas o ideológicas, cuya vulneración no tenga repercusiones sociales, no pertenece em absoluto a los cometidos del Estado democrático de Derecho, que por el contrario también debe proteger las concepciones discrepantes de las minorias y su puesta em práctica”.