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A lei da liberdade econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

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30/10/2019 às 17:59
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4. As alterações impostas pela Lei da Liberdade Econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

A Lei nº 13.874/19, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, introduziu alterações legislativas nos dispositivos do Código Civil que tratam da desconsideração da personalidade jurídica e da consequente responsabilização dos sócios pelas dívidas da sociedade, ao introduzir o art. 49-A e alterar a redação do art. 50 do referido diploma legal, os quais passaram a vigorar com a seguinte redação:

Art. 49-A.  A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º  O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º  Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

A leitura dos dispositivos transcritos revela que a Lei 13.874/19 introduziu no Código Civil previsão expressa da autonomia patrimonial entre a sociedade e os sócios, frisou que essa autonomia é instrumento que serve à livre iniciativa e ao desenvolvimento econômico e estabeleceu critérios mais rígidos para a desconsideração da personalidade jurídica, mantendo a sua excepcionalidade para os casos de abuso da personalidade.

Ou seja, no que diz respeito às relações de direito civil e comercial, as quais são objeto precípuo das disposições do Código Civil, foi mantida a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica que já vigorava antes da alteração legislativa em foco, apenas estabelecendo de maneira mais detalhada os critérios para apuração do abuso da personalidade jurídica e os limites da responsabilidade dos sócios.

Com a vigência da Lei da Liberdade Econômica, ou já em face da vigência da Medida Provisória que lhe deu origem, surgiu a necessidade de analisar a aplicabilidade das alterações legislativas no âmbito do direito do trabalho, de modo a definir se passou a incidir a teoria maior na seara trabalhista para fins de tornar obrigatória a demonstração de desvio de finalidade ou confusão patrimonial para responsabilização dos sócios.

Em uma primeira análise, o art. 1º, § 1º, da Lei nº 13.874/19 poderia conduzir à conclusão no sentido de que foram alterados os requisitos para  a desconsideração nos processos trabalhistas ao estabelecer que

“O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação [...]”.

Contudo, tal dispositivo legal deve ser analisado a partir da interpretação sistemática das normas da Lei nº 13.874/19 e dos fundamentos legais e constitucionais que já fundamentavam a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho, definindo-se a partir daí se permanece aplicável na seara trabalhista a teoria menor, ou se passou a vigorar a apenas a teoria maior.

De plano, constata-se que o dispositivo, ao enumerar os ramos do direito sobre os quais incidem as disposições da Lei, ressalva expressamente que tal incidência limita-se às “relações jurídicas que se encontram em seu âmbito de aplicação”.

Ou seja, o próprio dispositivo deixa margem para que o intérprete defina quais as disposições da Lei que incidem sobre cada tipo de relação jurídica em cada ramo do direito.

Tal disposição, apesar de óbvia, é importante para definir o âmbito de aplicação de cada uma das normas da Lei de Liberdade Econômica, uma vez que ela promoveu alterações legislativas em diplomas legais relacionados a diversos ramos do direito, tais como o Código Civil, a Lei de Sociedades Anônimas, a Lei de Registro Público de Empresas Mercantis e a própria Consolidação das Leis do Trabalho.

Não seria razoável supor que todas as normas da Lei 13.874/19 incidem sobre todos os ramos do direito enumerados no art. 1º, § 1º,  sendo mais plausível que cada norma incida apenas sobre as relações jurídicas submetidas à área jurídica correspondente ao seu conteúdo, de modo que as normas de direito civil e empresarial aplicam-se sobre as relações respectivas, as normas de direito do trabalho sobre as relações pertinentes etc.

Interpretação contrária conduziria à conclusão de que a Lei 13.874/19 cria verdadeiro caos na interpretação do direito em todas as áreas mencionadas no citado dispositivo, uma vez que faria incidir sobre determinado ramo do direito normas absolutamente incompatíveis com as disposições legais e com os princípios constitucionais que já incidiam sobre ele.

Tanto é assim que o art. 421-A, introduzido pela Lei 13.874/19 no Código Civil, traz disposição pela qual a aplicação das normas de direito civil e empresarial parte da premissa de que os contratos respectivos presumem-se paritários e simétricos, excluindo de seu âmbito de incidência os regimes jurídicos previstos em leis especiais, dos quais é exemplo o contrato de trabalho, sabidamente assimétrico.

Diante disso, a primeira conclusão a que se chega é de que, às relações de trabalho aplicam-se as disposições da Lei 13.874/19 que alteram especificamente as normas trabalhistas inseridas na CLT. As demais disposições podem ser aplicáveis no âmbito trabalhista, mas passam pelo crivo da análise da aplicabilidade subsidiária, pautada pelos critérios do art. 8º da CLT e pelos princípios constitucionais incidentes.

Com efeito, ao prever que aplicação do direito comum no âmbito do direito do trabalho é subsidiária, o art. 8º impõe como primeiro requisito para tal aplicação que não existam regras próprias do direito do trabalho regendo a matérias respectiva. A prioridade é para aplicação das regras próprias previstas na CLT e, somente se ausentes essas, fica autorizada a aplicação subsidiária das regras de direito comum.

Tal critério já seria o suficiente para excluir a necessidade de transportar para o direito do trabalho as normas que regem a desconsideração da personalidade jurídica em outros ramos, uma vez que atualmente o art. 10-A da CLT, analisado em conjunto com a interpretação que já se conferia aos arts. 10 e 448 do mesmo diploma, autorizam a responsabilização dos sócios sempre quando insuficiente o patrimônio da empresa.

Vale ressaltar que nem mesmo supletivamente se poderia pensar na aplicação das normas da Lei nº 13.874/19, sobre desconsideração da personalidade jurídica, ao direito do trabalho, uma vez que o Código Civil contempla a teoria maior, com requisitos incompatíveis com teoria menor que se extrai da CLT, na qual não há exigência de demonstrar abuso da personalidade jurídica para responsabilizar o sócio.

Ainda que se entendesse que as normas inscritas nos arts. 10, 10-A e 448 da CLT não são suficientes para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho, o que prevê o art. 8º é a aplicação subsidiária do direito comum, ou seja, de normas de outras ramos do direito para além do direito do trabalho, o que não se restringe às normas de direito civil e empresarial previstas no Código Civil.

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Para além do direito do trabalho, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não tem fundamento no direito brasileiro apenas no Código Civil, encontrando fundamento art. 135 do Código Tributário Nacional, no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 4º da Lei de Crimes Ambientais, cumprindo analisar qual das normas respectivas melhor se adapta às relações de trabalho.

Tal análise deve ser pautada pela definição de qual dos quatro ramos jurídicos citados tem por base relações jurídicas que mais se aproximam das relações de trabalho em suas características principais, uma vez que a interpretação sistemática do ordenamento jurídico deve como premissa o princípio da isonomia (art. 5º, I, da CF), de modo a fazer incidir normas semelhantes sobre relações jurídicas similares. 

Na linha do que foi exposto em tópico anterior, as relações consumeristas são aquelas que mais se aproximam das relações de trabalho, uma vez que em regra ambas são marcadas pela hipossuficiência de um dos contratantes em relação ao outro. Por conseguinte, a norma do art. 28, § 5º, do CDC é a mais adequada para reger subsidiariamente a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho[13].

Diversamente, as relações de direito civil e empresarial são fundadas na paridade presumida entre os contratantes, o que as torna incompatíveis com a hipossuficiência do trabalhador nas relações de trabalho. Tal circunstância afasta a incidência obrigatória dos requisitos do art. 50 do CC, com alterações da Lei 13.874/19, como única forma de desconsiderar a personalidade jurídica no direito do trabalho.

Por fim, não bastassem todos os fundamentos expostos acima a partir da interpretação da Lei nº 13.874/19 em seus próprios termos e de forma sistemática com as normas trabalhistas e consumeristas, a vedação à aplicabilidade obrigatória, no direito do trabalho, dos requisitos introduzidos no Código Civil decorre da interpretação da legislação infraconstitucional à luz da Constituição Federal.

Isso porque, como já mencionado acima, o reforço à proteção à personalidade jurídica trazido pela Lei da Liberdade Econômica tem por fundamento a livre iniciativa no exercício da atividade econômica. Todavia, em um sistema constitucional centrado na dignidade da pessoa humana, os valores decorrentes da livre iniciativa não podem constituir empecilho à concretização dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

Nessa ordem de idéias, interpretar a legislação infraconstitucional no sentido de que a Lei 13.874/19 tornou excepcional a desconsideração no direito do trabalho, passando a autorizá-la apenas em caso de abuso da personalidade jurídica, significaria subordinar a eficácia dos direitos trabalhistas à proteção irrestrita da livre iniciativa, em flagrante afronta ao sistema constitucional fundado no princípio da dignidade da pessoa humana.

De maneira diversa, a melhor interpretação da lei à luz da Constituição aponta no sentido de que a desconsideração é possível no âmbito trabalhista sempre quando a proteção à personalidade jurídica for empecilho à concretização do direito do trabalho, teoria menor hoje expressamente consagrada no art. 10-A da CLT, além de autorizada pela incidência subsidiária do art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor.

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Sobre o autor
Inácio André de Oliveira

Juiz do Trabalho no TRT da 21ª Região, Assessor de Ministro no TST de 2008 a 2012, Professor da ESMAT21, Professor de cursos sobre “Recursos no TST”.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Inácio André. A lei da liberdade econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5964, 30 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77494. Acesso em: 23 abr. 2024.

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