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A lei da liberdade econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

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30/10/2019 às 17:59
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Analisam-se as alterações implementadas pela Lei 13.784/19 nas normas do Código Civil que regem a desconsideração da personalidade jurídica e suas repercussões sobre a aplicação do instituto do direito do trabalho.

1. Introdução

A desconsideração da personalidade é instituto jurídico pelo qual é possível responsabilizar os sócios, pessoas naturais, pelas obrigações da pessoa jurídica, superando a separação legal entre o patrimônio do sócio e o patrimônio da sociedade.

Consiste em importante instrumento para garantir eficácia aos direitos postulados em juízo, notadamente em relação àqueles direitos que são objeto de provimentos jurisdicionais que impõem obrigação de pagar quantia certa ao credor.

Além disso, evita que a separação patrimonial entre o sócio e a sociedade seja utilizada como instrumento de fraude ou em favor daqueles que se furtam injustamente ao cumprimento de suas obrigações.

No âmbito trabalhista, tal instituto apresenta especial importância, seja em face da natureza alimentar do crédito respectivo, seja diante das frequentes manobras dos devedores para escapar do cumprimento das obrigações devidas aos trabalhadores.

Com efeito, a recém editada Lei nº 13.784/2019 (Lei da Liberdade Econômica), fruto da conversão da Medida Provisória nº 881/2019, promoveu consideráveis alterações nos dispositivos do Código Civil que regem o instituto.

O presente estudo tem por finalidade analisar se essas alterações legislativas repercutem sobre a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho e em que medida se verificam esses reflexos.


2. Desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro e proteção à pessoa jurídica como instrumento de liberdade econômica

A proteção à personalidade jurídica sempre esteve ligada à necessidade de prover instrumentos jurídicos para a organização da atividade empresarial de forma independente das atividades pessoais do indivíduo, oferecendo ao empresário empreendedor segurança quanto à alocação dos recursos necessários ao funcionamento da empresa e ao planejamento dos riscos dessa atividade[1][2].

Ao oferecer garantia de que o patrimônio do sócio não responde pelas dívidas da sociedade, a proteção à personalidade jurídica reduz os riscos diretos ao empresário e incentiva o empreendedorismo e o início de novas atividades empresariais, contribuindo para a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico, valores que encontram proteção nos arts. 1º, IV, 3º, II, 170 e 174 da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido passou a dispor o art. 49-A, parágrafo único, do Código Civil, com redação da Lei nº 13.874/19, que

“a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos”.

Nesse cenário, a proteção aos interesses dos demais atores econômicos que se relacionam com a pessoa jurídica, como regra geral, e levando em conta o exercício regular da atividade, é garantida principalmente pela constituição do capital social e pela publicidade nas alterações na estrutura jurídica e patrimonial da empresa, de modo a permitir, aos possíveis parceiros comerciais, medir o risco nas interações.

Ou seja, na esteira do art. 1.052 do Código Civil[3], o sócio responde pela integralização do capital social necessário à formação do patrimônio da empresa e somente esse responde pelas obrigações decorrentes da atividade, cabendo aos parceiros comerciais avaliar se esse patrimônio e os frutos dele decorrentes são suficientes para o cumprimento das obrigações contratadas.

Assim, para que a proteção à personalidade jurídica tenha eficácia nas relações civis e empresariais e atinja as suas finalidades constitucionais é que, somente em casos excepcionais, nas quais as atividade empresarial não é regularmente desenvolvida ou em que a pessoa jurídica é utilizada para fins ilícitos, admite-se a desconsideração da personalidade jurídica, com a conseqüente responsabilização do patrimônio dos sócios[4].

Nessa ordem de idéias, foi inserida no art. 50 do Código Civil de 2002, já em sua redação original, a regra geral de que a desconsideração da personalidade jurídica somente se admite “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”, consagrando-se a chamada teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica[5].

É importante ressaltar que, mesmo antes de a desconsideração da personalidade jurídica ser inserida expressamente no Código Civil, o instituto já tinha previsão em outros dispositivos legais pretéritos, tais como o art. 135 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66), o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e o art. 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98).

O art. 135 do CTN e o art. 28, caput, do CDC também já contemplavam a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, prevendo o primeiro a sua incidência em caso de “atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos” e o segundo, no mesmo sentido, em caso de “abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”.

De maneira diversa do Código Civil, o art. 28, § 5º, do CDC[6] e o art. 4º da Lei nº 9.605/98[7], contemplaram a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, autorizando-a independentemente da configuração de utilização ilícita da pessoa jurídica, a partir da simples verificação de que a personalidade jurídica constitui obstáculo ao ressarcimento de prejuízos ao consumidor ou ao meio ambiente[8].

Não obstante a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica retire a excepcionalidade de sua aplicação, autorizando-a sempre quando o patrimônio da pessoa jurídica não seja suficiente para o cumprimento de obrigações ambientais ou consumeristas, tal consequência é razoável em face da natureza das relações de direito material protegidas na espécie.

É que em se tratando de responsabilidade dos sócios pelo cumprimento de obrigações consumeristas ou ambientais, a relevância dos direitos envolvidos, associada à hipossuficiência do consumidor, no primeiro caso, e à natureza difusa dos interesses envolvidos, no segundo caso, torna insuficiente a constituição de capital social e a publicidade dos atos constitutivos para garantir eficácia às obrigações respectivas.

Isso porque, diferentemente do que ocorre nas obrigações contratuais de natureza civil ou empresarial, a hipossuficiência do consumidor constitui empecilho para a análise de risco na contratação e, de outro lado, a natureza não contratual e difusa das regras de proteção ao meio ambiente é absolutamente incompatível com a avaliação de risco pela coletividade titular do direito.

Não bastassem tais aspecto práticos para justificar a não excepcionalidade da desconsideração da personalidade jurídica prevista nos diplomas legais de proteção ao consumidor e ao meio ambiente, a aplicação da teoria menor em relação às obrigações daí decorrentes sustenta-se na análise sistemática das normas da Constituição que submetem a livre iniciativa ao respeito a determinadas classes de direitos[9].

Extrai-se claramente do art. 170, V e VI, da CF que a ordem econômica, fundada na livre iniciativa, deve observar os princípios de defesa do consumidor e de defesa do meio ambiente. Fundada a proteção à personalidade jurídica na livre iniciativa, a excepcionalidade de sua desconsideração perde espaço sempre que for necessário para resguardar direito ao qual a livre iniciativa esteja constitucionalmente subordinada.


3. Fundamentos legais e constitucionais para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

Até a alteração da CLT pela Lei nº 13.467/2017 (reforma trabalhista), a possibilidade de responsabilização dos sócios pelas dívidas trabalhistas da empresa não tinha previsão expressa na legislação trabalhista. A desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho decorria da incidência de normas da CLT que indiretamente a autorizavam, bem como de normas de outras áreas do direito.

Nesse sentido, não obstante a ausência de previsão expressa de dispositivo na CLT sobre a desconsideração da personalidade jurídica, decorria tal possibilidade do disposto nos arts. 10 e 448 da CLT, dos quais se extrai que questões referentes à estrutura jurídica formal das empresas não podem prejudicar os direitos trabalhistas dos empregados respectivos.

Em outras palavras, os dois dispositivos vinculam o contrato de trabalho e as obrigações daí decorrentes à empresa, enquanto atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, não prejudicando os contratos de trabalho e os direitos trabalhistas, as estruturas jurídicas formalizadas para o exercício da atividade, entre as quais a constituição de pessoa jurídica[10].

Não fosse por essa interpretação dos dispositivos da própria CLT, a desconsideração da personalidade jurídica já era aplicada no direito do trabalho também pela incidência de normas de outros ramos do direito comum, em especial da norma inscrita no art. 28, § 5º, do CDC, a qual autoriza a desconsideração independentemente da demonstração de fraude ou abuso de direito no uso da personalidade jurídica. 

Por fim, com a entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, a CLT passou expressamente a prever a possibilidade de se responsabilizar subsidiariamente os sócios atuais e os sócios retirantes pelas obrigações trabalhistas da sociedade, dispondo sobre os requisitos e limites temporais para tanto, bem como sobre a ordem de preferência na responsabilização da sociedade, do sócio retirante e do sócio atual.

Da análise supra já é possível concluir que a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho, seja pela interpretação das normas pretéritas da CLT, seja por incidência do CDC, seja ainda na vigência da reforma trabalhista, sempre foi aplicada em consonância com a teoria menor, redirecionando-se a execução para os sócios sempre quando se verificar que a pessoa jurídica não tem patrimônio suficiente.

Por óbvio, existindo evidências de que ocorreu o uso abusivo da personalidade jurídica pela empresa devedora, a teoria maior, e normas que a prevêem, incidem como reforço à desconsideração da personalidade jurídica no caso concreto. O que não se admite é que a teoria maior seja o único caminho para a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho.

Em sede de análise infraconstitucional, a adoção da teoria menor no direito do trabalho, emerge sem muito esforço exegético dos arts. 10 e 448 da CLT e do art. 28, § 5º, do CDC, uma vez que ambos os diplomas legais já permitiam a desconsideração sempre quando a personalidade jurídica era empecilho ao prosseguimento da execução, não sendo necessário demonstrar fraude ou abuso de direito para tanto.

Da mesma forma, é possível extrair da redação atual do art. 10-A da CLT[11] que a reforma trabalhista também adotou a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, ao prever a possibilidade de responsabilização dos sócios atuais após esgotada a execução contra a sociedade, bem como dos sócios retirantes após esgotada a execução contra os sócios atuais, respeitados os limites temporais estipulados.

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Referido dispositivo legal não exige a demonstração de fraude ou de abuso de direito para a desconsideração da personalidade jurídica, do que se conclui que, uma vez frustrada a execução em face da empresa, responsabiliza-se o sócio. O art. 10-A, parágrafo único, da CLT apenas exige a demonstração de fraude para fins de afastar o benefício de ordem do sócio retirante, atribuindo-lhe responsabilidade solidária com os demais.

Se a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho não decorresse da interpretação sistemática da legislação infraconstitucional citada, os mesmos motivos de ordem prática e constitucional analisados supra em relação aos direitos consumerista e ambiental tornariam inexorável a sua aplicação na seara trabalhista.  

Mais que o consumidor, o trabalhador se revela técnica e economicamente hipossuficiente no momento da contratação para fins de se valer dos mecanismos usuais de proteção dos créditos daqueles que contratam com a pessoa jurídica, bem como para analisar a idoneidade financeira do possível empregador e os riscos daí decorrentes para escolha da contratação ou não.

A prática quotidiana revela que o trabalhador, em regra premido pelo receio do desemprego e pela necessidade de prover os meios necessários à sua subsistência, aceita a primeira vaga de emprego que lhe é oferecida, sem nenhuma possibilidade de analisar se a pessoa jurídica tem idoneidade financeira suficiente para cumprir com as obrigações do contrato de trabalho ou de escolher se aceitará ou não o emprego.

Nessa esteira, considerando que a hipossuficiência do trabalhador na contratação o impede de proceder com a avaliação de riscos e com a livre escolha pela contratação, medidas ao alcance dos sujeitos nas contratações civis ou empresariais, não se pode adotar no direito trabalho o mesmo nível de proteção à personalidade jurídica que é aplicada no direito civil ou no direito empresarial.

A aplicação da teoria menor no direito do trabalho, portanto, é impositiva por revelar-se como único mecanismo de proteção à efetividade dos direitos do trabalhador em face da insuficiência patrimonial da pessoa jurídica, de modo que limitar a desconsideração aos casos de fraude ou abuso de direito no âmbito trabalhista pode significar a frequente negativa de eficácia a tais direitos[12].

Não bastasse isso, da mesma forma como a Constituição submete o exercício da livre iniciativa à proteção ao consumidor e ao meio ambiente, tal exercício está também subordinado ao respeito aos direitos do trabalhador, do que se extrai que a proteção à pessoa jurídica como instrumento da livre iniciativa não pode se sobrepor aos direitos dos trabalhadores previstos na lei e na Constituição Federal.

Tal subordinação decorre do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no art. 1º, III, da CF, cujo núcleo axiológico corresponde à colocação dos direitos inerentes à pessoa humana, entre eles os direitos do trabalhador, em posição de centralidade e superioridade na ordem constitucional, de modo que a eles estão subordinados todos os demais valores constitucionais, inclusive a ordem econômica e a livre iniciativa.

Ainda o art. 170 da Constituição Federal expressamente subordina a ordem econômica e o exercício da livre iniciativa à proteção da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana ao prever expressamente que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Tal finalidade não se concretiza sem garantia de eficácia aos direitos do trabalhador.

Com efeito, é impositivo reconhecer que os direitos do trabalhador constituem direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, seja porque no exercício do trabalho é despendida boa parte da energia vital e desenvolvidas as potencialidades humanas, seja porque dele decorrem os meios para subsistência e acesso aos demais direitos fundamentais individuais e sociais garantidos pelo ordenamento jurídico.

Vale ressaltar que a preponderância dos direitos do trabalhador na ordem constitucional transmite-se aos créditos decorrentes do seu descumprimento espontâneo, o que fica evidente no privilégio garantido pelo art. 100, § 1º, da Constituição Federal para os “débitos de natureza alimentícia, entre os quais estão compreendidos aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações”.

Por conseguinte, se a livre iniciativa, fundamento da proteção à personalidade jurídica, está constitucionalmente subordinada à proteção aos direitos do trabalhador, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada sempre quando essencial à garantia de eficácia a esses direitos e ao adimplemento dos créditos respectivos, não se aplicando as normas de direito civil que a estabelecem como medida excepcional.

Em outras palavras, a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho decorre da própria hierarquia estabelecida pela Constituição Federal entre os valores inerentes à dignidade da pessoa humana e os demais valores previstos no  texto constitucional, entre os quais aqueles referentes à ordem econômica e à livre iniciativa.

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Sobre o autor
Inácio André de Oliveira

Juiz do Trabalho no TRT da 21ª Região, Assessor de Ministro no TST de 2008 a 2012, Professor da ESMAT21, Professor de cursos sobre “Recursos no TST”.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Inácio André. A lei da liberdade econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5964, 30 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77494. Acesso em: 18 abr. 2024.

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