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A equivalência da gravidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor

14/01/2006 às 00:00
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            Analisando de forma mais detida os tipos penais constantes da parte especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (o Código Penal Brasileiro), certamente a sensibilidade de muitos já deve ter-se deparado com a percepção de algo que se revela tão elementar que mesmo a falta de uma maior especialização no trato da matéria não impede a identificação de notada incongruência legal, com inaceitável grau de incoerência doutrinária, de senso lógico e comum, como o que ocorre entre os delitos de estupro e atentado violento ao pudor.

            Então, será justamente sobre isto que nos dedicamos a desenvolver a seguir, quando enfocaremos as similitudes verificadas entre os referidos crimes e as disparidades identificadas quando da interpretação acerca da aplicabilidade do concurso material entre os referidos crimes, advertindo de logo quanto a absoluta inexistência de qualquer sombra de pretensão de querer apresentar enfoque menos conservador ou mais rígido que os até então apresentados pela doutrina especializada.

            Então, iniciemos identificando e procurando evidenciar as conhecidas semelhanças existentes entre os delitos em estudo, registrando que em comum o estupro e o atentado violento ao pudor, respectivamente tipificados nos arts. 213 e 214 do Código Penal Brasileiro, apesar de serem do mesmo gênero, são de espécies delitivas diferentes e têm ambos como conduta incriminadora o constrangimento sofrido pela vítima, através da violação do bem jurídico tutelado – este representado pela sua liberdade sexual ultrajada – mediante violência ou grave ameaça. Além disso, some-se o fato de que os dois são crimes hediondos e também sendo igualmente sancionados com penas de reclusão de 6 a 10 anos.

            Ainda de forma idêntica, os dois delitos admitem como formas configuradoras dos seus tipos penais tanto a violência física ("vis corporalis") como a moral, esta última podendo ser especificamente representada pela grave ameaça ("vis compulsiva").

            A Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, conhecida como a "Lei dos Crimes Hediondos", através do seu art. 1o, respectivamente nos incisos V e VI, incluiu dentre os crimes hediondos o estupro e o atentado violento ao pudor, tanto nas formas tentadas como consumadas, diante da extrema representatividade das lesões causadas às vítimas, trazendo sempre como conseqüência a inaceitável irreversibilidade do dano causado ao emocional do sujeito passivo. Afinal, se como conseqüência da violência constante da tipicidade subjetiva representada pela sua conduta dolosa o agente não lhe trouxer a morte, fixará permanentemente um trauma psicológico na vítima, daí o caráter depravado, sórdido, repelente, repulsivo, horrendo, pavoroso, medonho e, enfim, hediondo dos delitos tipificados nos arts. 213 e 214 do Código Penal.

            O STF-Supremo Tribunal Federal, coerente com os princípios legais e coadunando com seus próprios julgados anteriores, erguendo-os ao "status" e equivalência de lei, reafirma o caráter hediondo dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, conforme acórdão que colacionamos a seguir:

            "CRIMES DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E ESTUPRO – FORMA SIMPLES – CRIMES HEDIONDOS – QUESTÃO PENDENTE DE JULGAMENTO PELO PLENÁRIO – HABEAS CORPUS Nº 82.959/SP HEDIONDEZ VIGENTE – LIMINAR INDEFERIDA.

            A Turma, por maioria, indeferiu a liminar e o sobrestamento, proposto pelo Ministro Marco Aurélio, relator, de ‘habeas corpus’ no qual se sustentava que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, na sua forma simples, não se caracterizam como hediondos. Em seguida, também por maioria, a Turma, ressaltando tratar-se de julgamento cautelar, e mantendo fidelidade à jurisprudência firmada na Corte, indeferiu o ‘writ’ por considerar que, embora a questão da hediondez esteja novamente submetida ao Plenário no julgamento do HC 82959/SP, o entendimento ainda vigente é no sentido de que os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor são hediondos, tanto na sua forma simples quanto na qualificada, o que inviabilizaria a concessão de liminares em sentido contrário às decisões de mérito já proferidas. Vencidos, em ambos os casos, os Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluzo, que deferiam o pedido." (STF – 1ª T. – HC nº 84.006-RJ – Rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa – j. 04.05.04 – Informativo do STF nº 346 – 03 a 07.05.04, pág. 2). Grifou-se.

            No entanto, a despeito do caráter de imensurável repulsividade de ambos os delitos, ao ponto da sua hediondez ser reafirmada jurisprudencialmente, parte da doutrina consegue estabelecer interpretações que, de certa forma, como que procuram amenizar o aspecto cruel, hediondo dos referidos delitos.

            Para que caminhemos em direção ao centro da questão que procuramos discutir, passemos a descrever a tipicidade objetiva dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, na forma como a corrente doutrinária dominante a descreve. Consiste o estupro em constranger a mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Observe-se que, especificamente, conjunção carnal vem significar a cópula vagínica, "in natura", ocorrida entre homem e mulher – esta, em regra, assumindo a figura do sujeito passivo exclusivo, mas que excepcionalmente poderá ser também assumida pelo homem, contudo apenas em situações extremamente específicas. Note-se que para o cometimento do estupro o agente deverá ignorar o dissenso da vítima e utilizar-se-á, necessariamente, de violência ou grave ameaça, vez que a mulher oferecerá resistência à penetração do pênis do agressor em sua vagina.

            Por sua vez, o atentado violento ao pudor consiste em constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com o agente pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Nesse delito, o sujeito ativo pode ser de ambos os sexos e também não apenas a mulher assume a passividade delitiva. Quanto aos atos libidinosos, pode-se enumerar vários exemplos, como o coito anal, o sexo oral, o coito "inter femora", a masturbação, os toques e apalpadelas nas genitálias, os contatos voluptuosos, a contemplação lascívia, dentre outros.

            E será justamente por essa gradação que comumente se evidencia nas formas de prática de atos libidinosos, que se vislumbra residir o cerne da divergência entre as correntes doutrinárias e até mesmo na jurisprudência. Afinal, se há quem defenda que deveria existir uma equivalência penal entre o coito anal e o delito de estupro, ambos passíveis de serem sancionados com a pena máxima prevista para os respectivos delitos, também defende-se que todas as formas conhecidas de penetração (vagínica, anal e oral) deveriam constar como sendo o delito de estupro, restando para a configuração do crime de atentado violento ao pudor os demais atos libidinosos, entendendo-se que assim seria possível transformá-lo em um delito de menor gravidade.

            De certa forma, seria este um razoável caminho para se chegar a uma interessante solução jurídica para elidir ou ao menos amenizar os conflitos de correntes que a doutrina faz avolumar sobre as circunstâncias e peculiaridades penais capazes de caracterizar o concurso material entre esses dois delitos, até que possamos conhecer opiniões mais próximas do que entendemos seria mais apropriado.

            Contudo, de forma quase que diametralmente oposta, existem também opiniões como a que vê como um sério problema a dificuldade para se conseguir identificar, com eficácia, se os atos libidinosos são ou não meios para o fim pretendido: o estupro. E, fazendo crer realmente acreditar no conceito defendido, preocupa-nos a exposição do que aponta como sendo o caminho para solucionar esta questão, representado pela opinião de que se os atos de violência sexual forem apenas o meio utilizado para a prática do delito de estupro, não haveria concurso do estupro com o atentado violento ao pudor.

            Por outro lado, felizmente há quem defenda que se os atos libidinosos não forem meio para a penetração vaginal forçada – a conjunção carnal, caracterizadora do estupro –, tipificado estaria o concurso de crimes. E, como forma exemplificativa desse conceito doutrinário, nos é apontado que a prática forçada de sexo oral não é meio para o estupro, pelo que conclui esta corrente por entender haver o concurso de crimes, na sua forma material, correlacionando o atentado violento ao pudor ao estupro.

            Mesmo que de forma parcial, ainda distante da completude que se reconhece utópica em esperar conquistar, mostra-se prudente e sensato este último entendimento, que vem proteger algo mais que a liberdade sexual da vítima de estupro e atentado violento ao pudor: a auto-estima, o amor próprio, a dignidade e todos os pudores e temores mais íntimos e arraigados do ser humano.

            Falando-se em criaturas humanas, é bom que se ressalte que mesmo a mais obscena e depravada delas poderá perfeitamente figurar como sujeito passivo de crimes sexuais, sofrendo física e moralmente tanto quanto a mais pudica delas, pois o que estará sendo violado não será medido ou estará limitado ao quanto a vítima conhece ou desconhece em matéria de sexo. Da mesma forma, a esposa ou companheira poderá igualmente ser vitimada pelo próprio cônjuge ou companheiro, independentemente do convívio íntimo diário e de ter com ele mantido relação sexual, de forma carinhosa e consensual, horas antes de ser violentada sexualmente.

            É importante que se compreenda que o querer ou não querer da vítima em praticar sexo com quem não quer, ou de forma ou ainda em momento ou local que não seja do seu interesse, contrariará mais do que a simples vontade do sujeito passivo, vez que a grave ameaça passará a estar presente e violentará moralmente a vítima, a qual comumente já poderá também estar sendo agredida fisicamente.

            Mas, contrariando essa essência, alguns entendimentos acerca da existência ou não de concurso de crimes entre os arts. 213 e 214 do Código Penal têm sustentado que se o agente cometer primeiro quaisquer dos atos libidinosos caracterizadores do delito de atentado violento ao pudor para, logo em seguida, estuprar a mesma vítima, somente deverá ser punido pelo delito de estupro, afinal este último delito, defendido como sendo de maior gravidade, irá absorver os atos libidinosos que haveriam inicialmente caracterizado o primeiro crime, dissipando a configuração do concurso material entre os dois delitos.

            Supõe-se, então, que para quem defende esta tese, os atos libidinosos praticados no atentado violento ao pudor que antecede ao estupro não passam de meras condutas subsidiárias para a prática do delito principal, o estupro. Ou seja, os toques e apalpadelas na genitália da vítima, o sexo oral que lhe é imposto fazer no agente, o coito "inter femora" e, por fim, o estatisticamente preferido dos violentadores, o sexo anal, todos estes atos libidinosos assumem ares de impetuosas preliminares para a conjunção carnal, única capaz de caracterizar o estupro.

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            Em que estaria amparado e de onde teria surgido este viciado entendimento que pretende querer nos assegurar ser a penetração vaginal do estupro mais ultrajante que as condutas libidinosas do atentado violento ao pudor? Por que se insiste em defender ser menos ultrajante, menos humilhante, menos aviltante para qualquer vítima ser subjugada a praticar à força sexo oral na pessoa – quer seja homem ou mulher – que lhe submete a tamanha indignidade? Acaso seria indiferente ou mais branda a vileza dessa conduta se, antes da penetração do pênis na vagina da mulher, seu violador lhe introduzisse ali um único dedo? Estaria acaso descaracterizado o concurso material de atentado violento ao pudor com o delito de estupro, apenas porque a introdução de um dedo é por alguns entendida como menos ultrajante, menos depravada, menos grave que a penetração, mesmo que parcial, do pênis na vagina da vítima? E se o tarado sexual tiver especial preferência por praticar sexo anal antes de qualquer outra prática libidinosa ou mesmo antes da própria conjunção carnal; ainda assim descaracterizado estaria o concurso material entre os dois delitos, apenas porque há quem entenda que o estupro absorve os atos libidinosos do atentado violento ao pudor?

            Não vemos onde se pautaria esse entendimento quanto a ser qualquer uma das formas de penetração mais ou menos grave que outra. Não deveria uma tese doutrinária pautar-se unicamente no sentimento de quem a defende, vez que não se trata de questão de simples conceito ou de preconceito, ou ainda de preferência, mas de uma violação sexual de extrema gravidade e que alcança o âmago da vítima, capaz de causar-lhe dano moral e emocional de avassaladora irreversibilidade.

            Assim é que não se consegue ver como se afastar da defesa de posicionamento mais enfático, proporcional e equivalente à gravidade dos resultados avassaladores provocados nas vítimas desses delitos. Irá se procurar fundamentar a demonstração de que tal posicionamento estará pautado na temática onde está instalado o centro dessa polêmica, sendo suas raízes fincadas na distinção que deveria estar devidamente marcada entre os conceitos de concurso de crimes e crime continuado, o que se evidenciará ser o ponto truncado da questão.

            Pelo que se parte para a análise da primeira parte do art. 69 do Código Penal, quando pode-se observar de forma clara que este prevê que haverá o concurso material entre crimes sempre que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, praticar dois ou mais crimes, idênticos ou não, quando serão aplicadas cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. Enquanto isso, a tipificação do crime continuado consta do art. 71 do mesmo código, sendo este caracterizado sempre que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças, devendo os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, situação em que aplica-se a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

            Ocorre que estupro e atentado violento ao pudor não são considerados crimes da mesma espécie, apesar de combinarem em muitos pontos de semelhança e, assim, quando praticados em concurso de crimes comumente podem ser confundidos com o crime continuado, em decorrência do "modus operandi" e também pelas possíveis condições de continuidade temporal, além de normalmente ocorrerem no mesmo lugar e, ainda, de freqüentemente serem praticados de forma subseqüente, incorretamente havidos como continuação do primeiro.

            Demonstrado o binômio necessidade/possibilidade de desfazimento do entendimento quanto a continuidade delitiva entre estupro e atentado violento ao pudor, passemos para a confirmação da configuração do concurso material entre esses crimes, mesmo que os atos libidinosos praticados para o cometimento do delito tipificado no art. 214 do Código Penal venham a ser cometidos antes da conjunção carnal caracterizadora do crime do art. 213.

            Afinal, o já mencionado art. 69, de forma clara e expressa – e, justamente por isso, indiscutível – prevê claramente a caracterização do concurso material de crimes quando o sujeito ativo pratica quaisquer das condutas delitivas (ou seja, "mediante mais de uma ação") consideradas como atos inquestionavelmente caracterizadores do primeiro delito: o atentado violento ao pudor. Em seguida, o mesmo agente submete a mesma vítima à conjunção carnal (ou seja, "pratica dois ou mais crimes"), introduzindo seu pênis na vagina da mulher, contra a vontade desta, o que igualmente é indiscutível conduta caracterizadora do segundo delito: o estupro.

            Pergunta-se: onde estaria o ponto obscuro o bastante para alguns doutrinadores não conseguirem enxergar o evidente concurso material existente entre os crimes de atentado violento ao pudor seguido de estupro? De onde se extraiu o entendimento de que o estupro absorveria o atentado violento ao pudor, contrariando o conceito básico e expresso de concurso material de delitos, tipificado no art. 69 do Código Penal Brasileiro?

            É senso comum o entendimento de que quem absorve algo o faz por ser mais forte, maior, mais poderoso, por ter condições de suplantar, consumir o que está sendo absorvido. Contudo, o estupro seria em que, onde e porque mais forte ou mais grave que o atentado violento ao pudor? Acaso se sustenta este conceito lastreando-se no que se entende por atos libidinosos menos graves, representados pelos toques nas genitálias, nos contatos voluptuosos e na contemplação lascívia?

            Se assim fosse, apenas se consegue imaginar como sendo uma desfocada tentativa de se aproximar de uma ousada forma de utilização da metonímia, figura de linguagem que tem como peculiaridade utilizar uma palavra por outra, podendo relacioná-las de diversas formas, como o efeito pela causa, o continente pelo conteúdo, o símbolo pela coisa significada, a parte pelo todo, dentre outras várias formas. Caberia esse instituto nas interpretações dos tipos penais?

            Decerto, nem o estupro pode ser visto como mais grave que o atentado violento ao pudor, nem a metonímia não se aplicaria e não acolheria a idéia extravagante de ser o atentado violento ao pudor absorvido pelo estupro.

            Entretanto, e com a seriedade que o assunto requer, não se consegue ver por onde se defende ser e, por fim, justamente por isto, não se pode aceitar este entendimento, esperando-se que vozes mais audíveis ao círculo jurídico possam ouvir e ser ouvidas sobre esta questão que se levanta, conseguindo desmistificar esse despropositado entendimento, o qual impede que muitos dos criminosos que cometem os hediondos crimes de atentado violento ao pudor em concurso material com o delito de estupro sejam devidamente punidos com a aplicação cumulativa das penas privativas de liberdade previstas para ambos os delitos.

            Ou seja, o agente criminoso que obriga à vítima a com ele fazer sexo oral antes da prática de sexo anal, condutas estas por alguns consideradas meros atos subsidiários para a conjunção carnal que se seguirá, limitarão a levar o sujeito ativo ao cumprimento da pena de reclusão entre seis e dez anos, pois entende-se que cometera um único crime: estupro.

            Enquanto isso, se a ordem das condutas fosse invertida – primeiro sendo praticado o estupro e somente depois os atos libidinosos do atentado violento ao pudor – ou bastando que fosse corretamente aplicado o teor do art. 69 do Código Penal, restaria perfeitamente configurado o concurso material entre os dois crimes, possibilitando ao julgador aplicar ao indivíduo infrator as penas cominadas para ambos os delitos, de forma cumulativa, o que seria traduzido pelo somatório das penas, podendo-se chegar ao dobro da pena atualmente aplicada.

            Ressalte-se, contudo, que não há óbice para que o juiz assim proceda, pois absolutamente em nada estaria sendo ferido o princípio da legalidade e, além desse, estariam sendo resguardados outros importantes princípios do direito penal, como:

            a)o da proporcionalidade da pena, pois esta não pode ser superior, nem inferior, ao grau de responsabilidade pelo fato, pois a culpabilidade é a medida da pena; então, se culpado por dois delitos, que seja então o indivíduo corretamente punido por ambos, na forma do art. 69 do Código Penal;

            b)da lesividade, quando estabeleceu-se o conceito de que o direito penal só deve ser aplicado quando a conduta vem lesionar um bem jurídico, o que evidentemente é o caso, ainda mais quando os delitos são praticados em concurso material de crimes, lesionando de forma mais vil à vítima;

            c)da insignificância, instituindo que o direito penal deve intervir somente nos casos de lesão jurídica de certa gravidade; imagina-se, então, que descartado estaria o questionamento sobre a correta aplicabilidade deste mesmo princípio quando a lesão provocada à vítima fosse de natureza grave, pois lhe proporcionaria não apenas danos físicos, mas também e principalmente morais;

            d)"ne bis in idem", que significa que ninguém pode ser processado nem punido duas vezes pelo mesmo fato, o que fica evidenciado como não sendo o caso em análise, ficando devidamente caracterizado pelas próprias tipificações de ambos os delitos que a conjunção carnal de um resume-se a um fato, encerrado no crime denominado de estupro; enquanto isso, os atos libidinosos praticados contra a mesma vítima deveriam ser consagrados como sendo um outro fato, tipificado como atentado violento ao pudor e devidamente previsto pelo Código Penal; os fatos, aqui, seriam representados pelas condutas caracterizadoras dos dois delitos em análise;

            e)o ético-social, responsável pela proteção de valores fundamentais para a manutenção do equilíbrio da sociedade, exercida através da intimidação, da coação coletiva (instrumento de controle social e de prevenção geral, bem como responsável pela firmação de compromissos éticos entre o Estado e o cidadão, por meio dos quais se consegue o respeito às normas); e o ser humano ter o direito de preservar a sua dignidade e liberdade sexual é, sem dúvida, algo que merece a atenção da ética e da sociedade, gozando da proteção do Direito Penal e, também, dos Direitos Humanos.

            Enfim, da mesma forma que sabe o Direito Penal preservar e cuidar de proibir a aplicação das leis penais por analogia, vez que não se admite a interpretação analógica para leis incriminadoras, o que ocorre em decorrência do princípio da reserva legal, deve-se também entender que além da preocupação com o "in dubio pro reo" – quando se procura assegurar que na dúvida, interpreta-se a lei em favor do réu – não se deve esquecer que existe a outra parte: a vítima.

            Em sendo cuidadosamente observado o aqui exposto, percebe-se que originariamente já existia uma conhecida, razoável e equilibrada fórmula de se fazer a devida justiça: aplicar a lei, na justa medida em que resta prevista. Assim, não se agredirá nem aos direitos e princípios que protegem o réu, bem como se assegurará a justa aplicação da pena que sancionará o infrator e retribuirá ao dano físico e moral sofrido pela vítima.

            Esperemos, então, que possa sempre ser aplicada a punição apropriada e compatível à gravidade decorrente do concurso material entre os delitos dos arts. 213 e 214 do Código Penal, necessariamente combinados com o art. 69 do mesmo código, independente da ordem em que as condutas delitivas venham a ser praticadas pelo agente infrator.


Bibliografia:

            ELUF, Luíza Nagib. Crimes contra os costumes e assédio sexual. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1999.

            FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Especial, vol. II. 35ª ed., São Paulo: Saraiva, 1981.

            HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Direito Penal. Parte especial, vol. V. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955.

            HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

            JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Vol. III. São Paulo: Saraiva, 2002.

            MESTIERI, João. Do delito de estupro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

            MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. II. 15ª edição. São Paulo: Atlas, 1999.

            NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. Vol. III. 35ª edição, São Paulo: Saraiva, 2000.

            PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Especial. Vol. 3. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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Sobre a autora
Sandra Reis da Silva

Advogada em Salvador/BA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Sandra Reis. A equivalência da gravidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 925, 14 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7771. Acesso em: 16 abr. 2024.

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