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O estudo de impacto de vizinhança como instrumento de proteção ao meio ambiente cultural

16/01/2006 às 00:00
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RESUMO

            O presente artigo tem por objetivo tratar acerca do Estudo de Impacto de Vizinhança, novel instrumento trazido à nossa ordem jurídica pelo Estatuto da Cidade. Abordaremos o conceito, os objetivos e finalidades gerais deste instrumento, para depois expor sua importância no que se refere à proteção ao patrimônio cultural, bem comum do povo e cuja preservação é de vital importância para a concretização da função social da cidade.


INTRODUÇÃO

            Segundo a Convenção Relativa a proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, realizada em Paris, em 1972, são patrimônios culturais:

            "a) os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura, ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência.

            b) os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte e da ciência.

            c) os lugares notáveis: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico".

            A Instrução n. 1/03 do IPHAN define bem cultural como "Elemento que por sua existência e característica possua significação cultural para a sociedade - valor artístico, histórico, arqueológico, paisagístico, etnográfico - seja individualmente ou em conjunto".

            Consoante lição do eminente José Afonso da Silva, o meio ambiente é "a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas." Ainda na lição deste renomado jurista, o meio ambiente cultural é integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico que, embora artificial, difere-se do meio ambiente artificial pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou. (Direito Ambiental Constitucional, 5ª ed., p. 20-21. São Paulo: Malheiros, 2004.

            Não resta dúvidas de que, após a promulgação da Carta Magna de 1988, o patrimônio cultural integra o meio ambiente (artificial), sendo, direito de terceira geração, transindividual, difuso (art. 5º, LXXIII). O meio ambiente cultural é direito fundamental do homem, pelo que merece tutela específica e adequada por parte do poder público.

            Válido lembrar que, segundo o item 7 da Carta de Santos, "a preservação do patrimônio cultural é dissociado do conceito de monumentalidade e deve considerar os bens, materiais e imateriais, de caráter afetivo que referenciam as comunidades e os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira."


LEGISLAÇÃO APLICÁVEL

            A evolução normativa na seara ambiental - na qual insere-se o meio ambiente culturala - se deu recentemente, quando passou a integrar o conteúdo das constituições federais modernas, apresentando-se como direito fundamental, estando, desta forma, diretamente ligado ao direito a vida.

            A nossa constituição dispõe exaustiva e explicitamente acerca da matéria, a despeito de, como lembra José Afonso, existirem também muitos outros dispositivos em que os valores ambientais se apresentam sob o véu de outros objetos da normatividade constitucional, estando estes dispositivos em uma situação de penumbra constitucional (obra cit., p. 47).

            O arts. 215 e 216 da C.F. dispõem que:

            "Art.215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."

            Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

            I - as formas de expressão;

            II - os modos de criar, fazer e viver;

            III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

            IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

            V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

            Importante salientar a incessante preocupação do legislador nacional quanto à proteção do patrimônio cultural. Exemplo recente foi a inserção, através da emenda constitucional 48, de um parágrafo terceiro, ao art. 215 da C.F, supracitado, inovando ao prever a criação do Plano Nacional de Cultura:

            "Art. 215(…)

            § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

            I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

            II - produção, promoção e difusão de bens culturais;

            III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

            IV - democratização do acesso aos bens de cultura;

            V - valorização da diversidade étnica e regional"

            Outro dispositivo a ser mencionado é o art. 1.228, §1º do novo Código Civil, o qual apesar de integrar um código que trata do direito privado, ontologicamente individualista, também se preocupou com a tutela do meio ambiente cultural, nos seguintes termos:

            "Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

            § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas." (destacamos)

            Salutar contribuição para instrumentalização e exequibilidade das regras de proteção ao meio ambiente cultural foi trazida pela lei 10.257/2001, autodenominada Estatuto da Cidade, que reflete um conjunto de regras jurídicas que condicionam e pontuam a atividade urbanística. Diversas são as passagens em que a referida lei que dispõe sobre a espécie em debate (vide. Arts. 2º, XII; art. 4º, VI; art. 26º, VIII; art. 35º, II.).

            Com o advento da referida lei, colocou-se à disposição dos administradores novos instrumentos para tutela das cidades e do seu meio ambiente. Dentre estes destacam-se o direito de preempção, a gestão democrática da cidade e o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) que, ao lado do já utilizado tombamento, são instrumentos, se bem aplicados, que terão grande importância para o alcance e efetivação do meio ambiente saudável. Integram, destarte, o que se pode chamar de sistema protetivo do patrimônio cultural, cuidadosamente tratado pelo Estatuto da Cidade.

            Por esta razão, pedimos vênia para discordar com a afirmação segundo a qual "este documento (Estatuto da Cidade) trata de forma breve da preservação do patrimônio histórico e cultural e acaba somente utilizando o instrumento do tombamento de imóveis para proteção." (apud, Garcia, Maria. Coord. A Cidade e seu Estatuto, p.123. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2005.)

            Isto posto, será apenas o EIV objeto deste nosso trabalho - especificamente no que tange a sua função de proteção ao meio ambiente cultural. O Estatuto da Cidade, introduziu este novel instrumento de proteção ao meio ambiente Municipal no nosso ordenamento, disciplinando a matéria em seus art. 36 e 37, transcritos a seguir.

            "Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal.

            Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:

            (…)

            VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural." (grifamos)


EIV: CONCEITOS, FUNDAMENTOS E FINALIDADES

            Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) pode ser definido como documento técnico a ser exigido, com base em lei municipal, para a concessão de licenças e autorizações de construção, ampliação ou funcionamento de empreendimentos ou atividades que possam afetar a qualidade de vida da população residente na área ou nas proximidades. É mais um dos instrumentos trazidos pelo Estatuto da Cidade que permitem a tomada de medias preventivas pelo ente estatal a fim de evitar o desequilíbrio no crescimento urbano e garantir condições de mínimas de ocupação dos espaços habitáveis. (Lucéia Martins Soares, In Dalari e Ferraz, Adilson Abreu e Sérgio, Coord. Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.)

            A sua função fiscalizatória, de prevenção e precaução é característica marcante e que garante a avaliação das obras e das atividades que possam, potencialmente, causar dano ao meio ambiente.

            Funda-se na nova ordem social trazida pela Constituição Federal de 1988, na qual a propriedade individual e absoluta cede espaço, estando submetida à restrições administrativas e ao atendimento da sua função social, bem como outros valores e garantias assegurados à coletividade.

            Tem como finalidade instruir e assegurar ao Poder Público acerca da capacidade do meio urbano para comportar determinado empreendimento. Visa adequar o empreendimento ao meio ao qual ele fará parte.

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O EIV COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

            Primeiramente cumpre salientar que para aplicação deste instrumento é necessário Lei Municipal que defina os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal. Para este mister deverá ser levado em consideração o porte da obra, a região que será executada e o fim a que se destina. Geralmente as Leis Municipais utilizam-se como critério para exigência do EIV a destinação do novo empreendimento, aliado à sua área de construção.

            Há a possibilidade de, dentro de uma mesma cidade, elaboração de critérios diferenciados para cada região. O próprio art. 37 do Estatuto da Cidade afirma que o EIV, ao ser levado à efeito, deverá considerar a qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, e sabendo-se que, nos grandes centros urbanos, cada localidade possui características peculiares, é razoável que a Lei que defina quais os empreendimentos que dependerão de EIV para obter as licenças ou autorizações necessárias mediante critérios diferenciados para cada região, em consonância com suas particularidades, atingindo, assim, os fins almejados pela norma.

            A repercussão que a implementação do empreendimento trará quanto o patrimônio cultural é obrigatório no EIV, já que integrante do seu conteúdo mínimo.

            O caráter preventivo do EIV deve ser ressaltado. Sendo um estudo técnico prévio, seu conteúdo poderá alertar e precaver o Poder Público quanto a repercussão do empreendimento no que se refere às questões ligadas a visibilidade, acesso, uso e estrutura do meio ambiente cultural que compõe determinada área.

            Por via oblíqua, o EIV proporcionará uma maior tutela aos bens tombados localizados naquelas áreas em que o empreendimento pretende ser concretizado.

            Ademais, sabemos que diversos fatores podem prejudicar o meio ambiente cultural, obstando a sua adequada e desembaraçada utilização pelos cidadãos. Neste sentido, pela sua característica de planejamento prévio e eminentemente técnico, O EIV poderá diagnosticar efeitos danosos que ultrapassem ao sistema viário, tais como variáveis ambientais, paisagísticas, sociais e econômicas

            Funcionará, ainda, como freio à cultura da demolição, protegendo, assim, a identidade de um povo, ao verificar a existência de construções, vias, logradouros e praças que fazem parte da cultura local secular e que não podem ser afetados pela inserção de novos empreendimentos.

            Verifica-se, sem maior esforço, que a proteção ao Meio Ambiente Cultural através do EIV, evitará a transformação do espaço público vivo em espaço público morto, com a perda da função precípua do meio ambiente cultural, que é integrar os indivíduos, em detrimento de outras funções.

            Para ser eficiente, diz Gisele Salgado, "a preservação do patrimônio histórico deve levar em consideração outros fatores da cidade, e não somente o prédio ou o monumento e seu entorno. Deve-se entender o patrimônio histórico como parte da cidade e que também passa por transformações, se não na estrutura, nas suas funções e utilização." (apud, Garcia, Maria. Coord. A Cidade e seu Estatuto, p.123. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2005.) E o referido estudo funciona desta forma, já que pode prever os impactos que um novo empreendimento trará quanto aos bens culturais da comunidade, impedindo que estes se transformem em bens de mera passagem, por exemplo, o que poderia destruir a natureza de uma praça pública, por exemplo, que é de mesclar pessoas e diversificar atividades.

            As consequências de um empreendimento que abalem o meio ambiente cultural consequência é o afastamento social do indivíduo que deixaria a coletividade para privacidade/individualismo, gerando uma vida pública esvaziada, afastada do conceito de urbes, de cidade que, em decorrência passa ser sinônimo de exclusão, violência e marginalidade.

            O meio ambiente cultural possibilita a cidade como "um espaço espaço da vida", como "instância social", como espaço de convivência humana sob a forma de associação, possibilitada "para uma vida feliz" (Aristóteles). Identidade da cidade com o citadino. É uma marca do indivíduo na cidade. Promove, indubitavelmente, a interação dinâmica entre às pessoas e a cidade. Daí a imperiosa necessidade de sua preservação. E o EIV atua precavendo possíveis atividades a degradadoras.


DA OBRIGATORIEDADE E IMPORTÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR

            É certo que a preservação do patrimônio histórico pensada pelos habitantes da cidade de uma forma democrática, proporciona uma preservação muito mais rica, uma identificação do habitante com sua cidade e um material mais diversificado para as futuras gerações.

            Além de importante, a participação popular nas decisões acerca do planejamento e desenvolvimento do seu município tornou-se obrigatória.

            Isto já decorria, a nosso sentir, do Princípio Constitucional da Cidadania inserto no art. 1º, II da Carta Política. Com advento do Estatuto da Cidade, a matéria foi tratada de forma explícita, ganhando status de Princípio Geral do Estatuto da Cidade (Art. 2, XIII) e sendo instrumentalizado de forma satisfatória e completa através da denominada Gestão Democrática da Cidade (Art. 43), estando, ademais explicitamente vinculada ao EIV, por força do quanto previsto no Art. 37 da multimencionada lei.

            Caso a participação popular no que tange a elaboração e conclusões predispostas no EIV não seja adequadamente efetivada pelo órgão competente, é a Ação Popular contra ato lesivo ao patrimônio público, inclusive quanto ao patrimônio histórico e cultural, o remédio adequado a ser manejado pelos munícipes prejudicados.


CONCLUSÃO

            Munford, citado por Maria Garcia, afirma, acertadamente, que "a principal função da cidade é converter o poder em forma, energia em cultura, a matéria inanimada em símbolos vivos de arte, a reprodução biológica em criatividade social." (apud, Garcia, Maria. Coord. A Cidade e seu Estatuto, p.39. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2005.) (Grifos nossos.)

            "A cidade é a casa, o País, o mundo: é o âmbito político de uma existência que se inicia, decorre e termina localmente; portanto, também um âmbito subjetivo, individual, pessoal." (idem, p. 27). A cidade é a nossa casa. Por isso faz parte da vida daqueles que nela vivem.

            É a identidade de um povo. E o meio ambiente cultural integra esse conceito. Mais que isso, proporciona o lazer, a identificação, o conforto, salubridade, enfim, uma vida feliz e saudável para os citadinos.

            Sem planejar, não há como evitar o crescimento urbano desorganizado e preservar o meio ambiente. O EIV vem a ser um bom instrumento para proporcionar um crescimento equilibrado e o desenvolvimento sustentável das cidades, garantindo uma vida mais saudável para esta e para as futuras gerações, funcionando, destarte, como um freio à ambiciosa cultura da demolição.


BIBLIOGRAFIA

            BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 18. ed. São Paulo. Malheiros, 2005.

            DALLARI e FERRAZ, Adilson Abreu e Sérgio (Coord.). Estatuto da cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). São Paulo. Malheiros, 2003.

            FIGUEIREDO, Lucia Valle. Disciplina Urbanística do Direito de Propriedade. São Paulo. Malheiros, 2005.

            GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu Estatuto. 1 ed. São Paulo. Juarez de Oliveira, 2005.

            GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1982.

            SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constiitucional Positivo. São Paulo. Malheiros, 2003.

            ___________. Direito ambiental constitucional. São Paulo. Malheiros, 2000.

            ___________. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo. Malheiros, 2005.

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Sobre o autor
Georges Louis Hage Humbert

Advogado e professor. Pós-doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em direito do Estado pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de São Paulo. www.humbert.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUMBERT, Georges Louis Hage. O estudo de impacto de vizinhança como instrumento de proteção ao meio ambiente cultural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 927, 16 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7794. Acesso em: 5 nov. 2024.

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