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Nada começou com Maquiavel

07/01/2006 às 00:00
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Ciência política. Há autores e autores. Quando o professor pede, quem recusar há de? Tomei nas mãos Tudo começou com Maquiavel, de Luciano Gruppi, e as lavei, depois.

É um livresco em que o autor pretende contar a origem do Estado moderno e, talvez embriagado pelo italianismo de uma pátria sem mitos presentes, resolveu ele nomear a figura santa de Nicolau Maquiavel como o "pai" da tal origem do tal não se sabe o quê. É bom que se diga: não só ele, Gruppi, cometeu tamanha desdita, pois é mania dos literatos praticarem todos os crimes contra a História e se sentirem impunes.

O livro tem como capítulo inicial A Concepção de Estado em Marx e Engels. O autor, percebam, começa mal.

Primeiro, porque Karl Marx não emitiu, em momento algum de sua vida, qualquer conceito sobre o Estado. Seria este, aliás, o tema do último capítulo de O Capital, mas o autor morreu antes, ficando a sua obra inacabada.

Segundo, Marx nunca achou nada de Maquiavel, até porque este, quando fala que o poder (força) é tudo, repete Platão, Aristóteles e outros gregos (suspeitos) do classicismo helênico.

E, terceiro, Maquiavel era um republicano e democrata, diferentemente do que podem pensar, imaginar e sonhar todos os autores e os senhores.

Em o "Estudo da família, da propriedade e do Estado", Engels faz uma abordagem do assunto, assim mesmo misturando idéias suas com anotações de Marx, mas trazendo à luz uma visão que pisca tal qual a repetição contínua de que o capital é nefasto; de que é ele, o maldito capital, a causa de todas as desgraças do mundo (parece que não tanto, pois Engels era rico, filho de papai rico, e era ele quem pagava as contas de Marx, mas isso é um problema deles).

Fazer do medieval Maquiavel o "pai" do Estado moderno e, em seguida, abrir uma série de concepções clássicas, logo com Marx e Engels, é evidência de que o autor quer que o "poder" maquiaveliano absoluto atribuído ao príncipe projete uma ressonância justificadora para a tese da "ditadura do proletariado" – a velha concepção de Marx, cuja práxis continua inédita até os dias de hoje.

Gruppi consegue colocar o primeiro capítulo em ordem inteligível quando insere os conceitos de Hobbes, Locke, Bodin, Rousseau, Constant, Tocqueville, Kant e Croce. Esses "velhinhos transviados", sim, foram eles os criadores do Estado Moderno. Maquiavel não tinha, não teve e não tem nada a ver com isso.

Alguém reage e diz: "Mas foi ele o autor de O Príncipe, o que lhe dá até mesmo a condição de criador da ‘ciência política’ e do ‘Estado moderno’, da "Politologia" etc.".

A minha sorte é que aprendi a lidar com inteligências (e amizades, amores, lealdades etc.) artificiais, daí que remeto à cesta seção esses libretos duas vezes caros – o pelo preço e pelo tempo que tomam para não nos dizer nada. Tal como a História, a Ciência Política está "assim" de "psicografias" de quinta categoria. Ponto.

Caros amigos. Maquiavel não escreveu um livro para todos. Maquiavel escreveu uma carta (livro, se livro fosse) a um só leitor, Lourenço de Médici. E sabem o porquê da bajulação? Porque Maquiavel estava desempregado, sempre foi um bom articulador político e precisava de um posto de destaque e bem remunerado, coisa que só Lourenço poderia arranjar.

Calcule aí, caro leitor, quantas pessoas leram, à época em que foi escrito, o texto que depois foi nomeado de O Príncipe? Quantas? Errou. Foi uma só: o próprio Maquiavel. Mesmo o Lourenço, a quem a é destinada, dignou-se a ler apenas a origem da tal carta, esquecendo-a no fundo de uma gaveta.

Assim, durante todo o período de hibernação do tal "livrinho mixuruca", a "famosa obra" de Maquiavel não influenciou a quem quer que seja. Repito, era texto para um só leitor – mero puxa-saquismo do florentino, tentando arrumar um "me salva da fome" no domínio dos Médici, nada mais.

Pode soar estranho aos laicos e aos desavisados, mas, Maquiavel era um sujeito de boa índole, idealista. O seu sonho era ver a Itália unificada, republicana e democrática. A sua ação política é a antítese de O Príncipe.

Se o bom Nicolau foi perseguido justamente pelo seu bom caráter, sua lealdade de propósitos, pela sua defesa aberta dos princípios de liberdade – e quase o puseram na fogueira por sua amizade com Savanarola, cardeal católico incendiário (e "incendiado" por ordem da Inquisição) –, iria ele jogar fora toda a sua história de lutas para defender condutas que combatera durante toda a sua vida?

Autores de má índole ou descomprometidos com a verdade tratam-no como vilão. Alguns, eu o disse logo acima, "psicografam" suas próprias lucubrações e as botam na boca do nobre pensador, que, dentre tantas outras coisas ótimas, escreveu a peça A Mandrágora.

Dia desses paguei pouco mais de 60 reais para ter em mãos "As 100 maiores personalidades da História", um trabalho elaborado por Michael H. Hart e publicado pela DIFEL. Nesse ranking elaborado por critérios "estranhos" (Maomé, o nº. 1? Give me a break!), Maquiavel aparece em 79º lugar, onde Hart, o autor/selecionador mente, torna a mentir e continua mentindo. Repito, ipsis litteris, o seu descalabro:

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"Poucos filósofos políticos foram denunciados com a veemência com que o foi Maquiavel. Durante anos, condenaram-no como a encarnação do demônio, sendo seu nome empregado como sinônimo de duplicidade e esperteza". (Com certa freqüência denúncias mais veementes vinham daqueles que praticavam o que ele ensinava - hipocrisia que, em princípio, ele deveria aprovar!).

"Maquiavel declarou repetidamente não estar sugerindo uma nova política, mas, na verdade, mostrando técnicas que já haviam sido usadas por muitos outros príncipes bem-sucedidos desde tempos imemoriais".

Caro amigo Michael H. Hart. Como é que Maquiavel pode ter declarado repetidas vezes que não estava sugerindo novas políticas, e, sim, mostrando técnicas antigas, se o livro O Príncipe, produto da carta encontrada entre os objetos pessoais de Lourenço de Médici, só foi publicado cinco anos após a morte do autor?

Insensato Michael, talvez você não tenha feito uma pesquisa correta a respeito de Old Nick. Saiba que, enquanto escrevia os "Discursos", Maquiavel tinha em mente um propósito bem prático: assegurar dos Médici um emprego, embora fossem eles inimigos do governo ao qual ele havia servido. O esperto Nicolau chegou a bolar uma cruzada contra os usurpadores estrangeiros. Afinal, Giovanni de Médici era Papa, e seu irmão, Giuliano, o Duque de Nemours, estava numa aparente posição de poder. Crédulo, esperava que os Médici o empregassem, e até disse, humildemente, que trabalharia para eles mesmo que tivesse de começar rolando blocos de granito.

Maquiavel havia começado a escrever loas aos Médici no fim de 1513, mas o texto só teve forma final em 1516, quando o dedicou a Lorenzo de Médici. Publicado em 1532, cinco anos após a morte do autor, a interpretação do tal libreto fora do contexto verdadeiro (que era "Dateme lavoro, mio principe"), deu origem a esses debates que persistem até aos dias atuais. A primeira versão para o inglês surgiu em 1640 e foi levada para a Inglaterra por Oliver Cromwell.

Desagravo Maquiavel. Ele sequer soube o que aconteceu no mundo com a leitura dada ao conteúdo da carta que virou livro. Repito, ele só queria um lugar no âmbito de poder dos Médici. Afinal, filósofo também come, bebe, dorme; tem mulher, filhos, contas a pagar...

Resumindo: nada que seja de mal começou com o Nicolau.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Bordoni

jornalista, radialista e cientista político em Goiânia (GO), bacharelando em Direito pela UNIP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORDONI, Luiz Carlos. Nada começou com Maquiavel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 920, 7 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7801. Acesso em: 18 nov. 2024.

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