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Infrações de trânsito:

ampla defesa ou cerceamento de defesa?

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Embora o Código de Trânsito Brasileiro tenha entrado em vigor no ano de 1998, foi somente a partir de 2004 que os órgãos de trânsito passaram a procurar respeitar o princípio do art. 5°, inciso LV, da Constituição Federal (datada de 1988). No entanto, esse respeito à norma constitucional é apenas parcial e tem ensejado penalizações indevidas.

A norma administrativa que passou a tratar do direito de defesa em matéria de infrações de trânsito é a Resolução n° 149, de 19 de setembro de 2003, emanada do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN). Antes dela, havia uma pletora de impugnações judiciais às penalidades administrativas de trânsito, muitas das quais foram decididas em última instância pelo Superior Tribunal de Justiça favoravelmente aos supostos infratores em face da inexistência de oportunidade para defesa.

Antes da referida Resolução, o que existia era o mero direito de recurso. Uma vez constatada a ocorrência de infração de trânsito, a respectiva autuação e a penalidade eram emitidas em conjunto, de modo que o suposto infrator era punido sumariamente, sem direito de defesa; o que lhe restava era a faculdade de lançar mão de recurso contra a sanção imposta.

No entanto, os órgãos de trânsito têm dado ao direito de defesa sérias limitações que muitas vezes redundam na sua franca inutilização. Muitas das notificações de autuação (que dão ao proprietário do veículo a notícia de que uma infração teria sido praticada), ou mesmo os próprios autos de infração diretamente entregues ao condutor, contêm instruções estranhas que fazem da defesa um meio de impugnar apenas aspectos formais do auto de infração (e ou da respectiva notificação, quando houver). Desse modo, o autuado pode oferecer defesa apenas para discutir incorreções contidas no auto (ou na notificação) enquanto documento, tais como placa do veículo equivocada, cor do veículo equivocada etc. Transcrevemos, a seguir, instruções desse feitio extraídas do sítio oficial do DER/SP (www.der.sp.gov.br/_servicos/multas.asp), acessado em 15/12/2005:

"O processo de Defesa da Autuação só pode ser interposto antes da imposição da penalidade de multa cujas alegações de defesa, deverão restringir-se à consistência do auto de infração, ficando o mérito, quando da interposição do recurso administrativo, para análise e julgamento pela JARI/DER" (sic – mas o grifo é nosso)

Além disso, será freqüentemente inútil esse exercício limitado do direito de defesa, na medida em que muitas matérias (as de mérito) desde logo alegáveis terão de ser apresentadas em momento posterior – levando o cidadão a ter de ser penalizado para, então, poder se insurgir contra a penalidade. Isso é absurdo. Ninguém pode ser obrigado a aguardar sua condenação para, somente em seguida, ter a possibilidade de se defender. Está havendo grave confusão entre o conceito de defesa e o de recurso, que são bem diferentes um do outro.

O que ocorre, em suma, é uma aparente satisfação do preceito constitucional que trata do direito de defesa. Mas, se a Constituição Federal estabelece o direito à ampla defesa, é evidente que nenhuma limitação pode ser tolerada, sobretudo em se tratando de limitação que não tem razão de ser – pois nada impede que o autuado, na sua defesa, exponha prontamente outras alegações além de simples incorreções formais do auto de infração ou da notificação correlata. O autuado tem o direito líquido e certo de se defender em todos os aspectos possíveis, limitando-se apenas pela lei (que esteja em consonância com a Constituição), pela Moral e pelos bons costumes, pois, como bem explica Celso Ribeiro Bastos, a ampla defesa é "um instrumento assegurador de que o processo não se converterá em uma luta desigual em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas. Não, forçoso se faz que ao acusado se possibilite a colocação da questão posta em debate sob um prisma conveniente à evidenciação da sua versão."[1]

Em conclusão, os limites à defesa irracionalmente ditados pelos órgãos de trânsito são nitidamente inconstitucionais. Simples atos normativos (normas administrativas de trânsito) não podem criar restrições infundadas a um direito petreamente consignado na lei suprema do país. E, em nosso entendimento, o resultado dessa ordem de coisas é a permanência da orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que o cerceamento do direito de ampla defesa persiste, acarretando a invalidação de penalidades aplicadas em resultado da injustificável redução de matérias alegáveis.


NOTA

[1] "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 2, p. 266. Ed. Saraiva, São Paulo: 1989).

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SANTOS, Samuel Belluco Silveira. Infrações de trânsito:: ampla defesa ou cerceamento de defesa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 922, 11 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7805. Acesso em: 24 abr. 2024.

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