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Considerações sobre o desvio de poder nas alterações dos contratos administrativos

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5. CONCLUSÃO

          As alterações dos contratos administrativos nem sempre mereceram tratamento específico na legislação brasileira. Aliás, o próprio Direito Administrativo é um ramo relativamente novo do Direito, contando hoje com aproximadamente 100 anos.

          Foi com o Decreto-Lei 2300/86 que as alterações dos contratos administrativos foram consideradas na legislação brasileira pela primeira vez. Passávamos, assim, radicalmente, do total vazio legislativo à previsão legislativa das hipóteses de admissão das alterações contratuais no negócio jurídico administrativo.

          Mas, ao lado da supressão dessa lacuna legal, um novo problema jurídico surgiu: o da interpretação da norma legal. Com efeito, na medida em que o art. 55, em seu inciso II, na alínea "d", dava margem à interpretações amplas da sua aplicação, o legislador viu-se novamente na contingência de interferir no ordenamento jurídico então vigente, através da Lei 8666/93, restringindo a discricionariedade do Administrador. Indubitavelmente, o propósito do legislador foi evitar que o administrador público, sob o manto da legalidade, praticasse o desvio de poder.

          Atualmente, as alterações dos contratos administrativos estão reguladas pela Lei 8666/93 e suas modificações posteriores. Esse diploma legal nasceu sob o império de um clima político particular: após a renúncia do ex-Presidente Collor, que vinha sendo submetido a um processo de "impeachment" em virtude de condutas irregulares. Nessa ocasião, havia um grande clamor público para maior controle dos gastos públicos.

          Essa atmosfera política influenciou, sem dúvida, a elaboração da Lei 8666/93. Conseqüentemente, não fica difícil deduzir que o poder discricionário do Administrador público foi reduzido, quando se tratava de alteração contratual. Aliás, pode-se dizer, mais genericamente, que se percebe uma tendência crescente de limitação da discricionariedade e conseqüente redução da possibilidade do desvio do poder, estudada na última parte desse trabalho.

          Apesar dessa tendência e num movimento, à primeira vista, inverso, a Lei 9648 de 27/05/98, que alterou a Lei das licitações públicas e contratos administrativos trouxe perigoso aumento na discricionariedade do administrador, verdadeiro "cheque em branco" colocado nas suas mãos. Nesse passo, observamos que o Artigo 110 do Anteprojeto de Nova de Lei de Licitações Públicas retoma a tendência observada, de restrição de discricionariedade, pois não contém a alteração trazida ao § 2º da Lei 8666/93 pela Lei 9.648/98.

          Do direito comparado, podemos extrair um exemplo de como ainda é grande a atual discricionariedade do Administrador brasileiro. Assim é que, no direito francês, a jurisprudência é no sentido de que as alterações contratuais quantitativas são permitidas até o limite de 15%, enquanto que, no direito brasileiro, o limite é de 25% e 50% para o caso de reforma de construções ou equipamentos.

          Outro exemplo de discricionariedade exagerada pode ser encontrado no conceito de Projeto Básico constante no art. 6º inciso IX, da Lei 8666/93. Na prática, o administrador público considera como projeto básico um conjunto de informações insuficientes para bem especificar o objeto da licitação, abusando do sentido da palavra "básico" e se distanciando do sentido dado pela Lei.

          Indubitavelmente, não pregamos, aqui, a extinção da possibilidade de alteração dos contratos administrativos. Engessar os contratos poderia significar grande retrocesso, principalmente tratando-se de grandes obras, de longo prazo, em relação às quais eventualmente, o interesse público mude no curso do contrato, alterando projetos técnicos. Nesses casos, as alterações se fazem imperativas.

          Acreditamos, porém, que o legislador brasileiro deva privilegiar, quando da realização de um contrato administrativo, a exigência de maior definição do seu objeto. Certamente não é do interesse público a improvisação e o amadorismo na aplicação de recursos públicos. Nesse passo, sugerimos a existência de um projeto executivo, a ser apresentado quando da publicação do edital e que seria utilizado para o desenvolvimento da obra em questão. Essa exigência propiciaria uma fiscalização mais eficiente da confecção da obra, uma vez que as especificações técnicas estariam, desde o início, previstas no contrato. Além disso, os recursos atuais de computação aliados à engenharia permitem criar condições para que projetos sejam desenvolvidos com significativa precisão.

          De outro lado, o projeto executivo facilitaria a escolha da proposta mais vantajosa aos interesses públicos, porque mais próxima da realidade conhecida pelas partes. Suponhamos o caso de uma licitação, em que a Administração licite a contratação de objeto com quantidades superestimadas. É fácil imaginar que possíveis licitantes, ao tomarem conhecimento das grandes quantidades, não apresentem sua proposta, estimando não terem condições de atender à demanda pretendida.

          Do mesmo modo, outros interessados participarão da licitação. Todavia o preço ofertado será em função da quantidade do pretendido pelo edital, ou seja, em função de quantidades majoradas. E, no desenvolvimento do contrato, por permissão do § 2º, II do art. 65, da Lei 8666/93, a Administração e o contratado poderão, de comum acordo, reduzir as quantidades contratadas para um novo patamar não previsto no edital licitatório que, se inicialmente conhecido, talvez desse ensejo à participação de outros possíveis candidatos ao processo licitatório.

          De tudo o que foi exposto, concluímos que as alterações contratuais constituem, na maioria das vezes, fruto da má especificação do objeto do contrato, ou da falta de profissionalismo dos agentes públicos. Afinal, a Administração, deve planejar adequadamente obras, serviços e compras (art. 7, §º 2 e art. 15, § 7º), definindo o seu objeto da melhor forma possível. Atitude contrária significa deixar uma porta permanentemente aberta para o desvio de poder, o que vai contra o interesse público.

          É certo que os erros de planejamento devem ser corrigidos para atender o interesse público. Porém a Administração deve apurar se as alterações foram provocadas no propósito de favorecer um fornecedor ou uma empreiteira. Destarte, posicionamo-nos ao lado daqueles que consideram que as alterações contratuais, qualitativas ou quantitativas, devam ser investigadas pela própria Administração.

          Comparativamente, no setor privado, as mínimas alterações no orçamento de uma obra são exaustivamente discutidas e sempre reportadas à empresa holding. No caso das empresas multinacionais, são freqüentes as viagens do Controller ou as videoconferências para explicar as alterações orçamentárias. Privilegia-se, pois, a prevenção quanto às alterações contratuais.

          A adoção de igual política de rigor com relação às obras públicas poderia dar ensejo a menor índice de desvio de poder e de desperdício de dinheiro público. Atitudes preventivas ganham importância particular quando se trata de interesses públicos, pois sabemos da dificuldade de se provar o desvio de poder, quer seja diante do Tribunal de Contas, quer diante do Judiciário. [210]

          Além da dificuldade da prova, destacamos o fato de que tanto as sanções relativas à Lei de Licitações, quanto aquelas referentes à improbidade administrativa e ao abuso de poder são raramente aplicadas, proporcionando a quase certeza da impunidade.

          A soma desses fatores tem proporcionado ao Administrador vasto campo de manobra para os desvios de poder. Quiçá a recente Lei de Responsabilidade Fiscal, criada em um momento em que a sociedade brasileira clama por uma Administração Pública correta e transparente, venha colocar freios na iniciativa dos Administradores Públicos quanto à prática do desvio de poder!


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Sobre os autores
Paulo Halfeld Furtado de Mendonça

bacharel em Direito e em Engenharia Civil, analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, pós-graduado em Direito Processual Civil e em Engenharia de Segurança do Trabalho

Pascoal Roberto Veneroso

bacharel em Direito e em Administração de Empresas, auditor fiscal da Receita Federal

Rosemary Santos Reis

bacharela em Direito, servidora concursada de Prefeitura Municipal de São José dos Campos, membro de Comissão Permanente de Licitações

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Paulo Halfeld Furtado ; VENEROSO, Pascoal Roberto et al. Considerações sobre o desvio de poder nas alterações dos contratos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 917, 6 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7808. Acesso em: 29 mar. 2024.

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