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Tutela processual dos direitos humanos nas relações de trabalho

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III. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

No imo das relações de trabalho subordinado, não é difícil identificar manifestações de cada uma daquelas gerações de direitos humanos fundamentais. A diferença é que, às mais das vezes, o sujeito opressor não é o Estado, mas o empregador ou o tomador de serviços (sejam pessoas privadas, sejam pessoas jurídicas de direito público ou estatais). O que em nada interfere no "status" desses mesmos direitos: continuam sendo direitos humanos fundamentais, com positividade constitucional. Afinal, também nós entendemos, com CANARIS, que

em contraposição às leis do direito privado, bem como à sua aplicação e desenvolvimento pela jurisprudência, os sujeitos de direito privado e o seu comportamento não estão, em princípio, sujeitos à vinculação imediata aos direitos fundamentais. Estes desenvolvem, porém, os seus efeitos nesta direcção, por intermédio da sua função como imperativos de tutela. [...] Por conseguinte, objecto do controlo segundo os direitos fundamentais são apenas, em princípio, regimes e formas de conduta estatais, e não já de sujeitos de direito privado, isto é, negócios jurídicos, actos ilícitos, etc. [...] A circunstância de, não obstante, os direitos fundamentais exercerem efeitos sobre esses últimos explica-se a partir da sua função como imperativos de tutela. Pois o dever do Estado de proteger um cidadão perante o outro cidadão, contra uma lesão de seus bens, garantidos por direitos fundamentais, deve ser satisfeita também ? e justamente ? ao nível do direito privado. Esta concepção tem a vantagem de, por um lado, não abdicar da posição de que, em princípio, apenas o Estado, e não o cidadão, é o destinatário dos direitos fundamentais, mas, por outro lado, oferecer, igualmente, uma explicação dogmática para a questão de saber se, e porquê, o comportamento de sujeitos de direito privado está submetido à influência dos direitos fundamentais [...]. É de considerar como falhada a tentativa de, recorrendo à "teoria da convergência estatista", imputar todos os comportamentos de sujeito de direito privado ao Estado, e de, em conformidade, os abranger pela função dos direitos fundamentais de proibição de intervenção, de tal forma que não existisse nem espaço, nem necessidade, de invocar a função de imperativos de tutela [...]. A função de imperativo de tutela, e a proibição de insuficiência a seu flanco, têm uma eficácia mais fraca que a função de proibição de intervenção e a proibição do excesso [26].

Conseqüentemente, a função de imperativo de tutela [27] dos direitos humanos fundamentais tem desdobramentos concretos no plexo de direitos e deveres que acedem aos contratos de trabalho, sobretudo em razão dos graus de pessoalidade e subordinação que informam o vínculo. Isso porque, na dicção de CANARIS,

A função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela também se aplica, em princípio, em relação à auto-vinculação por contrato. Ela tem aqui relevância especial, por um lado, se, pelo seu carácter pessoalíssimo, o bem protegido por direitos fundamentais, cujo exercício é contratualmente limitado, não estiver de todo à disposição do seu titular, ou se, pelo seu conteúdo fortemente pessoal, for especialmente sensível em relação a uma vinculação jurídica, e, por outro lado, se as possibilidades fácticas de livre decisão de uma das partes contraentes estiverem significativamente afectadas [...]. O facto de problemas deste tipo serem, em regra, resolvidos de modo puramente privatístico não impede a sua dimensão jurídico-constitucional, em caso de descida abaixo do mínimo de protecção imposto pelos direitos fundamentais, não devendo excluir-se, à partida, a possibilidade de uma queixa constitucional [28].

Convém, portanto, dedicar algum esforço a esse exercício de identificação e classificação dos direitos humanos na órbita juslaboral, como preparação para os desenlaces teóricos posteriores. Vejamos, classe a classe.

1. Direitos de primeira geração (nas relações de trabalho). São todos os direitos civis da pessoa humana sujeitos à afetação no ambiente de trabalho. Quando se cogita da indenização por danos morais e estéticos causados ao empregado, cuida-se, respectivamente, dos direitos à honra e à imagem, que são direitos humanos de primeira geração. Da mesma forma, quando o artigo 7º, XXII, da CRFB assegura o direito à "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança", está blindando os direitos à integridade psicossomática e à própria vida do trabalhador (direitos de primeira geração), à mercê das especificidades de sua condição "ut singulus" (i.e., os riscos laborais inerentes [29]).

2. Direitos de segunda geração (nas relações de trabalho). São basicamente todos os direitos sociais "stricto sensu", largamente estudados no âmbito do Direito do Trabalho e do Direito de Seguridade Social. O elenco é vasto: direito à previdência social (prestações e serviços), irredutibilidade salarial e direito ao salário mínimo, direito ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, direito às horas extras e à jornada regular de trabalho, direito às férias e ao décimo terceiro salário, direito às verbas resilitórias/rescisórias, direito à participação nos lucros e resultados da empresa, etc. Cite-se, ainda, o direito à não-discriminação no trabalho (vide, e.g., a Lei 9.029/95), que deita raízes no próprio direito à igualdade civil, tal como consagrado no artigo 5º, I, da CRFB. Todos esses direitos convergem para um objetivo constitucional tácito, a saber, o de reequilibrar a disparidade socioeconômica entre os proprietários dos meios de produção (empregadores) e os detentores da força de trabalho (empregados). Daí sustentarmos, noutro trabalho, que o princípio da proteção (ou, na moderna terminologia de PALMA RAMALHO, o "princípio da compensação da posição debitória complexa das partes no contrato de trabalho" [30]) é, na verdade, um princípio constitucional implícito [31].

3. Direitos de terceira geração (nas relações de trabalho). Dessa classe é, por excelência, o direito ao meio ambiente do trabalho são e equilibrado (artigo 225, caput, c.c. artigo 200, VIII, da CRFB). Outros exemplos seriam os direitos e garantias específicas de idosos, das crianças e dos adolescentes no trabalho (cfr. os artigos 26 a 28 do Estatuto do Idoso, os artigos 402 a 441 da CLT e os artigos 60 a 69 do ECA), que concernem a interesses difusos e desafiam a legitimidade processual do Ministério Público.

4. Direitos de quarta geração (nas relações de trabalho). São provavelmente os de mais penosa identificação. Dessa ordem seria, e.g., o direito das atuais e futuras gerações a que os quadros públicos (cargos, empregos e funções) componham-se mediante concursos públicos de provas ou de provas e títulos, de modo isento e plural, preservando a moralidade e a imparcialidade administrativas. Perfilhando-se a concepção de BONAVIDES (supra), podem-se ainda identificar os direitos relacionados à democracia e ao pluralismo no âmbito empresarial e sindical (e.g., o direito às comissões e/ou representações de fábrica, ut artigo 11 da CRFB) e também o direito à informação laboral mínima.

Quanto a esse derradeiro aspecto ? o direito à informação laboral mínima ? tivemos ocasião de julgar ação movida pelo Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Destilação e Refinação de Petróleo de São José dos Campos em face da Refinaria joseense da Petrobrás (REVAP), na qual se pedia a exibição de laudos e das medições das concentrações de benzeno dos últimos cinco anos nas diversas áreas do parque industrial. Ao contestar, a Petrobrás recusou-se a exibi-los, alegando tratar-se de levantamentos custeados pela REVAP sem a participação do sindicato, que não teria legitimidade para devassar a documentação alheia, acessando informações estratégicas que interessariam apenas à gestão da empresa; qualquer coerção nesse sentido configuraria violação ao princípio da legalidade. Aos empregados, bastaria saber o resultado final das avaliações ambientais, tal como divulgado em exposições periódicas, a critério do empregador.

Em medida liminar de antecipação dos efeitos da tutela de mérito (18.09.2000), depois confirmada em sentença definitiva, determinamos à REVAP a colação dos laudos e medições nos autos do processo, em documentos originais ou autenticados, restringindo o acesso das informações às partes, advogados e Ministério Público. Na ocasião, evocamos o princípio bioético da autonomia para assegurar aos trabalhadores o direito à informação laboral mínima, ponderando que

sem o pleno conhecimento das medições e dos demais dados coletados e avaliados, a classe profissional não se faz governar com plena autonomia, atendo-se às conclusões de terceiro interessado [...] em inaceitável restrição à autonomia coletiva e malferimento do mais elementar senso bioético, cuja substância define-se pela trindade beneficência (qualidade ambiental e qualidade de vida), autonomia (autogoverno) e justiça (defesa da vida física, comprometimento com o bem-estar do semelhante); daí porque informar plenamente os trabalhadores é inarredável dever, primeiramente bioético e depois jurídico, de que se tem esquivado a reclamada [32].

Registrávamos ainda, pouco antes, que

as provas orais coligidas na audiência de fls.79-81 ? que passa a funcionar como audiência de justificação para os fins do art. 12, caput, da Lei 7.347/85 ? são suficientemente robustas para evidenciar o «periculum in mora», ante a natureza cancerígena do benzeno e a ocultação de dados pela reclamada. Insta observar que a própria reclamada reconhece os riscos do benzeno, a eles se referindo "en passent" no documento de fl.58; da mesma forma, os Anexos 13 e 13-A da N.R. 15 (Portaria 3.214 do MTb) elecam-no entre as substâncias cancerígenas, donde qualquer possibilidade de exposição a benzeno configurar, por razões óbvias, hipótese de «periculum in mora». [...] Já o «fumus boni iuris» deflui do próprio Acordo Coletivo de Trabalho encartado à fl.12 [...]. O direito à informação, em tema de segurança e medicina no trabalho, há de ser pleno, sendo ilícita e ilegítima a sua limitação às informações que a PETROBRÁS quiser ou puder divulgar, sob pena de convolar-se a garantia da cláusula 78, §2º, em mera formalidade sem desdobramentos práticos [33].

Releva notar que a demanda foi ajuizada pelo sindicato como "ação de cumprimento", em vista do teor da cláusula 78, §2º, do acordo coletivo de trabalho então vigente. Mas era, a rigor, uma ação civil pública destinada ao acautelamento de um interesse coletivo da categoria, nos termos do artigo 1º, IV, da Lei 7.347/85. Já por isso, recebemo-la como tal e, em decisão interlocutória mista, determinamos a remessa dos autos à Procuradoria Regional do Trabalho da Décima Quinta Região, facultando ao Ministério Público a integração à lide como litisconsorte ativo ou a intervenção como "custos legis" (artigo 5º, §§ 1º e 2º, c.c. artigo 7º da Lei 7.347/85). O episódio serve para demonstrar como ainda caminha a passos claudicantes a tutela judicial de direitos fundamentais de quarta geração em seara trabalhista (inclusive no que concerne à escolha do remédio judicial adequado).

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Alfim, desbastadas as mais candentes manifestações dos direitos humanos fundamentais no mundo do trabalho, importa saber se esses direitos vêm sendo geralmente respeitados por empregadores como por tomadores de serviços. E o que terminamos por descobrir não chega a ser alvissareiro. A leitura diária dos jornais e a assistência aos noticiários televisivos revelam diuturnas violações dos direitos humanos da pessoa trabalhadora (que, não raro, sequer logra reconhecê-los). Por isso, assinalava em outro trabalho:

[...] a subordinação jurídica do trabalhador torna-se instrumento de opressão e tirania no âmbito das unidades produtivas, conquanto sem a visibilidade de outrora. Na sociedade pós-moderna, a reificação do homem trabalhador dá-se à margem da grande empresa ¾ mas para o seu proveito ¾ nas complexas estratégias de reengenharia, empowerment e terceirização. A discriminação do trabalhador negro ganha foros de normalidade, desvelando-se nos anúncios de emprego que exigem "boa aparência". Não vai atrás a discriminação da mulher e do portador de deficiência no mercado de trabalho. O trabalho escravo é redescoberto no meio rural, ao lado do trabalho infanto-juvenil, sob a batuta de "gatos", aliciadores ou cooperativas de mão-de-obra. Revela-se ainda nas relações domésticas, onde a miséria e a paradoxal solidão do mundo globalizado convergem para a proliferação das "filhas de ocasião", que se sujeitam à servidão humana por anos a fio em troca de alimento e moradia. Nas unidades fabris ¾ inclusas as da grande empresa ¾ os números oficiais de acidentes de trabalho continuam despontando entre os maiores do planeta, anunciando a privação de tudo quanto constitui a própria humanidade do trabalhador: a sua compleição somática (nas mutilações), a sua saúde (nas moléstias), a sua tranqüilidade (nos transtornos psíquicos); por vezes, a sua existência (nos eventos fatais) [34].

À mercê de quadros tão nefastos, a Organização Internacional do Trabalho, fundada em 1919, entendeu por bem reforçar publicamente os seus compromissos históricos há menos de dez anos. Em 18.05.1998, foi aprovada a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (Genebra), que veio conferir maior positividade aos chamados direitos fundamentais da pessoa trabalhadora no âmbito do Direito Internacional Público, derivando-os de princípios que já se continham germinalmente na própria Constituição da OIT (1919) e na Declaração relativa aos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho (Declaração de Filadélfia, de 1944). São eles (artigo 2º):

(a) o princípio da liberdade sindical e o direito efetivo de negociação coletiva;

(b) o princípio da eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;

(c) o princípio da abolição radical do trabalho infantil;

(d) o princípio da eliminação das discriminações em matéria de emprego e ocupação.

Como se vê, alguns soam mais como metas de políticas públicas do que como princípios jurídicos propriamente ditos. Mas, nada obstante, ganharam em positividade e eficácia simbólica com a proclamação de 1998.

O primeiro princípio/direito (liberdade sindical e negociação coletiva), assim como o último (não-discriminação), estão atrelados aos direitos de segunda geração e aos interesses coletivos "stricto sensu". Os outros dois estão ligados aos direitos de terceira geração e aos interesses difusos. Os três últimos têm reflexos evidentes nos direitos de primeira geração da classe trabalhadora (vida, integridade física e psíquica, honra, etc.), o que corrobora uma assertiva anterior: a interdependência é uma das características mais eloqüentes dos direitos fundamentais. A Declaração avançou pouco em relação aos direitos trabalhistas de quarta (e quinta) geração, quando poderia tê-los proclamado enfaticamente. Mas o rol em testilha evidentemente não é taxativo, nem tampouco exauriente. E os padrões deontológicos que a Declaração subministra já permitem entrever em variegadas hipóteses, com grande clarividência, quando se está diante de uma violação aos direitos fundamentais da pessoa trabalhadora. Detectada a lesão ou ameaça, a consciência da opressão tende a precipitar, por si só, o emprego dos meios processuais adequados para a repressão, correção ou prevenção.

A Justiça do Trabalho obviamente tem um papel fundamental a desempenhar na reversão daquele lastimoso estado de coisas. Isso explica, aliás, porque o tema do XII CONAMAT (Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), que se realizou em maio de 2004 (Campos de Jordão), foi a "Afirmação e resistência: o trabalho na perspectiva dos Direitos Humanos". É notória a preocupação da magistratura trabalhista e das suas associações de classe com a "vexata quaestio" da secundarização da tutela dos direitos fundamentais nos dissídios individuais e coletivos (menos por razões dogmáticas do que pela cultura da monetização das lesões).

Mas, afinal, quais são os meios processuais adequados para a tutela desses direitos fundamentais?

O engenho do jurista e, mais raramente, a própria legislação têm oferecido instrumentos mais ou menos adequados para esse gênero de salvaguardas. Vejamos.

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Tutela processual dos direitos humanos nas relações de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 910, 30 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7810. Acesso em: 25 abr. 2024.

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