IV. TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS HUMANOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
4.1. AÇÕES CIVIS PÚBLICAS E COLETIVAS. DANO MORAL COLETIVO
No limiar do século XXI, o Direito universal ressentiu-se da necessidade de instrumentos processuais que favorecessem tutelas coletivas, paralelamente aos instrumentos históricos de tutela processual dos direitos individuais (que estão radicados nas concepções individualistas do liberalismo do século XVIII). Nesse encalço, também a legislação brasileira se modernizou.
No Brasil, os mais formidáveis instrumentos para a tutela coletiva dos direitos fundamentais da pessoa humana trabalhadora ? tanto no que concerne aos direitos de primeira geração (notadamente se enfeixados ? interesses individuais homogêneos), quanto no que atine aos direitos de segunda geração (que, enfeixados, configuram interesses coletivos "stricto sensu") e aos de terceira geração (interesses difusos), são as ações civis públicas e coletivas. Esses institutos inspiraram-se nas "public interest actions" e nas "class actions" norte-americanas ? essas últimas espelham-se melhor nas ações civis coletivas ? e foram introduzidos no Brasil pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 24.07.1985) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11.09.1990), respectivamente.
A esse respeito, interessa desde logo distinguir e definir, com base no direito positivo vigente, as três classes de interesses coletivos "lato sensu" (artigo 81 do CDC). Empregamos tal expressão para designar o gênero dos interesses perseguidos em ações coletivas, já que a tendência atual da doutrina é a de empregar a expressão "transindividual" apenas para os interesses difusos e coletivos "stricto sensu" (sem incluir, portanto, os interesses individuais homogêneos).
Nos termos do artigo 81 do CDC, os interesses coletivos "lato sensu" podem ser:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato [titulares indeterminados e indetermináveis; e.g., direito da Humanidade ao meio ambiente ecologicamente equilibrado];
II - interesses ou direitos coletivos ["stricto sensu"], assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base [titulares em geral indeterminados, porém determináveis; e.g., direito dos metalúrgicos a um reajuste salarial];
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum [titulares em geral determinados de plano, ou ao menos determináveis].
Diz-se haver ação civil pública quando o interesse sob tutela processual é um interesse coletivo "stricto sensu" ou um interesse difuso. De outra parte, fala-se em ação civil coletiva (artigo 91 do CDC) quando a tutela processual favorece interesses individuais homogêneos [35].
Na verdade, as ações que perseguem individuais homogêneos postos no processo do trabalho são as tradicionais reclamações plúrimas (com a diferença de que, a partir de 1990, podem agir pelos trabalhadores todos os entes legitimados no artigo 82, I a IV, do CDC, e 5º da LACP ? inclusive sindicatos, nos limites do artigo 5º, I e II, da LACP). Logo, o Ministério Público do Trabalho está legitimado a demandar judicialmente em favor de interesses individuais homogêneos, notadamente se indisponíveis (como será o caso, sempre que o objeto da tutela forem direitos humanos fundamentais do trabalhador, em vista da própria irrenunciabilidade desses direitos), ou ainda quando "estes últimos, a despeito de serem individuais, assumirem, no seu conjunto, feição coletiva, cuja violação poderá acarretar grave perturbação à ordem jurídica estabelecida (Constituição Federal, art. 127)" [36].
Embora constantes de um diploma específico (CDC), os critérios de classificação dos interesses juridicamente relevantes são aplicáveis a quaisquer outros ramos do Direito (como, e.g., no Direito e no Processo do Trabalho). Note-se que a classificação dos direitos e interesses [37] normalmente não se faz ontologicamente (= pela essência primeira), mas instrumentalmente, i.e., conforme o tipo de tutela jurisdicional que se pede. Exemplo eloqüente disso nos é dado por NELSON NERY JR., que hipoteticamente identificou quatro possibilidades distintas de ações e interesses no caso Bateau Mouche IV, a saber,
interesse individual (pretensão de indenização de uma das vítimas, em ação ordinária de perdas e danos), individual homogêneo (pretensão de indenização a favor de todas as vítimas, em ação ajuizada por entidade associativa), coletivo (pretensão de obrigação de fazer, em ação coletiva movida por associação das empresas de turismo, com vistas à manutenção da boa imagem do segmento econômico local) ou difuso (tutela da vida e da segurança das pessoas em geral, mediante ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público para interditar a embarcação e evitar novos acidentes) [38].
Acresça-se, quanto à utilidade das ações civis públicas e coletivas na Justiça do Trabalho, que o grau de efetividade e de plasticidade emprestado por essas ações à tutela jurídico-processual dos direitos fundamentais da pessoa humana trabalhadora não tem precedentes ou equivalentes no caso brasileiro. Isso porque:
(a) diante da redação aberta do artigo 3º da LACP e da referência à ação civil pública cautelar no artigo 4º do mesmo diploma, é cediço que as ações civis públicas e coletivas são idôneas à provocação de quaisquer espécies de provimentos jurisdicionais: declaratórios, constitutivos, condenatórios à obrigação de pagar (artigo 3º, 1ª parte) ou de fazer (artigo 3º, in fine, e artigo 11), mandamentais ou ainda cautelares (artigo 4º);
(b) em função dessa versatilidade, as ações civis públicas e coletivas prestam-se ainda à obtenção judicial de declarações de nulidade (efeito declaratório) e de anulações (efeito desconstitutivo) de cláusulas de acordos coletivos ou convenções coletivas de trabalho, sempre que tais cláusulas contravierem normas de interesse público ou prejudicarem direitos humanos fundamentais dos trabalhadores [39];
(c) os sindicatos estão legitimados à propositura de ações civis públicas e coletivas (desde que, no caso das primeiras, estejam regularmente constituídos há pelo menos um ano, nos termos da lei civil ? artigo 5º, I, da LACP [40]), tratando-se de legitimidade concorrente (logo, não excludente) que está acometida também ao Ministério Público do Trabalho [41] e aos entes da Administração (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquias, estatais e fundações públicas [42]);
(d) antes mesmo da Lei 8.952/94 (que introduziu, no artigo 273 do CPC, um modelo geral de antecipação dos efeitos da tutela de mérito), a LACP já ensejava a concessão liminar de decisões antecipatórias dos efeitos da sentença de mérito, com ou sem justificação prévia, a exemplo do próprio mandado de segurança (cfr. artigos 12 da LACP e 7º, II, da Lei 1.533/51);
(e) as ações civis públicas e coletivas também admitem, em tese, controle difuso de constitucionalidade na base de dispositivos com efeitos "erga omnes" (artigo 16 da Lei 7.347/85) ou "ultra partes" (artigo 91 do CDC c.c. artigo 21 da Lei 7.347/85), a depender do interesse tutelado (o que os aproxima, em alguma medida, dos efeitos dimanados em sede de controle concentrado de constitucionalidade, que é privativo do Supremo Tribunal Federal) [43];
(f) as ações civis públicas e coletivas são particularmente idôneas à demanda de indenização pelos chamados danos morais coletivos, que amiúde se verificam nos supostos de violação multitudinária de direitos fundamentais da pessoa trabalhadora (terceirizações e quarteirizações fraudulentas, "coopergatos", agronegócios baseados em trabalho escravo contemporâneo, etc.).
Esse derradeiro item merece algum estudo adicional.
Em se tratando de ações civis públicas, tem-se entendido que as indenizações correspondentes devem reverter para o F.A.T. (Fundo de Amparo ao Trabalhador). A prevalecer essa tese, convirá projetar e ultimar, no plano legislativo, uma gestão regionalizada do F.A.T., visando a que as compensações financeiras dos danos morais coletivos favoreçam precisamente a comunidade atingida; ou, alternativamente, valeria engendrar fundos específicos de âmbito local, diversos do F.A.T., destinados à gestão e à aplicação dos recursos arrecadados com as indenizações para o incremento socioeconômico direto das populações vitimadas. Observe-se que já existe um mecanismo semelhante no cenário legislativo nacional: em se tratando de violação aos direitos e interesses da infância e da juventude, os valores das multas (e, com mesma razão, os das indenizações por danos morais coletivos) devem reverter ao fundo gerido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do respectivo município (artigo 214, caput, do ECA), que os aplicará em benefício da comunidade afetada.
A reversão aos fundos é o único equacionamento possível quando se trata de salvaguardar interesses difusos ou coletivos "stricto sensu", nos quais a titularidade é sempre indeterminada. Já no caso das ações civis coletivas em matéria trabalhista (= interesses individuais homogêneos), parece-nos mais apropriado que as indenizações pelos danos morais coletivos revertam em favor das pessoas prejudicadas (os trabalhadores), mediante distribuição proporcional que observe, em sede de liquidação, as necessidades e/ou os danos sofridos por cada titular determinado. Não tem sido esse, porém, o entendimento dominante.
Aduza-se que a tese dos danos morais coletivos e da sua monetização têm merecido ampla aceitação na jurisprudência pátria, mormente nos casos de trabalho escravo contemporâneo e de trabalho infanto-juvenil proibido. Veja-se, por todos:
TRABALHO EM CONDIÇÕES SUBUMANAS. DANO MORAL COLETIVO PROVADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Uma vez provadas as irregularidades constatadas pela Delegacia Regional do Trabalho e consubstanciadas em Autos de Infração aos quais é atribuída fé pública (artigo 364 do CPC), como também pelo próprio depoimento da testemunha da recorrente, é devida a indenização por dano moral coletivo, vez que a só notícia da existência de trabalho escravo ou em condições subumanas no Estado do Pará e no Brasil faz com que todos os cidadãos se envergonhem o sofram abalo moral, que deve ser reparado, com o principal objetivo de inibir condutas semelhantes. Recurso improvido [44].
É, de fato, como pensamos. Fracassada a prevenção (prioritária em todo caso), é melhor que a repressão judicial tenha efeitos consistentemente pedagógicos.
4.2. O «HABEAS DATA» E AS AÇÕES DE RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO
Com o advento da Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, passou a ser da competência da Justiça do Trabalho o processo e julgamento de
mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição (artigo 114, IV, da CRFB ? g.n.).
Os mandados de segurança há muito já eram impetrados no âmbito da Justiça do Trabalho, às raias da habitualidade (conquanto raramente em primeira instância [45]). O "habeas corpus", por sua vez, tinha previsão em diversos regimentos internos de tribunais do trabalho [46], a despeito das variegadas objeções de inconstitucionalidade [47]. Diante disso, a competência para processar e julgar "habeas data" foi, dentre todas, a mais inusitada [48]. Em que hipóteses o cidadão haveria de impetrar "habeas data" para questionar atos relativos à matéria trabalhista?
A função constitucional do "habeas data" é proteger a esfera privada dos indivíduos contra os usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos, contra a introdução de dados sensíveis nesses registros (como os de cunho racial, opinião política ou filosófica, orientação sexual, fé religiosa, filiação partidária e sindical, etc.) e, ainda, contra a conservação de dados errados ou com fins diversos dos autorizados em lei [49] (o que tem especial relevo para o exercício útil da jurisdição laboral, como se dirá). Na origem do "habeas data" está, portanto, o direito de conhecer e de retificar os dados pessoais constantes de registros e bancos de dados de entidades governamentais (i.e., órgãos da administração direta e indireta) e de outras entidades de caráter público (instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestam serviços de interesse público ou o fazem para o público: concessionárias, permissionárias, serviços de proteção ao crédito, firmas de assessoria e fornecimento de malas diretas, etc. [50]).
Mas esse direito não está adstrito à questão da privacidade/intimidade da pessoa humana (direitos de primeira geração), como sustentavam os primeiros autores. Vai mais além da esfera privada individual, concorrendo para a consolidação dos regimes políticos democráticos. Está em causa, por conseguinte, o próprio direito de informação "a se" ? direito que, imantado pelos desdobramentos da globalização econômica e da preeminência dos meios de comunicação, já é alçado à categoria de direito fundamental de quarta geração (supra). Sonegado, pode ser satisfeito com a impetração, pelos interessados, do remédio do "habeas data" (artigo 5º, LXXII), que está entre as garantias individuais da Constituição da República de 1988 (ao lado do direito de petição, do mandado de segurança individual e coletivo, do mandado de injunção e da ação popular [51]).
E há mais. Amiúde, não se trata somente do direito de informação. A seu reboque vêm outros direitos, de primeira, segunda ou terceira geração, cuja preservação supõe e reclama o conhecimento das informações ou a retificação dos dados pessoais. No caso da ação civil pública movida pelo sindicato contra a refinaria (supra), o direito à informação era instrumental em relação ao direito ao meio ambiente equilibrado e à sadia qualidade de vida dos trabalhadores (artigo 225, caput, da CRFB) ? direito de terceira geração, quando se manifesta como interesse difuso.
Dir-se-á, porém, que casos como aquele são pouco freqüentes, o que torna marginal a função do "habeas data" na Justiça do Trabalho. A premissa é verdadeira; a conclusão, porém, é falsa. Há uma outra casuística, das mais encontradiças nas Varas e Tribunais do Trabalho, que envolve a retificação de dados pessoais perante entidade governamental ? o Instituto Nacional do Seguro Social (autarquia federal) ? a bem de um direito fundamental de segunda geração, a saber, o direito à previdência social e seus consectários (artigos 6º, 7º, XXIV, e 201, todos da CRFB). E esse direito de retificar, inerente a toda pessoa que se vê diante da conservação ou circulação de informações pessoais falsas (= direito à verdade sobre si próprio), exsurge agora especialmente menoscabado, no que diz com o trabalhador, à mercê da nova redação da Súmula n. 368 do C.TST. Vejamo-la:
DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS E FISCAIS. COMPETÊNCIA. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO. FORMA DE CÁLCULO.
I. A Justiça do Trabalho é competente para determinar o recolhimento das contribuições fiscais. A competência da Justiça do Trabalho, quanto à execução das contribuições previdenciárias, limita-se às sentenças condenatórias em pecúnia que proferir e aos valores, objeto de acordo homologado, que integrem o salário-de-contribuição.
II. É do empregador a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições previdenciárias e fiscais, resultante de crédito do empregado oriundo de condenação judicial, devendo incidir, em relação aos descontos fiscais, sobre o valor total da condenação, referente às parcelas tributáveis, calculado ao final, nos termos da Lei nº 8.541/1992, art. 46, e Provimento da CGJT nº 03/2005.
III. Em se tratando de descontos previdenciários, o critério de apuração encontra-se disciplinado no art. 276, § 4º, do Decreto nº 3.048/99, que regulamenta a Lei nº 8.212/91 e determina que a contribuição do empregado, no caso de ações trabalhistas, seja calculada mês a mês, aplicando-se as alíquotas previstas no art. 198, observado o limite máximo do salário de contribuição [52].
E, agora, expliquemo-nos.
Em face do que dispõe o artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91 [53], os efeitos previdenciários das sentenças trabalhistas que reconheciam vínculo empregatício sempre foram pífios, senão frustrantes. Sob a égide da EC n. 20/98, exauriam-se no aspecto do custeio: o empregador estava obrigado a recolher as contribuições sociais incidentes sobre os créditos trabalhistas a que fora condenado (desde que constituíssem salário-de-contribuição) e, para mais, deveria ainda recolher as contribuições sociais incidentes sobre os salários e títulos salariais já pagos ao tempo da demanda (assim, e.g., as contribuições incidentes sobre cada um dos salários pagos, observados os prazos dos artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91). Quanto a esse último recolhimento, deflagrou-se acesa polêmica entre juristas, advogados e julgadores: estaria cometido a qual juízo?
De nossa parte, sempre sustentamos que as contribuições sociais incidentes sobre os salários-de-contribuição quitados extrajudicialmente, mas como tal reconhecidos em provimento judicial declaratório de juiz trabalhista, seriam igualmente exeqüíveis na Justiça do Trabalho, ut artigo 114, §3º, da CRFB (antes da EC n. 45/2004) [54]. Como era de se esperar, o Governo Federal acabou por sufragar essa interpretação (artigo 276, §7º, do Decreto n. 3.048/99, na redação do Decreto n. 4.032/2001 [55]).
Ocorre que, à vista do precitado artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91, o tempo de serviço (= tempo de emprego) reconhecido pela autoridade competente (i.e., o juiz do Trabalho), se baseado em provas exclusivamente testemunhais, não era reconhecido pelo INSS para efeitos de aposentadoria ou de quaisquer outros benefícios da previdência social. Afinal, faltava o "início de prova material" exigido nas justificações judiciais e administrativas. Noutras palavras, o Poder Judiciário reconhecia o tempo de serviço, oportunamente declarado por quem de direito, e providenciava o tempo de contribuição, na proporção correspondente (em face das execuções previdenciárias levadas a bom termo pelos juízes trabalhistas, com recolhimentos em favor dos cofres do INSS). Nada obstante, eram baldadas as legítimas expectativas sociais que assim se criavam: apesar do tempo reconhecido e dos esforços de custeio, os órgãos da administração autárquica negavam ? como ainda negam ?as prestações e os serviços de previdência social ao trabalhador, em reverência à letra fria da Lei de Benefícios. Nada poderia ser mais antitético e desolador.
Diante desse quadro, o Tribunal Superior do Trabalho optou pelo caminho mais fácil: render-se à obstinada resistência dos burocratas. Modificou a Súmula n. 368 para consignar a tese oposta: não caberia executar, na Justiça do Trabalho, as contribuições sociais incidentes sobre as verbas pagas no período de vínculo empregatício declarado em juízo [56]. O DD. Presidente do TST, Min. VANTUIL ABDALA, chegou a justificar publicamente a alteração (baseada em estudo do Min. SIMPLICIANO FERNANDES), ponderando que "trata-se de uma injustiça com o trabalhador e um despropósito a Justiça do Trabalho garantir a arrecadação do tributo sobre o dinheiro do trabalhador, que não tem a contagem de tempo reconhecida para a aposentadoria e fica sem os próprios valores recolhidos" [57]. Mas a Corte andou mal, "permissa venia".
A uma, o esforço sumular não tem o condão de espancar a interpretação conforme a Constituição. Embora a Lei 10.035/2000 refira-se apenas à execução dos créditos previdenciários decorrentes de condenação ou homologação de acordo (artigo 876, par. único, da CLT), é certo que a Constituição da República não fez essa distinção, antes (artigo 114, §3º) ou depois (artigo 114, VIII) da EC n. 45/2004. Ao contrário, a "Lex legum" estende a competência da Justiça do Trabalho à execução de todas as contribuições sociais decorrentes das sentenças que proferir, sem discriminar entre os tipos possíveis (e "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus"). Conseqüentemente, se quisermos fazer uma interpretação conforme do artigo 876, par. único, da CLT ("verfassungskonforme Auslegung"), haveremos de palmilhar a teoria das cargas das sentenças (PONTES DE MIRANDA) e entender que a referência legal à «condenação» quer significar «sentença com carga condenatória», qualquer que seja ela (porque das sentenças absolutórias jamais dimanam quaisquer deveres tributários) ? inclusive as sentenças meramente declaratórias com condenação em custas [58]. Do contrário, a exegese do preceito conduzi-lo-á à inconstitucionalidade onde limita, "ex propria auctoritate", uma competência genuinamente constitucional.
A duas, a solução mais justa e técnica é, decerto, a mais vanguardeira: encontrar nas novas competências da Justiça do Trabalho a panacéia para esse dilema. Sem capitular. E é lá, no inciso LXXII, "b", do artigo 5º da CRFB, que vamos localizá-la. A pretensão em causa é a de retificar dados pessoais que a administração autárquica insiste em conservar defasados, apesar do provimento judicial competente; trata-se, pois, de questionar um ato administrativo "lato sensu" (mais precisamente, uma omissão administrativa) que envolve matéria sujeita à competência da Justiça do Trabalho (a saber, a existência ou não do vínculo empregatício e, conseqüentemente, a condição de segurado obrigatório da previdência social [59], recebedor de salário-de-contribuição [60]). Perante tais pressupostos, o remédio constitucional cabível é "de per se" evidente: deverá o interessado, autor na ação reclamatória trabalhista, impetrar ação de "habeas data", com espeque nos artigos 5º, LXXII, "b" da CRFB e 7º, II, da Lei 9.507, de 12.11.1997, para fazer corrigir os dados mantidos em erronia e assegurar todos os efeitos previdenciários positivos do provimento declaratório e do conseqüente custeio. Para tanto, bastará fazer a prova de que o INSS recusou-se, em instância administrativa, a averbar a contagem do tempo de serviço declarado em sentença irrecorrível, ou que deixou de fazê-lo no prazo de quinze dias a contar do requerimento (artigo 8º, par. único, II, da Lei n. 9.507/97). Recebido o "habeas data", seguirá ? com adaptações [61] ? o rito da própria Lei n. 9.507/97 (artigos 8º a 16), que também regula o direito de acesso a informações no Brasil.
Poderia o juiz do Trabalho conceder, de ofício, a ordem de "habeas data"?
Pensamos que não. Em primeiro lugar, não há previsão constitucional ou legal para tanto, ao contrário do que ocorre com o "habeas corpus" (artigo 654, §2º, do CPP); nem tampouco o direito fundamental sob tutela tem a dignidade constitucional da liberdade corporal-espacial (tanto que o artigo 19 da Lei 9.507/97, ao estabelecer a prioridade processual do "habeas data", ressalva, nessa ordem, as ações de "habeas corpus" e os mandados de segurança). Em segundo lugar, conceder de ofício uma ordem de "habeas data" para constranger o INSS a averbar, nos registros do reclamante, o tempo de serviço reconhecido em sentença é temerário, na medida em que a sentença pode ser anulada ou reformada, se houver recurso da reclamada. Apenas excepcionalmente, havendo risco sério na demora (e.g., invalidez aliada à penúria), o reclamante poderia obter, cautelarmente (artigos 798-799 do CPC), uma averbação de tempo que precedesse o trânsito em julgado da sentença. Em terceiro, não se justifica, à luz do princípio da proporcionalidade, sacrificar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório (artigo 5º, incisos LV e LVI, da CRFB), que são pilares do Estado Democrático de Direito, para assegurar imediatamente um direito de retificação passível de exercício "a posteriori", sem maiores prejuízos para quaisquer das partes interessadas. Já o contrário ? autorizar ou determinar a averbação imediata do tempo de serviço/contribuição nos registros do INSS, intimando-o a que simplesmente faça cumprir ? é estender os efeitos do julgado a quem não é parte (violando a norma do artigo 472 do CPC) e empenhar, sem contraditório ou ampla defesa, um patrimônio que, ao cabo e ao fim, não pertence ao INSS (gestor), mas à coletividade: beneficiários, segurados, assistidos, etc [62].
4.3. INVERSÕES DO ÔNUS DA PROVA
Nem todos os expedientes processuais tuitivos dos direitos humanos fundamentais da pessoa trabalhadora têm natureza de ação ou recurso. Há também fenômenos procedimentais que participam do mesmo desiderato. Desses, o mais notório é a inversão motivada do ônus da prova.
A esse respeito, interessa desde logo isolar as quatro classes de ações em que o mecanismo se impõe. São elas:
(a) as ações judiciais que denunciam discriminações (em geral e nas relações de trabalho);
(b) as ações judiciais que denunciam os atentados ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, no âmbito trabalhista, as graves violações aos deveres patronais de manutenção de um meio ambiente laboral hígido, seguro e ergonômico;
(c) as ações judiciais que denunciam atos de violação da privacidade e da intimidade da pessoa humana (em geral e nas relações de trabalho);
(d) as ações judiciais que denunciam assédio sexual e/ou assédio moral ("mobbing").
O primeiro grupo de ações abrange, como visto, os casos de discriminação no mundo do trabalho. Talvez sejam, mesmo, os mais numerosos. Mas o sistema internacional de direitos humanos profliga toda e qualquer discriminação injustificada [63]. Nos termos do artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, "todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação". Já no imo das relações de trabalho, a Convenção n. 111 da Organização Internacional do Trabalho (Genebra, 1958) dispõe que o termo «discriminação» compreende, naquele contexto, "toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão" (artigo 1º, 1, "a"); ou ainda "qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou tratamento no emprego ou profissão" (artigo 1º, 1, "b").
Nessa ordem de idéias, com vistas a otimizar os efeitos da tutela processual do direito ao tratamento isonômico, são recorrentes ? pela via legislativa, jurisprudencial ou doutrinária ? as teses de inversão do ônus da prova nos processos que denunciam tratamentos discriminatórios.
No direito positivo comparado, atente-se para o artigo 23º, 3, do Código do Trabalho português (Lei n. 99/2003), que dispõe:
Cabe a quem alegar a discriminação fundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalhadores em relação aos quais se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que as diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum dos factores indicados no nº 1 [64] (g.n.).
E, na jurisprudência comparada, releva mencionar o paradigmático "case" McDonnell Douglas Corp. v. Green (1973), no qual a Suprema Corte norte-americana decidiu, em caso de discriminação racial, caber ao réu, "prima facie", a prova da não-discriminação, à vista dos elementos incontroversos predispostos nos autos [65]. Com efeito,
the burden then must shift to the employer to articulate some legitimate, nondiscriminatory reason for the employee’s rejection. We need not attempt in the instant case to detail every matter which fairly could be recognized as a reasonable basis for a refusal to hire. Here petitioner has assigned respondent’s participation in unlawful conduct against it as the cause for his rejection. We think that this suffices to discharge petitioner’s burden of proof at this stage and to meet respondent’s prima facie case of discrimination [66].
Observe-se, a propósito, que não se tratava de um litígio contratual, mas pré-contratual ? que, no Brasil, desafiaria a inevitável discussão acerca da competência material para o processo e julgamento do litígio, ut artigo 114, I, da CRFB [67]. De todo modo, mesmo à míngua de disposição legal expressa, consideramos que igual inteligência serve ao contexto judiciário brasileiro [68] (como, inclusive, já decidimos nos autos do processo n. 594/98-0, da 2ª Vara do Trabalho de Taubaté [69]).
O segundo grupo de ações liga-se ao tema do meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da CRFB [70]); e, nesse contexto, ao meio ambiente do trabalho, consagrado na Constituição brasileira como manifestação do meio ambiente humano (ut artigo 200, VIII). Como antecipado (supra), o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é também um direito fundamental da pessoa humana [71], imanente ao rol de direitos humanos de terceira geração [72. Tratando-se, porém, de um interesse aprioristicamente difuso (artigo 81, par. único, I, da Lei 8.078/90), sua tutela processual reclama um procedimento diferenciado, como se dá no Brasil (Lei 7.347/85), na França (Loi 88-14, de 05.01.1988, alterada pela Loi 92-60, de 18.01.1992) e em Portugal (artigo 52º, n. 3, da Constituição portuguesa), entre outros.
Nessa ensancha, é importante reconhecer, com MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, que "a superação, no âmbito processual, do «paradigma individualista» (na expressão de CAPPELLETTI e GARTH) torna-se imperiosa quando o objecto da tutela jurisdicional são os chamados interesses difusos. [...] A garantia desses interesses supra-individuais exige quadros processuais diferentes daqueles que são apropriados à tutela dos interesses individuais" [73]. O professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa cinge-se, nesse ínterim, aos aspectos da legitimidade ativa "ad causam", dos poderes do tribunal e dos efeitos da coisa julgada; mas, a par dessas importantes nuanças, impende discutir, também, o problema da prova nesses processos (fase instrutória) e, notadamente, o dos critérios de repartição do ônus da prova (inclusive a inversão).
Nessa linha, vários autores já sustentam, no Brasil, a inversão do ônus da prova em matéria de sinistros no meio ambiente do trabalho. Veja-se, por todas, a obra de JOSÉ CAIRO JR., para quem o contrato de trabalho subordinado possui, em todos os casos, uma cláusula tácita de incolumidade (tal como a já reconhecida pelo STF em matéria de transportes, ou aquelas apontadas pela jurisprudência dos Estados em tema de prestação de serviços de estacionamento). Essa cláusula seria inerente ao conteúdo mínimo legal do contrato de trabalho e constituiria, por si só, o fundamento maior da responsabilidade civil do empregador pelos danos causados ao trabalhador, mesmo nos sinistros involuntários (artigo 7º, XXVIII, da CRFB). Logo, tratar-se-ia de responsabilidade contratual (= cláusula contratual implícita), ao contrário do que pregam as teses dominantes ao entreverem responsabilidade civil aquiliana (artigos 186 e 927 do NCC). Conseqüentemente, em face da obrigação contratual de cautela do empregador, inverter-se-ia o ônus da prova em todo sinistro laboral com vítima humana, cabendo ao contratante fazer prova cabal da culpa exclusiva da vítima, do caso fortuito ou da força maior (únicas hipóteses que, para CAIRO JR., isentar-lhe-iam de responsabilidade) [74].
De nossa parte, entendemos que as peculiaridades do "iter" probatório ? as provas mais relevantes somente podem ser coletadas nas dependências da própria empresa ? e, bem assim, o teor das normas insculpidas nos artigos 14, §1º, da Lei 6.938/81 [75] e 927, par. único, do NCC [76] autorizam declarar a responsabilidade objetiva do empregador, dispensando-se a prova da culpa, em todas as hipóteses de desequilíbrio do meio ambiente do trabalho, i.e., quando a organização dos fatores de produção gerar, para os internos e o entorno, riscos agravados de dano à vida, à saúde ou à salubridade. Para tanto, cunhamos o conceito de poluição labor-ambiental, lastreado na descrição do artigo 3º, III, da Lei 6.938/81 (poluição definida como "condições adversas às atividades sociais e econômicas") [77]. Para os demais casos, cremos aplicar-se a norma do artigo 7º, XXVIII, 2ª parte, da CRFB ? que, do contrário, seria letra morta. Nada obstante, quanto a esses últimos (casos de responsabilidade civil subjetiva), inclinamo-nos a acolher a tese de CAIRO JR.: impende inverter-se o ônus da prova, para imputar ao empregador ou tomador de serviços o ônus de comprovar que o sinistro não se deveu ao dolo ou à culpa (levíssima, leve, média ou grave), sua ou da parte de seus prepostos.
No que diz respeito ao direito à privacidade e à intimidade das pessoas (terceiro grupo de ações), importa primeiramente reconhecê-los como direitos humanos de primeira geração, se bem que tardiamente reconhecidos [78]. Entre nós, têm positividade constitucional no artigo 5º, X, da CRFB; em Portugal, leia-se o teor do artigo 26º, n. 1, in fine, da CRP; na Bélgica, o artigo 22, 1, da Constituição belga; na Espanha, o artigo 18, 1, da Constituição espanhola, e assim por diante. Em seguida, convém distinguir, entre si, o direito à vida privada e o direito à intimidade. No escólio de HENKEL [79], a esfera da vida privada "stricto sensu" (= "Privatsphäre") compreende todos os comportamentos e acontecimentos que o indivíduo não quer que se tornem do domínio público, ainda que sejam de conhecimento de terceiras pessoas que, num âmbito mais amplo, privem de sua companhia (imagine-se, e.g., um estado de filiação bastarda ou um erro profissional sem maiores conseqüências, que sejam de conhecimento dos familiares ou dos colegas de trabalho, respectivamente, mas que não se queira ver divulgado à generalidade das pessoas). Já da esfera da intimidade, ou confidencial (= "Vertrauensphäre"), participam apenas as pessoas nas quais o indivíduo deposita estrita confiança e com as quais têm grande intimidade, a ponto de tratar de assuntos ou acontecimentos mais íntimos (como, e.g., a sua orientação sexual). Assim, numa visão mais abrangente, "a vida privada é inconfundível com a intimidade «proprio sensu»: a esfera da intimidade integra a noção geral de vida privada, mas não a exaure. Ao menos é assim na Constituição brasileira, em que as duas expressões exsurgem distintas e ladeadas; afinal, a lei (e tanto menos a Constituição) não tem palavras inúteis" [80]. Por conseqüência, os fatos íntimos normalmente desafiam proteção jurídica mais intensa que os fatos da mera vida privada ("Privatsphäre").
Feitas as distinções, interessa tratar de sua tutela no processo e pelo processo.
No processo, tutela-se a intimidade e a vida privada com a proibição e o descarte das provas ilícitas obtidas mediante violações de correspondência ou interceptações telefônicas e telemáticas ilegais [81] (artigo 5º, XII e LVI, da CRFB) ? mas sem perder de vista, em todo caso, os abrandamentos que derivam da aplicação processual do princípio da proporcionalidade [82] (particularmente valioso para o processo penal e, no que couber, para o processo do trabalho ? assim, e.g., nos dissídios que envolverem lesão ou ameaça de lesão a direitos fundamentais de dignidade comparável à liberdade corporal-espacial, como nas ações que discutem interdição de estabelecimento em função de riscos graves e iminentes para a saúde e a integridade dos trabalhadores [83]).
Pelo processo (i.e., pelos remédios judiciais disponíveis), a intimidade e a vida privada dos trabalhadores pode ser assegurada mediante as diversas modalidades de tutela processual inibitória (ações cautelares, mandados de segurança, ações civis públicas ou coletivas [85], etc.). Por essa via, coíbem-se certas formas de exercício ilegal ou abusivo do poder hierárquico do empregador, como nas revistas íntimas injustificadas [85], na monitoração audiovisual dos empregados [86] em áreas privadas ou de descanso (e.g., banheiros e salas de café) e no controle telemático extralaboral [87] (fiscalização de navegação e devassa de e-mails fora do âmbito da unidade produtiva, como, p. ex., nos casos em que os serviços de provedor e caixa postal são oferecidos aos trabalhadores também para uso doméstico e privado). Em situações desse jaez, põe-se, uma vez mais, a discussão da inversão do ônus da prova. Alegada, pelo empregado, a ilicitude de certa prova ? usualmente por violação à intimidade ou à vida privada ?, é do empregador o ônus de demonstrar a sua liceidade (hipossuficiência presumida aliada à excessiva dificuldade em se demonstrar as violações, amiúde perpetradas no ambiente da empresa ? artigo 8º, caput e par. único, da CLT, c.c. artigo 6º, VIII, do CDC e 333, par. único, II, do CPC) [88]; mas ele deve comprovar a ilicitude da prova produzida pelo empregado, se o alegar. Da mesma forma, nas ações inibitórias, havendo prova ou confissão de que a empresa utiliza procedimentos como revistas íntimas, monitorações audiovisuais ou controle telemático ? que, pela sua própria natureza, oferecem risco de violação à intimidade e à privacidade alheias ?, é do empregador o ônus de comprovar que não há ilegalidade ou abuso (= ilegitimidade) na adoção e/ou implementação daqueles procedimentos.
Enfim, com relação ao assédio sexual e ao assédio moral (quarto grupo de ações), diga-se, à saída, que a primeira figura já está positivada no Direito Penal brasileiro, ut artigo 216-A do Código Penal [89]. Já a segunda ainda carece de positivação, mas têm sido definida, no âmbito das relações de trabalho, como "toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho" [90]. São práticas que violam, respectivamente, o direito à livre determinação sexual e o direito à tranqüilidade psíquica, ambos fundamentais, secundando o princípio da dignidade humana. Desse modo, a denúncia de tais práticas, nas esferas civil e trabalhista, reclama especiais cuidados quanto à direção do processo. Impende considerar a inversão do ônus da prova, também aqui, quando a prova do assédio tornar-se excessivamente difícil para o autor (assim, e.g., quando o molestamento ocorre nos domínios do réu ? como em seu domicílio ou na sua empresa ? e todas as testemunhas disponíveis são parentes ou empregados). Esse encaminhamento já tem ecos no direito e na literatura estrangeiras [91] e possui os mesmos baldrames da tese perfilhada para o grupo anterior. É recomendável, contudo, sempre trazer à luz algum indício do assédio (rigor evidente, queda involuntária de produção, tratamento diferenciado, etc.); se todas as descrições indiciárias forem negadas e não houver um elemento sequer que as corrobore, a narrativa torna-se fantasiosa e, nesse caso, inverter o ônus da prova significará impor, sem mais, a condenação, em afronta ao devido processo legal [92]. Já não é assim nos casos clássicos de discriminação, em que as próprias circunstâncias objetivas da relação, tal como consolidadas e reproduzidas, são indiciárias do problema [93].
Ao mais, aduza-se uma consideração de ordem metodológica, válida para os quatro grupos notáveis. Ao contrário do que entende a doutrina processual recorrente [94], pensamos que o problema da inversão do ônus da prova não é apenas um problema de juízo (= julgamento), mas também de procedimento. Isso é especialmente verdadeiro nos processos de garantia de direitos humanos fundamentais, nos quais freqüentemente se dão hipóteses de direitos indisponíveis "ab ovo", que não se sujeitam sequer à confissão ficta (artigo 351 do CPC). Sob tais circunstâncias, cabendo ao réu produzir as provas da não-violação, é medida de inteira plausibilidade que, a bem do devido processo legal e da prevenção das "decisões-surpresa", o magistrado esclareça a situação durante o processo [95] e determine a inversão da ordem de instrução. De resto, e a par disso, a natureza do direito em discussão exigirá, não raro, a iniciativa do próprio magistrado na apuração dos fatos (com fundamento nos artigos 130, 342, 355 e 418 do CPC, ou artigos 653, "a", 680, "f" e 426, II, da CLT), levando até à constituição judicial de provas, sob pena de se referendar, ao final, uma «verdade formal» detratora da realização de direitos humanos de primeira, segunda, terceira ou quarta geração.
Chancelando as opiniões expostas supra, inclina-se hoje a melhor doutrina brasileira. MALLET, por exemplo, obtempera que
as regras relativas ao ônus da prova, para que não constituam obstáculo à tutela processual dos direitos, hão de levar em conta sempre as possibilidades, reais e concretas, que tem cada litigante de demonstrar suas alegações, de tal modo que recaia esse ônus não necessariamente sobre a parte que alega, mas sobre a parte que se encontra em melhores condições de produzir a prova necessária à solução do litígio. [...] Enquanto não houver mudança concreta das regras relativas ao ônus da prova, portanto, continuará o Processo do Trabalho, ainda preso à idéia da igualdade formal dos litigantes, a discriminar a parte menos favorecida da relação litigiosa [96].
Com efeito, não são poucas as legislações que predispõem, no processo em geral, regras de inversão do ônus da prova em casos de disparidade entre as partes processuais (freqüentes no processo do trabalho e em alguns setores do processo civil, como nos litígios de consumo, ut artigo 6º, VIII, do CDC) e também em casos de interesse público (como, e.g., no. artigo 137 do Código de Processo do Trabalho do Paraguai, de 1961 [97]). A legislação processual brasileira, por sua vez, é hesitante. Mas, apesar disso, tais inversões são juridicamente possíveis, tecnicamente defensáveis e politicamente desejáveis, sempre no marco dos princípios que informam a teoria geral do processo e a própria legislação vigente. O que não convém é perpeturar o casuísmo atual, que inspira resistências e suspeições [98]; e, para combatê-lo, há que perseguir, a um tempo, a coerência científica do discurso, a legalidade do processo e a plena obediência ao "due process of law".
Na mesma trilha de princípios, a Diretiva n. 97/80/CE do Conselho da União Européia (15.12.1997), ao examinar a questão do ônus da prova nos casos de processos de discriminação baseada no sexo (gênero), perfilhou o objetivo de "garantir uma maior eficácia das medidas adotadas pelos Estados-membros, em aplicação do princípio da igualdade de tratamento" e, com essa premissa, instou os Estados-membros da União Européia a assegurarem, em suas legislações nacionais,
que quando uma pessoa que se considere lesada pela não-aplicação, no que lhe diz respeito, do princípio da igualdade de tratamento apresentar, perante um tribunal ou outra instância competente, elementos de facto constitutivos da presunção de discriminação direta e indirecta, incumba à parte demandada provar que não houve violação do princípio da igualdade de tratamento (g.n.) [99].
À míngua de lei própria, até mesmo essa Diretiva ? ou, mais corretamente, as legislações por ela condicionadas [100] ? podem ser evocadas pelo juiz do Trabalho brasileiro, ante as insuperáveis lacunas da legislação nacional e a expressa referência, no artigo 8º, caput, da CLT, ao direito comparado como fonte alternativa do Direito do Trabalho (o que diz intimamente com o caráter de universalidade dos direitos humanos fundamentais, em geral, e dos direitos sociais, em especial).
4.4. PODERES INSTRUTÓRIOS E TUTELA «EX OFFICIO»
Tem-se tornado recorrente, na jurisprudência trabalhista, a afirmação de que no processo do trabalho vige o chamado princípio da verdade real [101], notadamente em matéria de admissão de provas testemunhais e documentais após o momento processual oportuno.
Esse princípio a rigor remonta ao processo penal. No dizer de TOURINHO FILHO,
enquanto o Juiz não-penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por eles debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça [102].
Adiante, o mesmo autor assevera:
No Processo Penal, cremos, o fenômeno é inverso [daquele do Processo Civil]: excepcionalmente, o Juiz penal se curva à verdade formal, não dispondo de meios para assegurar o império da verdade [103].
Hodiernamente, esse dado torna-se cada vez mais constante no processo do trabalho, decerto por duas razões fundamentais: (a) o princípio da primazia da realidade, que DE LA CUEVA e AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ preconizaram para o Direito Material do Trabalho (e que tem, obviamente, reflexos no Direito Processual do Trabalho); (b) o caráter indisponível e fundamental de enorme gama de direitos que são violados no contexto das relações de emprego e depois se sujeitam à apreciação da Justiça do Trabalho.
Com efeito, se os direitos humanos fundamentais têm por característica a irrenunciabilidade, está claro que as convenções de prova [104] ou a própria inércia das partes não podem redundar, direta ou indiretamente, na disposição ou menoscabo daquele direito (como, p. ex., o direito à vida, ao tratamento igualitário, à integridade física, à saúde psíquica, ao meio ambiente do trabalho equilibrado, etc.). E, se é assim, resulta evidente que a natureza pública dos interesses em jogo exige, do juiz do Trabalho, que não transija com a verdade formal e nem com ela se satisfaça, senão muito excepcionalmente (quando, ante a impossibilidade de produção de provas hábeis, houver de decidir exclusivamente pela repartição do ônus da prova).
A última ilação permite entrever os influxos do caráter híbrido do Direito do Trabalho no processo laboral. No plano material, o Direito do Trabalho reúne características do Direito Privado (donde as teorias contratualistas), mas também têm características próprias do Direito Público (donde as teorias anticontratualistas ou institucionalistas). São os traços de Direito Público que se refletem, no processo, como persecução da verdade real.
Nessa ensancha, para «alcançar» a verdade real ? tão importante quando se discutem direitos fundamentais da pessoa humana trabalhadora ?, o juiz deve empregar largamente as suas prerrogativas processuais de instrução, com espeque no artigo 765 da CLT (rito ordinário) e/ou no artigo 852-D da CLT (sumaríssimo). O primeiro estatui:
Os juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas (g.n.).
E o último:
O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, considerando o ônus probatório de cada litigante, podendo limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias, bem como para apreciá-las e dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica (g.n.).
Conseqüentemente,
a preclusão da faculdade de requerer a produção de determinada prova, verificada em relação à parte, não impede o exercício dos poderes probatórios do juiz. Inexiste aqui regra que legitime solução diversa. Nada indica tenha o sistema optado por inibir a iniciativa probatória oficial em razão da perda, pela parte, da faculdade de produzir determinada prova [105].
Mas não é só. Pode-se ir um pouco além.
O artigo 273, caput, do CPC, na redação da Lei n. 8.952/94, dispõe que a antecipação dos efeitos da tutela de mérito só se fará a requerimento da parte (princípio dispositivo). Vedar-se-ia, dessarte, a tutela antecipatória "ex officio". Nada obstante, a doutrina vanguardeira ? mesmo no processo civil ? tem reconhecido exceções a essa regra. Assim, "in verbis":
O legislador condiciona a medida ao pedido da parte (art. 273). Não se podem excluir, todavia, situações excepcionais em que o juiz verifique a necessidade de antecipação, diante do risco iminente do perecimento do direito cuja tutela é pleiteada e do qual existam provas suficientes de verossimilhança. [...] Nesses casos extremos, em que, apesar de presentes os requisitos legais, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicionais não é requerida pela parte, a atuação ex officio do juiz constitui o único meio de se preservar a utilidade do resultado do processo. Nessa medida, afastar taxativamente a possibilidade de iniciativa judicial no tocante à tutela antecipatória pode levar a soluções injustas [106].
E isso se explica, segundo BEDAQUE, pela similitude, nesses casos, entre a tutela antecipatória e a tutela cautelar, aplicando-se analogicamente o artigo 798 do CPC (poder geral de cautela), já que tanto as liminares cautelares quanto as liminares antecipatórias do artigo 273, I têm a mesma função no sistema processual [107].
Não haveria de ser diferente no processo do trabalho, em cujo ensejo ? insista-se ? são bem mais recorrentes os pedidos de tutela processual antecipada de bens fundamentais da vida (direitos humanos). Eis porque doutrinadores há que sustentam ser regra, no Direito Processual do Trabalho, a possibilidade de concessão "ex officio" da tutela antecipada. Entendemos, pela via intermédia, que ? em face do teor explícito do artigo 273 do CPC ? apenas excepcionalmente o juiz do Trabalho poderá conceder de ofício a tutela antecipada. Fá-lo-á, precisamente, nos supostos de violação inequívoca de direitos humanos fundamentais da pessoa trabalhadora, por força do princípio da proporcionalidade (que impõe, na espécie, a interpretação conforme e ameniza a inflexibilidade legal) [108]. Pode-se afirmá-lo, ainda, por via de interpretação sistemática: se o processo do trabalho admite a execução "ex officio" (artigo 878, caput, da CLT) com fundamento no caráter alimentar e indisponível dos direitos exeqüendos, "a fortiori" se deve entender pela admissibilidade da tutela processual "ex officio", mesmo em fase de conhecimento, quando há risco iminente a direitos humanos fundamentais (que, vimos, são por definição irrenunciávies ? logo, indisponíveis).
4.5. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
O meio ambiente do trabalho, segundo José Afonso da Silva, é "o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente". Como dito alhures, tem previsão constitucional expressa (artigo 200, VIII) e geralmente transita entre os interesses difusos e os interesses coletivos "stricto sensu", a depender da configuração das pretensões concretas.
Desenvolvendo o chamado Direito Processual ambiental, a doutrina tem reconhecido, como instrumentos processuais constitucionais de tutela ambiental, a própria ação civil pública (tópico 4.1, supra) e outros três outros institutos, a saber, a ação popular ambiental, o mandado de segurança coletivo ambiental e o mandado de injunção ambiental [109].
Admitindo-se que é da Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar todos os litígios envolvendo o meio ambiente do trabalho (como parece decorrer da redação da Súmula 736 do STF [110] e ? mais recentemente ? do próprio teor do artigo 114 da CRFB, na redação da EC n. 45/2004), é forçoso reconhecer que todos esses instrumentos processuais servem à tutela dos direitos fundamentais da pessoa trabalhadora, no âmbito do processo do trabalho. Obviamente, cada qual surtirá bons efeitos nos lindes de sua vocação institucional. Consideremos os três últimos, já que a ação civil pública foi estudada em tópico próprio.
(a) Ação popular ambiental. Nos termos do artigo 5º, LXXIII, da CRFB, serve tanto para os casos de lesão ou ameaça ao patrimônio público (i.e., bens públicos "stricto sensu", como uma praça, um fundo estatal ou um prédio público), como para os de lesão ou ameaça aos bens de natureza difusa [111] (entre os quais está o próprio meio ambiente do trabalho equilibrado). Assim, qualquer cidadão brasileiro [112], no gozo de seus direitos civis e políticos, pode ajuizar ação popular com vistas à anulação ou à declaração de nulidade de atos públicos ou de interesse público que sejam lesivos ao meio ambiente do trabalho (artigo 1º, caput, da Lei n. 4.717/65) ? inclusive o trabalhador. Aplica-se a Lei 4.717/65, em tudo que "não contrariar ou prejudicar a incidência de princípio ou dispositivo da jurisdição civil coletiva" [113]. Suponha-se que a inspeção do trabalho tenha sido fraudada, acobertando sucessivos descumprimentos de normas de saúde e segurança no trabalho que podem prejudicar, direta ou indiretamente, o grupo de trabalhadores, o entorno e/ou toda a comunidade (como, p. ex., nas operações em instalação geradora de energia nuclear ou na manipulação de elementos carcinogênicos). Como resultado da ação popular, o relatório original poderá ser declarado nulo (desvio de finalidade: artigo 2º, "e", da Lei 4.717/65), acometendo-se a outro auditor a tarefa de fiscalização [114].O mesmo se aplicaria à hipótese de um EIA/RIMA eivado de vícios, que permitisse, a um tempo, a exposição dos trabalhadores e da comunidade a níveis intoleráveis de concentração de benzeno: ainda que tenham origem em perícias particulares, laudos como esse suscitam o interesse público e podem desafiar ações populares. Mas em nenhum desses casos haverá reparação de dano, porque a ação popular não tem essa finalidade. Para o fim de reparação, deve-se ajuizar ação civil pública ou coletiva (tópico 4.1, supra). A ação popular colima tão-só declarar nulos, anular ou fazer cessar atos jurídicos e/ou materiais que sejam prejudiciais ao patrimônio público ou atentatórios à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
(b) Mandado de segurança coletivo ambiental. À mercê do artigo 5º, LXX, "b", da CRFB, o mandado de segurança ambiental pressupõe a violação de um direito líquido e certo em matéria ambiental, seja pela autoridade pública, seja pelo agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. No meio ambiente do trabalho, pode-se imaginar a hipótese do Município que não concede, aos seus coletores, equipamentos de proteção individual (direito líquido e certo do trabalhador, ut artigo 166 da CLT). A prova é, a rigor, meramente documental (termos de entrega de EPIs), valendo aqui a regra da inversão do ônus da prova. Podem impetrá-lo, e.g., o sindicato de classe ou o próprio Ministério Público, em face do artigo 127, caput, da CRFB [115].
(c) Mandado de injunção ambiental. Previsto no artigo 5º, LXXI, da CRFB, o mandado de injunção visa à "proteção de quaisquer direitos e liberdades constitucionais, individuais ou coletivas, de pessoa física ou jurídica, e de franquias relativas à nacionalidade, à soberania popular e à cidadania, [...] por inação do Poder Público em expedir normas regulamentadoras pertinentes" [116]. Serve, portanto, à tutela processual da segurança jurídica e da exeqüibilidade dos direitos, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Qualquer pessoa com legítimo interesse jurídico pode usar da injunção, impetrando qualquer das pessoas jurídicas políticas do Estado ou Poderes da Federação. Reitere-se que o direito ao meio ambiente equilibrado, se bem que previsto no artigo 225 da CRFB, é fundamental e goza da aplicabilidade imediata do artigo 5º, §1º, da CRFB. Assim, a se entender que, em relação às normas de segurança, saúde e higiene no trabalho, há omissão do Poder Público em regulamentar certa matéria, e desde que isso inviabilize o exercício de direitos labor-ambientais com fulcro constitucional, caberá a impetração do writ. A competência será da Justiça do Trabalho, por extensão da norma do artigo 114, IV, da CRFB.
Existe, a propósito do mandado de injunção, pelo menos um caso notável de omissão do Poder Legislativo Federal que tem obstado a fruição de um direito ambiental de compleição constitucional: o do artigo 7º, XXIII, da CRFB, no que toca ao adicional de remuneração para as atividades penosas. Embora a preeminência axiológica caiba à redução/neutralização dos riscos inerentes ao trabalho (inciso XXII), é inegável que o inciso XXIII veicula um direito social relevante, que deveria ser pago, à guisa de compensação, a tantos quanto exercessem atividades penosas. No entanto, faltante a regulamentação legal e administrativa da matéria, o adicional de penosidade não tem sido pago àqueles que se sujeitam, em tese, ao labor penoso [117] (exceção feita às categorias que negociaram o direito e o sacramentaram em acordos e convenções coletivas, como ocorreu com os engenheiros e técnicos industriais de Santa Catarina e com os trabalhadores em transportes rodoviários do Pará). Têm, conseqüentemente, legitimidade para lançar mão do remédio [118].
4.6. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
Um estudo sério da tutela processual dos direitos humanos fundamentais necessariamente culmina com o tema da judicialização da política. Inclusive no processo do trabalho.
É que os direitos fundamentais, mormente os de segunda, de terceira e de quarta geração, deveriam ser garantidos e implementados pelo Poder Público, mediante leis (Poder Legislativo) e políticas públicas (Poder Executivo). Há, porém, óbvio déficit de efetividade no que diz respeito a vários desses direitos (sobretudo os de terceira geração). Esse quadro reclama a intervenção do Poder Judiciário, na qualidade de guardião dos valores constitucionais e da Democracia Republicana. E, por conta disso, o que seria, na origem, objeto da discrição legislativa ou da oportunidade e conveniência administrativas acaba por se tornar elemento componente de um processo judicial.
Diante desse movimento sociológico, certos autores têm empregado a expressão supra ? «judicialização da política» ? para designar a tendência pós-moderna de que as omissões ou insuficiências da legiferância e das políticas públicas sejam supridas pela construção jurisprudencial. Tendência que reputamos bem-vinda, se expurgados os excessos e as teratologias (pois, no limite, corroem o sistema dos "checks and balances" e vulneram o princípio do artigo 2º da CRFB). Esse fenômeno revela-se útil, se não necessário, para o pronto atendimento das novas demandas e a solução dos novos litígios, que do contrário defrontariam a inércia e a morosidade natural dos Poderes Executivo e Legislativo [119] (a cujos trâmites políticos, próprios do "iter" decisório, o Judiciário é menos permeável).
Essa, porém, é a judicialização "positiva". Não é aquela, negativa (= de alta intensidade), suposta por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS:
Há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afectam de modo significativo as condições da acção política. Tal pode ocorrer por duas vias principais: uma, de baixa intensidade, quando membros isolados da classe política são investigados e eventualmente julgados por actividades criminosas que podem ter ou não a ver com o poder ou a função que a sua posição social destacada lhes confere; outra, de alta intensidade, quando parte da classe política que, não podendo resolver a luta pelo poder pelos mecanismos habituais do sistema político, transfere para os tribunais os seus conflitos internos através de denúncias cruzadas, quase sempre através da comunicação social, esperando que a exposição judicial do adversário, qualquer que seja o desenlace, o enfraqueça ou mesmo o liquide politicamente [120].
Essa derradeira forma de judicialização é decerto nefasta. Instrumentaliza os tribunais para azeitar as armas do peleja político-partidária, sem nenhum ganho para a Democracia. A interferência "política" da magistratura deve ter o único propósito de fazer cumprir o programa constitucional republicano, especialmente quando os outros Poderes da República injustificadamente se recusarem a fazê-lo. O que houver de mais será espúrio.