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Dos vícios dos atos processuais

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01/10/1999 às 00:00
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05. Os Vícios dos Atos Processuais

Preliminarmente, é necessário ter em mente que os atos processuais, como atos jurídicos que são, têm de preencher determinados requisitos, a fim de que reputados válidos. Dispõe o art. 82 do Código Civil:

"A validade do ato jurídico requer agente capaz (art. 145,I), objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (arts. 129, 130 e 145)"

Tratamos aqui, pois, dos defeitos que atingem a forma pela qual o ato deveria se realizar. Oportuno, aliás, o contraponto; Galeno Lacerda (13) esclarece que, não obstante originarem-se do tronco comum da teoria geral do direito, as nulidades processuais são autônomas, em relação às de direito privado, tendo em vista a natureza da norma violada: se prevalecente o interesse público, a violação provoca a nulidade absoluta, se o interesse protegido é, primordialmente, o da parte, está-se diante de nulidade relativa ou anulabilidade.

De outra banda Ovídio Baptista (14) constata que, concernente as nulidades, no direito material vigem princípios diversos daqueles do campo processual - norteado pelos princípios da instrumentalidade das formas e da finalidade. Mas assevera que na concepção moderna, "as nulidades no campo do direito privado, já não se dividem em absolutas e relativas segundo a gravidade do vício de que seja portador o ato jurídico, mas tendo em vista a relevância ou a natureza do interesse protegido pela norma legal desatendida pelo ato viciado".

Inspirado em Carnelutti, Dall’Agnol Júnior reconhece os requisitos dos atos processuais como necessários e meramente úteis, conforme sua "importância". Assim, os vícios essenciais seriam os relativos aos requisitos necessários, ao passo que os não essenciais ou acidentais, aos simplesmente úteis. Foi também com base nesses ensinamentos que Galeno Lacerda construiu seu sistema de nulidades processuais, no qual as idéias de finalidade, conversão, prejuízo e repressão ao dolo processual foram seus pilares.

Afora tais observações, esclarece Galeno Lacerda: "Não se trata, propriamente, como em geral pretendido, de maior ou menor intensidade do defeito, sim do defeito que mereça ou não mereça a sanção de invalidade, por terem sido ou não terem sido atingidos pelo ato, na sua especificidade". Este é o entendimento contemporâneo, posto que o nível da gravidade do vício não se presta mais para distinguir nulidade de anulabilidade, cedendo lugar para a acepção segundo a natureza do interesse tutelado preponderantemente pela norma: se público ou particular.

No que tange ao conceito de invalidade processual, muitas são as proposições doutrinárias:.

Segundo Grinover, Araújo Cintra e Dinamarco, "em algumas circunstâncias, reage o ordenamento jurídico à imperfeição do ato processual, destinando-lhe a ausência de eficácia. Trata-se de sanção à irregularidade, que o legislador impõe, segundo critérios de oportunidade (política legislativa), quando não entende conveniente que o ato irregular venha a produzir efeitos". Essa conveniência decorre, sobretudo, da "necessidade de fixar garantias para as partes", assim como assegurar a prevalência do contraditório.

Para Plácido e Silva, (15) nulidade é a "ineficácia de um ato jurídico, em virtude de haver sido executado com transgressão à regra geral, de que possa resultar a ausência de condição ou de requisito de fundo ou de forma, indispensável à sua validade".

Por sua vez, Galeno Lacerda assevera que "a nulidade resulta, precisamente, da infração a um preceito cogente e imperativo".

De todo o modo, o que desponta claro em todas essas concepções é o caráter desaprovador que a invalidade instaura. A nulidade é, pois, conseqüência da inobservância da forma estabelecida pela lei para a prática válida e eficaz de determinado ato processual. É vital a compreensão de que existem dois momentos; aquele em que o ato está contaminado pelo vício, mas permanece válido e eficaz até que um pronunciamento judicial decrete a nulidade – o outro momento. Nas palavras dos processualistas Grinover, Araújo Cintra e Dinamarco melhor se traduz a essência dessa distinção:

"Assim sendo, o estado de ineficaz é subsequente ao pronunciamento judicial (após a aplicação da sanção de ineficácia – diz-se, portanto, não sem alguma impropriedade verbal, que o ato nulo é anulado pelo juiz)".

Dall’Agnol também faz suas considerações a respeito, inserindo um trecho do julgado:

"No processo civil, a nulidade é efeito do vício. Ela não é contemporânea do ato. Porque é efeito de vício, deve ser um vício tal, que trouxe para as partes um prejuízo irreparável, que só se pode reparar pela repetição dos atos praticados. Por conseguinte é declarada em concreto" (RJTJRS-119/169)

Em conclusão, não podemos deixar de lembrar o mestre Pontes de Miranda:

          "a imagem mais própria para se diferenciar o anulo e o anulável é a de coleção de cubos (elementos), empilhados regularmente, formando o suporte fático, a que ou faltou alguns dos cubos, vendo-se o espaço vazio, e é a imagem do suporte fático do negócio nulo, ou a que alguns dos cubos menores não foi junto, mas é juntável pelo que o devia ter posto lá, o cubo complementar, ou, pelo tempo mesmo que decorreu, não pode mais ser visto o vazio." (16)


06. O Sistema das Nulidades Processuais

O sistema das nulidades processuais, concebido pelo ilustre Galeno Lacerda e acolhido pelo nosso ordenamento, foi fruto de insigne tese de concurso de cátedra elaborada pelo mestre em meados de 1953. Danilo Alejandro Mognoni Costalunga, expõe o tema com intelecção em sua "A Teoria Das Nulidades e o Sobredireito Processual": (17)

          "A elaboração dessa teoria deveu-se à inquietude do gênio de Galeno Lacerda em saber quando seria possível ou não sanar um vício ocorrente no processo. Iniciou com o exame daquela distinção já existente no nosso Código Civil. Aprofundando a análise no campo próprio do direito processual, que concebe a existência de nulidade relativa, diferentemente do direito civil, necessitaria o jurista saber a distinção entre nulidade absoluta e nulidade relativa, considerando cada um dos atos.

          Para tanto, valendo-se do método indutivo, a partir dos fatos, em determinado momento Galeno Lacerda viu que não era possível distinguir as nulidades examinando o ato em si mesmo, mas sim descobrindo o motivo pelo qual ele é viciado, ou seja, por que não obedece ao preceito legal. Isto é, se há, como existe, distinção entre esses atos, a distinção reside única e exclusivamente na lei violada, na sua natureza.

          Daí por que acentuar o mestre gaúcho que ‘o que caracteriza o sistema das nulidades processuais é que elas se distinguem em razão da natureza da norma violada , em seu aspecto teleológico’.

          Neste sistema das nulidades processuais, como alhures referido, pacificamente aceito e adotado pela doutrina brasileira, os defeitos dos atos processuais podem acarretar três categorias de vícios: nulidade absoluta, nulidade relativa e anulabilidade, sendo que, para COUTURE, a nulidade relativa é a regra geral das nulidades dos atos no processo civil."

Aliás, a título de observação, o sistema das nulidades proposto por Galeno Lacerda tem suas origens atreladas ao art. 687, do Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, o qual dispunha que:

"As nulidades também se dividem em nulidades absolutas e relativas, para o efeito seguinte:

As nulidades absolutas podem ser propostas ou alegadas por todos aqueles a quem interessam ou prejudicam, como se determina no artigo antecedente, mas as nulidades relativas, fundadas na preterição de solenidades estabelecidas em favor de certas pessoas, como a mulher casada, menores, presos, réus e outros, só podem ser alegadas e propostas por essas pessoas, ou por seus herdeiros, salvo os casos previstos em leis. A nulidade relativa, sendo de pleno direito, não será pronunciada, provando-se que o contrato verteu em manifesta utilidade da pessoa e quem a mesma nulidade respeita."

Moniz De Aragão (18) distingui as invalidades desde a mais grave, a nulidade absoluta; a menos grave, a anulabilidade e, em posição intermediária, a nulidade relativa. Recorremos à Dall’Agnol – flagrantemente influenciado por Galeno Lacerda - para a exposição de um sistema moderno de invalidades processuais.

a) se, da interpretação da norma conclui-se que esta tutela interesse, predominantemente, público, a infringência da mesma configurar-se-á nulidade absoluta, sendo o ato insanável, devendo ser declarada ‘ex officio’, podendo quaisquer das partes a invocar;

b) a contrario sensu, se a norma visar proteger, preferencialmente, interesse da parte, o vício é sanável, ensejando a nulidade relativa ou a anulabilidade:

b.1) no tocante à nulidade relativa, esta será ocasionada pelo desrespeito à norma cogente, logo, ao juiz será facultado proceder de ofício, mandando sanear, repetir ou ratificar o ato ou suprir a omissão;

b.2) por sua vez, a anulabilidade diz com a violação de norma dispositiva, de modo que o ato mantêm-se à disposição da parte, sendo defeso ao juiz qualquer provisão de ofício e privativo da parte a anulação do ato.

Do exposto, infere-se que a ‘nota diferencial’ - a qual se refere Dall’Agnol – reside na natureza da norma jurídica tutelada, assim como na sua impositividade lógica. Quanto à primeira, é precípuo entender que o interesse mencionado não se manifesta, de modo algum, com caráter de exclusividade, trata-se, como intitula Dall’Agnol, de cogência, de tutela sobrepujante – pública ou privada. O professor Paulo Alberto Pasqualini, (19) ao manifestar-se sobre o tema, argumenta que a vida em sociedade enseja vários tipos de coesão social, de modo que, contíguo aos interesses individuais estariam os interesses coletivos. Estes últimos, para o jurista, não seriam decorrentes da soma dos interesses particulares, mas das necessidades da vida em comum. E complementa:

          "Para os primeiros, o indivíduo é colocado no primeiro plano e só indiretamente se o considera como componente de um grupo social; para os segundos a consideração é estabelecida em sentido oposto, sendo, o indivíduo, observado enquanto parte de um todo social" (‘A imunidade tributária do serviço público", in Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre, 1971, n.º 1, p. 152-153)

De outra banda, quanto à imperatividade lógica da norma, tem–se que estas dividem-se em:

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a) normas cogentes – são impositivas, descrevendo a conduta a ser seguida, ou proibitivas. Nelas, é reprimido o auto-regramento da vontade em prol daquele interesse coletivo. Por conseguinte, se infringidas, constituem ato ilícito passível de sanções, tendo em vista a contrariedade ao direito.

b) normas não-cogentes, supletivas ou dispositivas – sua célula-máter é a autonomia da vontade, permitindo que a vontade individual sobreleve a coletiva, autorizando a parte a decidir-se entre seguir o prescrito ou simplesmente acatar norma de conteúdo diverso ou pactuar outra conduta, sem por isso dar azo a sanção.

Citam-se como exemplos presentes no Documento Processual o art. 94 como regra dispositiva e o art. 650 como cogente.


07. Nulidades absoluta, relativa e anulabilidade

1. Nulidade absoluta

Alguns doutrinadores preconizam a inexistência, no direito processual, de nulidades absolutas, ou seja, todas seriam relativas face aos princípios da finalidade e da não-prejudicialidade. A assertiva não é de todo incorreta, na medida em que o próprio legisferante mostra-se profundamente preocupado com a conservação do processo em busca de uma solução à lide, preterindo, muitas vezes, as formalidades processuais. Entretanto, a doutrina majoritária ainda conserva o conceito, atentando-se, sobretudo, para aqueles casos em que se mostra inadmissível sobrelevar a formalidade, como na incompetência absoluta ou no processo fraudulento.

Presente está a nulidade absoluta nos atos cuja "condição jurídica mostra-se gravemente afetada por defeito localizado em seus requisitos essenciais". (20) Ocorre nas hipóteses em que a inobservância de forma ferir lei em que prepondere o interesse público, ceifando-se, então, o ato de eficácia. (21 ) A nulidade absoluta é imprescritível, não sendo passível de preclusão, ou seja, pode ser decretada a qualquer momento, ex officio ou por iniciativa da parte, prescindindo de demonstração de interesse. É vício insanável. (22)

Extraímos da inteligência jurisprudencial:

JÚRI – SALA SECRETA – A CF/88 não aboliu a denominada "sala secreta", havendo mantido a votação no referido recinto, consoante o disposto no art. 5º, XXXVIII. A violação desse preceito constitucional importa nulidade absoluta, devendo, pois, ser anulado o julgamento para que o réu seja submetido a novo Júri, obedecidos aos preceitos dos arts. 476, 480 e 481, todos do CPP. Preliminar do MP acolhida. (TJRJ – Ap. 709/89 – 4ª C. – Rel. Des. Américo Canabarro – J. 14.11.89) (RT 658/321) (RJ 186/149)

E mais:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO – Nulidade absoluta decorrente de demência senil (CC, art. 5º, II e 145, I). Legitimação ativa. "Qualquer interessado", diz a Lei (CC, art. 146, caput), pode pleitear a declaração da nulidade absoluta, aliás decretável de ofício (CC, art. 146, § único), razão por que o filho e a nora do alegado demente são partes ativas legítimas na demanda. (TJRS – AC 593.006.281 – 5ª C. – Rel. Des. Araken de Assis – J. 25.02.93) (RJ 190/98)

2. Nulidade relativa

Está presente "quando o ato, embora viciado em sua formação, mostra-se capaz de produzir seus efeitos processuais, se a parte prejudicada não requerer sua invalidação", pondera Humberto Theodoro Jr. ( ) Infringem norma jurídica cogente, de interesse, predominantemente, das partes, tanto podendo o juiz decretá-la, ex officio, como a parte. De modo que os atos praticados sob esta guarda estão sujeitos à preclusão, ou seja, nos termos do art. 245, caput, do CPC: "A nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão". O interessado, não alegando-a em tempo hábil, enseja a sanação tácita do vício. Ao contrário, se o vício contaminar uma condição ou pressuposto jurisdicional (como nos arts. 267 § 3º, 301 § 4º, 303, II), estando o juiz obrigado a decretar ex officio a nulidade, não ocorre preclusão, na medida em que o silêncio da parte não sana o vício.

É importante frisar, sobretudo, que as nulidades relativas, assim como as anulabilidades, estão flagrantemente informadas pelo princípio da não-prejudicialidade, de modo que, para decretá-las, o juiz terá de examinar a existência de prejuízo causado à parte, pressuposto para a desconstituição do ato e de seus efeitos.

É do entendimento de nossos Tribunais:

NORMAS SOBRE NULIDADE – INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA – PROTEÇÃO DO INCAPAZ – AUSÊNCIA DE PREJUÍZO – NULIDADE AFASTADA – CPC, ART. 249, § 1º – As normas processuais pertinentes a nulidades devem ser interpretadas, em se tratando de ato praticado por incapaz, teleologicamente. A outorga de mandato procuratório por pessoa supostamente incapaz, sendo-lhe favorável o resultado da demanda, afasta o vício na representação. Inteligência do art. 249, § 1º , do Código de Processo Civil. (STJ – REsp 25.496-0 – MG – 6ª T. – Rel. Min. Vicente Leal – DJU 11.03.96)

3. Anulabilidade

Escassas em nosso Documento Processual, as anulabilidades são provenientes da infringência de normas dispositivas, de modo que o interessado pode, por sua inação, saná-lo. Enfim, o principal traço que as distinguem é a vedação ao juiz de decretá-la de ofício, por dizer com tutela de interesse, principalmente, da parte.

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Sobre a autora
Michele Cioccari

advogada, acadêmica de Ciências Contábeis na Universidade Federal de Santa Maria

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIOCCARI, Michele. Dos vícios dos atos processuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/785. Acesso em: 25 abr. 2024.

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