Dentre as inúmeras alterações trazidas pela Lei Federal nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (a qual aperfeiçoa a legislação penal e processual penal brasileira), uma, em particular, repercutirá na atividade operacional das polícias, haja vista envolver ação perpetrada por agente de segurança pública durante eventos de preservação da vida. Trata-se do reconhecimento do instituto por nós chamado de "legítima defesa protetiva", que abrangerá não apenas injusta agressão, mas sim, e também, o risco a ela.
Segundo o atual art. 25. do Código Penal, entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual (acontecendo) ou iminente (prestes a acontecer), a direito seu ou de outrem. Agora, graças ao parágrafo único acrescido ao tipo em questão, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
Essa ação difere da chamada “legítima defesa antecipada ou preventiva”, eis que, nestas, a iminência da agressão, em princípio, está afastada1. Difere, também, da denominada “legítima defesa pré-ordenada”, caracterizada pela ação dos chamados “ofendículos”, isto é, de aparatos usados para a defesa do patrimônio, como cercas elétricas e cacos de vidro. No caso em comento, para fins de reconhecimento da excludente, a lei agora considera que a vítima mantida refém durante a prática de crimes passa a estar em constante perigo, dada a imprevisibilidade temporal de um ataque que poderá ocorrer a qualquer instante. Dito isso, temos, agora, dois cenários:
No primeiro, a vítima mantida refém durante a prática de crimes está sendo agredida. Nesse caso não emergem dúvidas, trata-se de legítima defesa crassa, de terceiro, independente de alteração legal. Cabe ao agente de segurança pública, de ofício, neutralizar o agressor.
No segundo, a vítima mantida refém está agora sob risco de agressão, ou seja, existe a probabilidade (tendência favorável) dela ser agredida. O “risco”, assim, é a probabilidade ou chance patente de lesão ou morte. Já o “perigo” (condição de causar o evento danoso) é o agressor. Dito isso, teríamos, na prática, a seguinte equação:
a) PERIGO: perpetrador armado tomando um refém;
b) RISCO: refém apto a ser agredido ou morto pelo perpetrador;
c) AÇÃO LEGAL: repelir o risco da agressão (rechaçando o perigo, isto é, o perpetrador).
Assim, num cenário real o agente de segurança pública está agora licenciado a repelir não apenas a iminência ou a atualidade da agressão injusta, mas, também, o risco a ela. E para tanto ele deve focar no perigo, que é o causador do risco.
Mas será que esse dispositivo vale apenas para os atiradores estratégicos das polícias, os comumente chamados “snipers”? Cremos que não, pois a lei não excepciona. Dessa forma, qualquer policial brasileiro, civil, militar ou municipal, está legalmente amparado pela nova tendência da excludente, bastando que, diante de si, exista uma vítima feita refém sob risco de agressão.
Nesse particular, é óbvio que a doutrina do gerenciamento de crises continua válida, afinal a preservação de vidas é mote do Estado. Entretanto, em existindo a avaliação fundada de que o “risco” supera as possibilidades de resolução pacífica – que deve sempre ser buscada – a lei agora autoriza a neutralização do perigo, a fim de que risco de agressão a um inocente desapareça.
Será então necessário que a vitima esteja com uma arma de fogo apontada para a cabeça ou sofrendo iminente agressão similar? Não mais. Se os agentes de segurança pública avaliarem que o risco, embora não atual ou iminente, é de fato real, isto é, que o perpetrador, sem prejuízo dos apelos de rendição feitos pelo Estado, representa perigo efetivo (porta explosivos, produtos inflamáveis, encontra-se psiquicamente abalado, enverga armas de maneira agressiva etc), o ataque protetivo deve ser feito, buscando-se a incapacitação imediata do agressor e a preservação da vida inocente. Isso, frise-se, encontra guarida na conjugação “ou” (alternativa ou opcionalidade) usada pela lei, a qual se contenta com a agressão “ou” com o risco de agressão (ações apartadas).
Desse modo, e concluindo, a legítima defesa inserida pela nova Lei Federal nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, deu origem ao que nós, doutrinariamente, convencionamos chamar de “legítima defesa protetiva”, qual seja, aquela que, balizada no uso moderado dos meios necessários, repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes, sejam eles quais forem.
É importante destacarmos que a lei, em si, tem uma “vacatio” de trinta dias, contados da sua publicação.
Nota
1 Caso da pessoa ameaçada de morte por criminoso perigoso que, visando antecipar-se a anunciada ação dele, o embosca e mata.