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Multas para atrasos de vôos:

uma perigosa defesa do consumidor

31/01/2006 às 00:00
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Na qualidade de comandante de linha aérea, investigador de acidentes aeronáuticos e advogado especialista em Direito do Consumidor, não posso deixar de registrar minha preocupação com a notícia da fiscalização efetuada pelo Procon de São Paulo no Aeroporto de Guarulhos, resultando na aplicação de pesadas multas às empresas aéreas em virtude dos atrasos ocorridos em seus vôos.

À primeira vista, tal procedimento parece louvável aos olhos do público usuário, especialmente por dar-lhes a esperança de que assim os atrasos poderão evitados mediante a simples aplicação de penas pecuniárias para vencer a ineficiência operacional das empresas aéreas, imaginando-se que é apenas a ausência de qualquer sanção que permite que se relegue a pontualidade a um segundo plano.

Porém, é absolutamente inviável que as empresas mantenham um avião de reserva em cada aeroporto que operam e, por isso, as malhas de rotas são estruturadas de modo a que uma viagem comece pouco após a chegada da aeronave procedente de um vôo anterior. É exatamente por isso que, tal como pedras de um jogo de dominó enfileiradas, o atraso na chegada de um vôo quase sempre acarreta atraso na saída do seguinte.

Há que se considerar que os atrasos podem ocorrer pelas mais diversas razões, tais como meteorologia desfavorável, congestionamento de tráfego aéreo, deficiências dos equipamentos de auxílio à navegação, demora na liberação de passageiros pelas autoridades aduaneiras e de imigração, insuficiências na infra-estrutura aeroportuária, problemas com e dos passageiros e, também, por necessidades de manutenção das aeronaves.

Com o acirramento da concorrência entre as empresas, mormente após o surgimento das companhias de baixo custo, a rentabilidade dos vôos vem caindo vertiginosamente. Neste contexto, a aplicação de uma multa pode representar a diferença entre o lucro e o prejuízo de uma viagem e, ante a sua magnitude, a pena pecuniária ora instituída pelo Procon vai estar, certamente, dentre as diversas considerações feitas no processo de gerenciamento de um vôo.

Em outras palavras, temo que, entre várias outras situações, a decisão do piloto de seguir para um aeroporto de alternativa, sua necessária tranqüilidade para suportar esperas prolongadas em vôo e no solo, o tempo de duração de sua jornada de trabalho, a precisão nas navegações e aproximações feitas com auxílio de instrumentos e, principalmente, as condições técnicas da aeronave possam ser influenciadas negativamente pela preocupação do empresário com as pesadas perdas decorrentes da aplicação das multas.

Há alguns anos, tive a oportunidade de discutir este mesmo assunto com o Dr. Antônio Herman Benjamim, uma das maiores autoridades em Direito do Consumidor e um dos autores do projeto do nosso Código consumerista. Em um seminário de Direito Aeronáutico, o eminente jurista suscitou a hipótese da aplicação de multas por atrasos nos vôos e, durante um intervalo entre as palestras, acredito que o tenha convencido do perigo que tal atitude representa para o passageiro.

De forma bem sucinta, expus minha opinião de que, entre a remota possibilidade de um acidente e a certeza da aplicação da multa, as empresas possam passar a optar pela primeira hipótese, pois, deixar de trocar um pneu gasto em uma escala na qual o tempo de trânsito foi reduzido por fatores externos, não necessariamente significa que o pneu vai estourar no próximo pouso. Mas, por outro lado, se a troca for feita, haverá a certeza da multa e, assim, o indubitável prejuízo operacional.

Outra situação: Durante um mau tempo, com a aeronave em órbita sobre um fixo de espera, o piloto entra em contato com a companhia para saber qual seria a melhor alternativa para o aeroporto com baixa visibilidade e teto. Sabe-se que o desvio para outra localidade vai acarretar um enorme atraso na saída do próximo vôo e, assim, certamente haverá a aplicação da multa. Quem pode garantir que o comandante não receberá instruções para permanecer em espera até que se atinja o mínimo combustível para alternar, ou pior, que faça uma tentativa de pouso mesmo em condições meteorológicas ruins?

Atualmente, o mercado de trabalho para pilotos está extremamente recessivo. O fechamento da Transbrasil e da Vasp, assim como a crise da Varig, produziram um quadro de excesso de mão-de-obra que o crescimento das demais empresas não foi capaz de absorver, o que deixa o profissional em posição vulnerável para poder resistir às pressões que por ventura venha sofrer. Portanto, contrariar o interesse econômico do patrão pode significar um enorme sacrifício para os pilotos e suas famílias em razão de um prolongado período de desemprego. Entre a certeza do desemprego e o sempre imaginado remoto risco de um acidente, qual será a sua opção?

Por tudo que foi aqui exposto, é de suma importância que se avalie corretamente as razões de um atraso de vôo, julgando-se adequadamente se este ocorreu em virtude de um caso fortuito ou de força maior, por fato exclusivo de terceiros ou se foi, simplesmente, ineficiência da transportadora, pois, o que não é possível é expor o consumidor a graves riscos mesmo que sob o pretexto de defender os seus interesses.

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Exatamente para julgar de modo adequado essas situações, já existe um Poder da República plenamente capacitado: o Judiciário. Havendo atraso injustificado, que cause efetivo prejuízo ao passageiro, o lesado receberá uma justa reparação pelos danos materiais e morais decorrentes do ato ilícito cometido pela empresa aérea. Isto já vem ocorrendo com absoluta tranqüilidade e em respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa em centenas de Juizados Especiais Cíveis espalhados por todo o país.

Por fim, data venia, penso que um órgão administrativo não tem competência para julgar e punir pecuniariamente as empresas aéreas em um tema tão cheio de complexidades como as circunstâncias que acarretam atraso em um vôo. Isto, além de ferir o devido processo legal, causa suspeição pelo fato de ser o próprio Procon o beneficiário do dinheiro arrecadado com as multas aplicadas. Estaremos criando uma nova indústria? Sendo assim, a exemplo dos carros de certa cidade notável por sua vista, em breve as aeronaves estarão portando adesivos com a inscrição "Visite Guarulhos e ganhe uma multa".

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Sobre o autor
Alexandre Pouchain de Moraes

advogado no Rio de Janeiro, especialista em Direito do Consumidor pela PUC/RJ, piloto de linha aérea, investigador de acidentes aeronáuticos formado pelo CENIPA, conselheiro fiscal do Sindicato Nacional dos Aeronautas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Alexandre Pouchain. Multas para atrasos de vôos:: uma perigosa defesa do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 942, 31 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7904. Acesso em: 19 abr. 2024.

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Título original: "Uma perigosa defesa do consumidor".

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