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Direito à procriação: fundamentos e conseqüências

01/02/2006 às 00:00
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A procriação é fato essencial à sobrevivência da espécie humana e merece ser tratada não apenas como um assunto privado, já que os interesses envolvidos são evidentemente mais amplos.

Sumário: 1. Introdução. delimitação e relevância do tema. 2. A noção de procriação, o direito de família e o casamento. ainda uma introdução. 3. Parâmetros legais específicos para o tratamento do tema. 4. Direito à procriação e direito à liberdade positiva e negativa. a fonte das discussões. 4.1. Liberdade de procriação e casamento. 4.2. Liberdade de procriação e planejamento familiar. 4.3. Liberdade de procriação e esterilização. 4.4. Liberdade de procriação e pessoa presa. 4.5. Liberdade de procriação após a concepção. 4.5.1. Interrupção da gravidez. 4.5.2. Reprodução assistida. 5. Algumas conclusões possíveis. Referências.


1. Introdução - delimitação e relevância do tema.

A escolha do tema do presente trabalho – Direito à Procriação: Fundamentos e Conseqüências – se deu, de início, em função de sua íntima relação com o projeto de pesquisa desenvolvido pelo autor no curso de mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá, relativamente à personalidade do nascituro à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Explica-se: tratar do direito à procriação é, em certa medida, buscar enxergar a questão dos direitos do nascituro também sob o ponto de vista dos pais, desde o momento imediatamente anterior à sua concepção e mesmo após o seu nascimento. Cuida-se, como se disse, de refletir sobre os direitos da pessoa humana desde os seus momentos mais remotos e em uma de suas manifestações mais fundamentais (procriação), com vistas à perpetuação da espécie.

Versando sobre os direitos do nascituro ou cuidando do direito à procriação de seus pais – pouco importa –, estar-se-á sempre abordando a questão da situação jurídica da pessoa humana e da sua dignidade, tarefa esta que deve ser o centro das preocupações do Direito Civil, em tempos de "despatrimonialização"1 do fenômeno jurídico e da interpenetração entre o direito privado e o direito público.

Uma vez identificada a origem da proposta a ser esboçada neste trabalho, e já soltando as amarras do eixo da pesquisa principal, cumpre perceber que o tema do direito à procriação tem luz própria e é extremamente fértil para efeito de discussões científicas.

Procriar é gerar filhos, perpetuar a espécie. É fato necessário, corriqueiro e natural (ou pelo menos era natural, porque atualmente também se vislumbra a possibilidade da procriação artificial), que se manifesta no seio familiar, com ou sem casamento, e que gera conseqüências jurídicas desde antes da concepção e até depois do nascimento do filho2.

Mas procriar não se limita a manter relações sexuais ou adotar técnicas de reprodução assistida. Procriar, hoje em dia, dispensa o casamento (apesar de nem sempre ter sido assim do ponto de vista legal e cultural) e em alguns casos até mesmo o relacionamento sexual (procriação assistida). Interessante, pois, que se proceda à análise da interface entre o exercício do direito à procriação e à evolução das formas de configuração da família.

Parece intuitivo, ainda, que o exercício do direito à procriação é manifestação do primordial direito à liberdade pessoal, que tão caro deve ser aos seres humanos. É inevitável, portanto, que a discussão deve partir da premissa do fundamental direito à liberdade e de seus limites em cada situação concreta.

Também se mostra fecundo o debate de idéias em torno do direito à procriação a partir da perspectiva do planejamento familiar, para que se possa compreender o porquê da necessidade da sua realização de forma responsável e com o auxílio do Poder Público, de molde a permitir uma convivência familiar sadia e a proteção ao melhor interesse da criança.

Ainda no âmbito de pesquisa proposto, não se pode ignorar que as técnicas de reprodução assistida também impõem responsabilidades ao Estado, a quem toca regular as premissas e as conseqüências desta atividade, de sorte que não apenas os interesses dos pais sejam satisfeitos, mas também os de seus filhos que ainda estão por nascer e de toda a comunidade3. A grandeza do tema, aliada à insuficiência dos conceitos jurídicos tradicionais, é proporcional à perplexidade que causa.

O certo é que a procriação é fato essencial à sobrevivência da espécie humana e merece ser tratada não apenas como um assunto privado, já que os interesses envolvidos são evidentemente mais amplos.

Estes e outros aspectos atinentes ao direito à procriação é que merecerão desenvolvimento ao longo do trabalho que ora se propõe, por meio de reflexões a serem feitas a partir de dados doutrinários, legais e jurisprudenciais, e para que se possa contribuir com a pesquisa científica referente à situação jurídica da pessoa humana.


2. A noção de procriação, o direito de família e o casamento – ainda uma introdução.

O fato da procriação sempre esteve, do ponto de vista legal e cultural, ligado à idéia de família. É na família que os filhos nascem, e é com o nascimento dos filhos que as famílias se perpetuam. Assim se estabelecem as relações jurídicas mais fundamentais para o ser humano.

Partindo desta premissa, e considerando a histórica relevância do casamento para o direito de família, é evidente que a procriação sempre teve íntima ligação com o fenômeno matrimonial. Assim é que, segundo a redação original do Código Civil de 1916, os filhos eram separados em duas classes, na medida em que proviessem, ou não, do casamento: os legítimos e os ilegítimos4. Veja-se que, apesar de existentes, os filhos de fora do casamento não podiam, na sua constância, ser reconhecidos pelo pai, como se tivessem menor valor5.

Mas, apesar de tudo, os tempos mudaram. Relativizou-se o conceito de família, para admitir a sua existência mesmo sem casamento e também sem a existência de filhos (artigo 226 da CF/88).

Daí, por conseguinte, a dissociação entre o ato de procriar e o laço matrimonial. Tal ruptura de valores tem fundamental importância para o tratamento da questão do direito à procriação, na medida em que desloca o foco da questão dos interesses referentes ao casamento para os interesses titularizados pelas pessoas envolvidas. A união matrimonial passa a ser um mero instrumento para a consecução das finalidades humanas, e não um fim em si mesma6.

Doravante, pois, o direito de família deve repousar as suas atenções nos personagens da família – mãe, pai e filhos, mesmo que ainda não nascidos –, e não no seu mero figurino. Por conseguinte, mesmo caminho deve trilhar o direito à procriação.


3. Parâmetros legais específicos para o tratamento do tema.

Entre os diversos dispositivos legais que podem dizer respeito ao direito à procriação, alguns merecem destaque, em função de sua direta relação com o tema e da inevitabilidade de sua invocação para a compreensão da questão.

Quanto à questão do princípio da dignidade humana, do direito à vida, do direito à liberdade, e da igualdade entre homens e mulheres, a Constituição Federal se pronuncia em seus artigos 1º, inciso III, e 5º, caput e inciso I.

No tocante ao planejamento familiar livre e responsável, ainda merece destaque a Constituição Federal, como se infere de seu artigo 226, §§ 5º e 7º.

De molde a regulamentar o mandamento concernente ao planejamento familiar livre e responsável, inclusive com a previsão das tarefas cabentes ao Poder Público nesta seara, foi editada a Lei 9.263/96.

O Código Civil de 2002, por sua vez, também não descuidou do tema do direito à procriação, eis que em seu artigo art. 1.565, § 2º, reafirma a liberdade de toca aos seus titulares e à necessidade da atuação estatal com vistas ao seu pleno exercício. Finalmente, o Código Civil de 2002 tratou das conseqüências advindas da procriação natural e assistida em matéria de filiação, como se depreende de seu artigo 1.597.


4. Direito à procriação e direito à liberdade positiva e negativa – a fonte das discussões.

Sempre se concebeu que o direito à procriação decorre do direito à liberdade em sentido amplo. Vale dizer: tudo o que não é proibido é permitido em matéria de procriação.

Exercer o direito à liberdade, portanto, no que tange à procriação, permite fazer ou não fazer, agir ou não agir. Daí falar-se em liberdade positiva e em liberdade negativa no que toca ao direito à procriação7.

As conseqüências jurídicas do exercício de tal liberdade são inúmeras, como a seguir exemplificado.

4.1. Liberdade de procriação e casamento.

Há quem vislumbre no exercício do direito à liberdade sexual, de forma mais específica, a verdadeira legitimação para a prática do ato de procriação natural. Aqui vigoraria de forma plena o direito à liberdade, tanto no sentido positivo como no sentido negativo8.

Todavia, também há quem entenda que, no casamento, não existe a liberdade negativa, haja vista que a prática de atos sexuais com vistas à procriação seria um dever matrimonial9. Não é, todavia, este o entendimento que deve prevalecer, sob pena de restar tolhida de forma injustificada a liberdade de autodeterminação do ser humano, já que a procriação, ainda que possa ser uma das finalidades do casamento, não é a única e nem a essencial 10.

Tampouco o fato de o homem não haver consentido com a reprodução pode eximi-lo de suas responsabilidades como pai, dada a voluntariedade e a consciência com que praticado o ato sexual que pode levar à criação de uma nova vida humana 11.

No entanto, em matéria de reprodução assistida, justamente porque o casamento não implica a abstenção do direito à liberdade negativa de procriar, não é razoável que um cônjuge possa pretender impor ao outro a procriação 12.

4.2. Liberdade de procriação e planejamento familiar.

O planejamento familiar, previsto em sede constitucional (artigo 226, § 7º) e no Código Civil (artigo 1.565, § 2º), é outro marco para a afirmação do direito à liberdade de procriar. De qualquer forma, a liberdade de que se cogita deve ser exercida de forma responsável e consciente, cabendo ao Poder Público a adoção de políticas de esclarecimento acerca das responsabilidades decorrentes do ato de reprodução, que também se projetam para o momento posterior ao nascimento do filho 13.

4.3. Liberdade de procriação e esterilização.

Em função da explosão demográfica e em nome da dignidade da pessoa humana, parece tornar-se mais aceita a liberdade negativa; a separação entre sexualidade e procriação permite que a pessoa se realize do ponto de vista afetivo, sem o ônus de um novo nascimento. Daí também a relevância da esterilização, como meio para o exercício da liberdade negativa de procriação, que deve contar com o auxílio – mas jamais com a imposição – do Poder Público, nos termos do artigo 10, I, da Lei 9263/96.

Interessante também, no que tange ao tópico da esterilização, a situação dos incapazes por força de deficiência mental. É que, se o exercício do direito à procriação pressupõe a autodeterminação da pessoa humana, se afigura insuficiente para a sua configuração a mera conduta voluntária destituída de consciência 14. Ainda que não se possa negar aos incapazes de fato a capacidade de direito, parece que neste caso estaria relativizada a plena liberdade positiva à procriação 15.

4.4. Liberdade de procriação e pessoa presa.

O que dizer, ademais, da liberdade de procriar da pessoa humana que está presa? Ainda que destituído momentaneamente do exercício do direito de ir e vir, o ser humano preso não está privado da sua dignidade. Não se pode, portanto, ao mero argumento das peculiaridades da situação prisional, frustrar os detentos de seu direito à procriação 16.

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4.5. Liberdade de procriação após a concepção.

4.5.1. Interrupção da gravidez.

Se, com relação aos seres ainda não concebidos, o exercício do direito à liberdade negativa de procriação não suscita maiores controvérsias, a questão se complica, todavia, no que diz respeito ao exercício da liberdade negativa nas hipóteses em que já houve concepção, porque aí estariam em choque os interesses dos pais e do filho já concebido. Quanto à interrupção da gravidez, chamam a atenção as questões do aborto e da anencefalia fetal 17. Nestes casos, o dimensionamento da liberdade negativa depende do valor a ser atribuído ao ser humano já concebido, a quem o sistema jurídico não nega proteção 18.

4.5.2. Reprodução assistida.

No tema específico da reprodução assistida após a concepção, o exercício da liberdade positiva ou negativa de procriar também gera uma série de conseqüências jurídicas que devem ser levadas em conta para efeito de verificação dos seus limites 19.

Pense-se, por exemplo, a respeito da questão do anonimato do homem doador de sêmen que não faz parte da família 20, ou, como já se mencionou no início, da questão da "barriga de aluguel". Os efeitos jurídicos concernentes à filiação daí advinda, por mais que já estejam previstos, na medida do possível, no artigo 1.597 do Código Civil, não resolvem a discussão ética.


5. Algumas conclusões possíveis.

Cuidar do direito à procriação é discorrer sobre o mecanismo de perpetuação digna da espécie humana e o seu significado jurídico, para encontrar os seus fundamentos na vida em família e no exercício do direito à liberdade 21.

Antes da concepção são plenamente identificáveis os interesses dos pais no que tange ao exercício do direito à procriação, já que são os únicos seres humanos por ora existentes. Aqui parece imperar a autêntica autonomia da vontade privada dos pais.

Depois da concepção, no entanto, identificam-se também os interesses do ser humano já concebido em confronto com os interesses dos pais, de forma que o direito à procriação e as suas conseqüências devem ser compreendidas na medida da complexidade desta relação jurídica. Já neste tópico, a autonomia da vontade dos pais está limitada pela função social que a paternidade responsável deve exercer.

O direito à procriação que toca aos pais funciona, portanto, como premissa do direito à vida digna que se reconhece aos filhos, nascidos ou não.

A riqueza do tema está a revelar, enfim, a importância da releitura da compreensão que se tem acerca da pessoa humana, em função do princípio da sua dignidade.


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Notas

1 Cf. Pietro Perlingieri, in Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 33.

2 Advirta-se, desde logo, que o foco deste trabalho de pesquisa se limitará à análise da situação do direito de procriação com relação ao período que precede à concepção até o momento do nascimento do filho. As questões referentes ao direito à procriação e aos seus efeitos para após o nascimento do filho não serão abordadas neste curto espaço, até mesmo para que não se perca a íntima ligação com o tema dos direitos do nascituro.

3 Imagine-se, por mero exemplo, a situação da chamada "barriga de aluguel" e as suas conseqüências éticas, com projeções também para o momento posterior ao nascimento. Há quem diga que a evolução da biociência causou um "estouro dos limites" éticos, para além da crise do Direito. Vide, neste sentido, José Antonio Peres Gediel, in Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica do corpo humano, Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, Luiz Edson Fachin (org.), Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 79, citando Laymerte Garcia dos Santos (Fronteiras legais e genéticas: o humano ao alcance das mãos). Também não se pode olvidar que a técnica médica já permite que até mesmo pessoas com morte cerebral possam dar a luz a um filho, conforme recente notícia extraída do site Terra e intitulada "Grávida com morte cerebral dá à luz nos Estados Unidos" (in https://www.tv.terra.com/jornaldoterra/interna/o,,OI57149-EI1039,00.html, acesso em 10 de agosto de 2005). Seria, pois, o direito à procriação um direito a ser exercido mesmo por quem já não mais detém personalidade?

4 Cf. artigos 337 e seguintes do Código Civil de 1916.

5 O valor do casamento como única origem legitimadora dos filhos é ainda sentido na sociedade, apesar da evolução dos tempos e das leis. Como é notório, ainda é costumeiro que uma moça solteira, ao descobrir-se grávida, logo trata de se casar com o suposto pai da criança, se não por vontade própria, certamente por influência da família. O direito penal também resistia até há pouco tempo à evolução dos conceitos, na medida em que previa, no artigo 107 do Código Penal, que o casamento do estuprador com a vítima era causa de extinção de punibilidade (tudo indica ter tal causa de extinção da punibilidade sido revogada pela Lei 11.106/2005). Dir-se-ia até mesmo que a possibilidade do aborto sentimental decorrente do estupro prevista no artigo 128 do Código Penal deixaria de existir na hipótese do casamento da vítima com o seu algoz, desde que não houvesse condenação. Era o casamento livrando a criança da pena de morte.

6 Veja-se, neste sentido, o que pondera Gustavo Tepedino, in A Disciplina Civil-constitucional das Relações Familiares, Temas de direito civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 349: "Verifica-se do exame dos arts. 226. e 230 da Constituição Federal, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos".

7 Cf. Maurizio Mori, in Fecundação assistida e liberdade de procriação. Bioética, 2001, vol. 9. – nº 2, p. 57.

8 Neste sentido, é interessante a obra de Rebecca J. Cook, Bernard M. Dickens e Mahmoud F, Fathalla (Saúde reprodutiva e direitos humanos: integrando medicina, ética e direito, com tradução de Andréa Romani, Renata Perrone e equipe. Rio de Janeiro: CEPIA, 2004), toda dedicada à defesa do direito à ampla liberdade reprodutiva das mulheres.

9 Leia-se, a propósito, o que escreveu Carlos Alberto Bittar: "A disposição do corpo é, outrossim, essencial para a consecução dos fins do matrimônio (C. Civil, arts. 229. e 231), definido exatamente como comunhão espiritual e material entre os cônjuges para a realização dos objetivos pessoais de cada um dos filhos e para a perpetuação da espécie. Daí têm os cônjuges direitos e deveres recíprocos quanto aos respectivos corpos." (in Os direitos da personalidade, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 77/78).Em sentido oposto, e já à época da entrada em vigor do Código Civil de 1916, Clovis Bevilaqua, tratando das causas de invalidade do casamento, reconhecia que a satisfação sexual não era da essência do casamento: "Entre os defeitos desse gênero mencionam os autores o sexo dúbio, as deformações genitaes e a impotência. Esta póde ser coeundi, generandi vel concepiendi. Somente a primeira, quando irremediável e antecedente, deve ser considerada como defeito physico annullatorio do matrimnio. A esterelidade, que aliás não realiza a condição de anterioridade exigida pelo Código, não constitue deformidade, que justifique a annullação do casamento. A esterelidade impede a realização de um dos fins do casamento, a procreação: mas nenhum obstáculo offerece á união affectiva dos cônjuges, e nessa é que está a essência do matrimonio." (in Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado, v. II, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1922, p. 87/88).

10 Se para o direito de família dos séculos passados o casamento impunha o dever de manter relações sexuais para a perpetuação da espécie humana, hoje assim já não mais se dá. Antigamente as pessoas não eram filhas dos pais, mas do casamento (tanto que pessoas nascidas fora do casamento eram consideradas como filhos ilegítimos, como já se observou). A liberdade positiva era, assim, consagrada pelo casamento. Refere Maurizio Mori (Fecundação assistida e liberdade de procriação. Bioética, 2001, vol. 9. – nº 2, p. 59) que em 1954, na Inglaterra, condenou-se a vasectomia feita por um homem sem o consentimento da esposa, uma vez que era claramente ofensiva para o interesse público a possibilidade de o homem desfrutar do prazer sexual sem assumir as respectivas responsabilidades.

11 Vide, a este respeito, as considerações de Adriano de Cupis sobre o "patto di non concepimento", em que aborda caso concreto em que se discutiu a responsabilidade do homem que, no momento da relação sexual, se comprometeu a valer-se de métodos contraceptivos, mas não cumpriu tal compromisso, daí resultando gravidez (in I diritti della personalità. 2ª ed. Milano: Giuffrè, 1982, p. 246).

12 Neste sentido, leia-se a lição de Domingos Franciulli Netto, in Das Relações de Parentesco, da Filiação e do Reconhecimento dos Filhos - O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale, Ives Gandra da Silva Martins Filho e outros (org.). São Paulo: LTr, 2003, p. 1.168.

13 Segundo Maria Helena Diniz, o planejamento familiar "não está vinculado à política de controle demográfico, mas à liberdade de decisão de cada casal, que passa a ser responsável pelo número de filhos, assim como por seu desenvolvimento físico e moral, educação, saúde e proteção" (O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 133).

14 Vale citar, no sentido da viabilidade da esterilização compulsória de incapaz por deficiência mental o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no julgamento da apelação cível nº 122.818-8, em 27 de novembro de 2002 (cf. https://www.tj.pr.gov.br, acesso em 20 de setembro de 2005). Em sentido contrário, tem-se o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no julgamento da apelação cível nº 70008448276, em 28 de outubro de 2004 (cf. https://www.rs.gov.br, acesso em 20 de setembro de 2005), que se pautou pela valorização do princípio da dignidade da pessoa humana titularizado pela pessoa incapaz e pela desnecessária onerosidade que a esterilização lhe causaria, à luz de outros métodos contraceptivos.

15 Este seria um interessante caso em que o exercício de um direito por parte de um incapaz não poderia ser levado a efeito por meio de representação.

16 Profunda discussão acerca do direito à intimidade das mulheres presas como fundamento para o exercício do seu inalienável direito à procriação é desenvolvida por Maria Helena Diniz (in O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p.129/130). A discussão não é meramente teórica, como revela notícia publicada pela Agência Estado em 21 de março de 2002, segundo a qual um preso de Phoenix, Arizona, nos Estados Unidos, privado de visitas conjugais, manifestou à Justiça norte-americana a intenção de enviar seu sêmen para engravidar sua esposa fora da cadeia (cf. https://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2002/mar/21/180.htm, acesso em 9 de agosto de 2005).

17 Notória a discussão travada desde meados de 2004 no Supremo Tribunal Federal acerca da viabilidade, ou não, da interrupção das gestações de fetos anencefálicos, na ADPF 54. O mérito da questão ainda não foi apreciado e não mais vigora, atualmente, medida liminar em sentido favorável à possibilidade da interrupção terapêutica de tais gestações (cf. https://www.stf.gov.br, acesso em 22 de setembro de 2005).

18 Maria Helena Diniz se mostra francamente contrária ao exercício da mencionada liberdade negativa em momento posterior à concepção: "Como todo direito impõe obrigações, que constituem seus limites, no exercício dos direitos reprodutivos, os casais e os indivíduos devem considerar as necessidades de seus filhos nascidos e por nascer, bem como seus deveres para com a comunidade. Logo, os direitos reprodutivos não são absolutos, pois os direitos da prole e o bem comum impõem seus limites. Por isso não se pode falar de uma liberdade procriadora exercida de qualquer maneira, mas de uma liberdade responsável. Há liberdade para criar a vida, mas não para destruí-la, harmonizando o direito à vida e o direito à liberdade do casal de planejar a família." (in O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 135/136).

19 Palpitante, neste tópico, a questão dos embriões excedentários, que já tem algum regramento por parte da Lei 11.105/2005, relativamente à utilização das respectivas células-tronco para fins de pesquisa e terapia. De se registrar que o artigo 5º e os parágrafos da referida lei são objeto de ação direta de inconstitucionalidade nº 3.510, ainda sem qualquer decisão, inclusive em caráter liminar (cf. https://www.stf.gov.br, acesso em 22 de setembro de 2005). O Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios tem, na sua estrutura, uma Promotoria de Justiça denominada "Pró-Vida", que trata, entre outras, das questões ligadas à chamada "reprodução medicamente assistida" (manipulação genética humana, redução embrionária e cessão de útero) (cf. Diaulas Costa Ribeiro, in O Ministério Público e o controle externo dos procedimentos de reprodução medicamente assistida, https://www.diaulas.com.br/artigos/o_ministerio_reprod_assist.asp, acesso em 16 de setembro de 2005).

20 Indispensável a leitura dos apontamentos feitos pelo Professor Vicente de Paula Barretto (As relações da bioética com o biodireito. Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 68/72), sobre várias situações concretas envolvendo a reprodução assistida.

21 Já ponderou Maurizio Mori, com razão, que "o desejo de ter um filho não é em nada algo supérfluo e frívolo; pelo contrário, a decisão de fazer nascer um filho é um aspecto importante e crucial para o próprio projeto de vida, pois constitui um compromisso profundo para com a existência. Como foi observado, ‘somente na paternidade e na maternidade a maioria dos humanos atinge as mais altas finalidades inerentes à nossa natureza. Muitos atingiram a plena maturidade da personalidade apenas por meio da paternidade. Este deve, portanto, ser considerada como uma das vias mais importantes para o aperfeiçoamento da personalidade humana’ (Georg JE, Agenesi e fecondità nel matrimonio. Genova: Marietti, 1954, p. 35)" (in Fecundação assistida e liberdade de procriação. Bioética, 2001, vol. 9. – nº 2).

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Sobre o autor
Victor Santos Queiroz

promotor de Justiça no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Victor Santos. Direito à procriação: fundamentos e conseqüências. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 945, 1 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7905. Acesso em: 5 nov. 2024.

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