Nota prévia: Este modesto comentário inspira-se na aula proferida em 22 de janeiro de 2020 pelo renomado professor espanhol Dr. Eugênio Llamas Pombo, no curso de pós-graduação em Direito da Universidade de Salamanca, especialização em Contratos e Danos.
O que há de novo em termos de responsabilidade civil?
Basicamente nada, muito embora a disciplina esteja ainda, como há de ser para sempre, em debate constante, fervilhando de ideias. Algumas universidades importantes do mundo, como as de Salamanca, Bolonha, Perugia, têm fomentado, porém, uma ideia que, não exatamente inédita, ainda guarda ares de polêmica novidade: a responsabilidade sem dano.
Esse pensamento, ainda em estudo, chegou às Américas por meio da Pontifícia Universidade Javeriana, da Colômbia, e possivelmente tarde a chegar, de modo aplicável, aos quatro cantos do mundo.
A novidade, se assim se pode chamá-la, reside na mudança de mentalidade em relação ao eixo fundamental da responsabilidade civil. Antes, e por muito tempo, a culpa; agora, a imputação. E na esteira dessa mudança, outra, tão ou mais importante: o grande protagonista, em vez do danador, passou a ser o danado[1].
A vítima do dano passou a ser o alvo das atenções, situação que conferiu vigor renovado a temas subjacentes da responsabilidade civil, tais como a incidência da teoria objetiva e a quantificação dos danos. Essa mudança liga-se à nova posição dos riscos e danos no mundo atual.
A sociedade contemporânea é, precisamente, esta sociedade de riscos, em que, a qualquer instante, surgem vítimas de danos graves, capazes de se estender no tempo e no espaço, como nos lembram os exemplos do navio Prestige e da usina de Chernobyl. Por isso o Direito, que não poderia deixar de evoluir, veio oferecer respostas mais eficazes à moderna dinâmica de problemas, e daí se chegou, ao fim e ao cabo, à primazia da imputação e da vítima (do danado).
O esquema geral da responsabilidade civil, atualmente, bem mais do que o de antes, contemplou com destaque a justificação do dever de indenização e o elemento de configuração do direito da vítima. A apuração da culpa perdeu fôlego, e com isso a teoria objetiva ganhou poder, mesmo em hipóteses não alcançadas pelos contratos e/ou pelas obrigações de resultado.
Hoje, importa mais saber quem causou o dano e lhe imputar a devida responsabilidade pelos prejuízos derivados do que apurar se sua conduta foi ou não culposa e, sendo, qual o grau de culpa.
Disso não se extrai que a culpa, sua apuração e intensidade, tenha deixado de existir ou, posta de lado, se tenha encolhido em irrelevância. Não. O fato é que, em um volume indesprezível de situações, o dever de reparação (integral) dos prejuízos acaba por se impor com objetividade incontornável.
Responsabilizar alguém sem culpa faz parte da dinâmica do tempo atual, medida valiosa quando calibrada por princípios como os da razoabilidade, proporcionalidade, boa-fé, equidade, entre outros.
Essa mudança de mentalidade se projetou no tempo a partir dos anos 90 do século passado, quando o Direito Civil se foi socializando.
Aqui cabe um parêntese imprescindível: socialização não possui aqui nenhum cunho político-ideológico nem vinculação a socialismos de qualquer tipo. Trata-se, apenas, de algo voltado ao bem comum, ao cenário social. Por exemplo: interessa a todo o tecido social que companhias aéreas não se invistam de cláusulas abusivas.
Então por volta desta época os pilares da responsabilidade civil por culpa, um tanto fatigados, esbaforidos pelo uso milenar, começaram a ruir; e ruindo vêm até os dias atuais.
Vivemos hoje em uma sociedade repleta de atividades potencialmente lesivas. Sendo assim, nada mais natural que o Direito busque abordagens de controle mais arrojadas.
Além disso, sendo o mundo cada vez mais influenciado pela Quarta Revolução Industrial e pela Inteligência Artificial, parece pueril querer dar ares de eternidade aos moldes já enferrujados da responsabilidade civil, com fundamento único ou preponderante na bem idosa visão de culpa. Daí o salto em favor da seguinte ideia: quem causa o dano, arca com o prejuízo, pouco importando a culpa ou a falta dela.
A culpa perde boa parte de espaço para outro elemento de formação da imputação: o risco.
Fischer diz que quem se beneficia diretamente de uma fonte de risco, manuseia algo potencialmente capaz de causar dano, tem de arcar com o ônus decorrente disso. Não é mais condição determinante da imputação a necessidade da ilicitude.
Eis, pois, um novo e poderoso princípio do Direito, o pro damnato.
A leitura das páginas da responsabilidade civil passa a ser feita com as lentes da proteção da vítima. Não se pergunta mais, ou tanto, sobre culpa ou imputação, mas como melhor proteger a vítima. E disso vem o triunfo da responsabilidade objetiva.
Esse contexto todo – sociedade de riscos, Direito de Danos, destaque à imputação e princípio do pro damnato – tem consequências imediatas não só no trato da responsabilidade civil, mas no âmbito social como um todo e, mais particularmente, na Economia e no Direito do Seguro.
Não são poucas as vozes que reclamam seguro obrigatório para diversas atividades empresariais. Esse conjunto de vozes, nada roucas, não deseja maior mitigação do princípio da autonomia da vontade, e sim a presença cada mais frequente do negócio de seguro.
A presença do negócio de seguro auxilia muito na imputação objetiva da responsabilidade civil, reservados e bem defendidos, pois, todos os elementos arquétipos e informadores do próprio negócio, sob pena de sua indevida e violenta socialização, vindo em ofensa manifesta contra o princípio do mutualismo e o colégio dos segurados.
Em verdade, a responsabilidade civil segue a mesma linha, com pequenas alterações apenas no esquema geral. Com efeito, objetivar tanto quanto possível a responsabilidade civil passou a ser a grande busca do Direito contemporâneo, o vital mecanismo de calibragem da sociedade de riscos e danos.
Diante dessa busca, por demais importante é repetir, em destaque, que o danador, o responsável, o lesante, não o é por eventual conduta reprovável, mas por manuseio de fonte de risco.
Não obstante, quase todos os Códigos do mundo ainda se pautam pelo antigo conceito de culpa, ao menos como regra geral. Daí a importância de contínuas mudanças legislativas e jurisprudenciais.
Hoje, um número imenso de litígios de responsabilidade civil se fundam na responsabilidade objetiva. No passado, desde o Digesto, praticamente a única imputação objetiva de responsabilidade existente era a dos proprietários de bens semoventes. Muito tempo depois, no século XIX, veio a responsabilidade dos empregadores por acidentes de trabalho.
A responsabilidade objetiva por acidentes de trabalho, aliás, motivou, na Espanha, o surgimento dos mútuos patronais, isto é, a repartição do problema, observando-se, de forma embrionária, o binômio “responsabilidade objetiva e proteção securitária”. E o que se passou na Espanha também se deu em praticamente todo o mundo ocidental.
A obrigação de transporte, essencialmente de resultado, também se submeteu aos ditames da responsabilidade objetiva no início do século passado, e hoje o que se discute é se, com os avanços tecnológicos que a cada dia mais intervém na atividade, pode a visão das causas excludentes de responsabilidade continuar a mesma de antes. Do ponto de vista prático, uma das maiores evidências dessa mudança vigorosa de mentalidade é o surgimento do princípio da carga dinâmica da prova, a inversão do ônus probatório.
O desafio mais recente não é pensar sobre tais ideias, mas como pensá-las. Por isso a menção anterior aos princípios fundamentais, constitucionais ou não, que não podem deixar de informar a nova leitura da responsabilidade civil e o correto ânimo de sua objetivização.
Isso para não se ter também o reverso da moeda, a imputação desregrada de responsabilidade e as condenações injustas. O bom senso, subjetiva que seja sua medida, há de prevalecer sempre.
Muitos criticam afirmações similares por darem vazão ao ativismo judicial. E os críticos têm alguma razão. Todavia, o receio por efeitos perniciosos não deve inibir ao menos a reflexão e o estudo sério.
Comparações pertinentes e critérios razoáveis se fazem necessários para essa nova visão da culpa. O exagero judicial pode ser uma forma de “objetivar” a responsabilidade civil pela porta dos fundos. É verdade. Mas não é menos verdade que, na equação de erros e acertos, ônus e bônus, os segundos vêm se mostrando mais presentes que os primeiros.
A inversão do ônus da prova é uma medida interessante, a ser usada sempre que necessário, mas sem jamais ignorar para isso os padrões de razoabilidade e proporcionalidade.
Os exageros jurisprudenciais têm causado certa preocupação, e é justo que ela exista. Porém, é ainda mais justo e conforme a moral seguir adiante com a nova mentalidade, abrindo via saudável para o tratamento dos danos neste inegável sistema social de riscos potencializados. Uma culpa redesenhada, modernizada, mas criteriosa, é absolutamente necessária; uma ampliação contínua da teoria objetiva, mais ainda.
Nesse sentido, muito bem fez o legislador Civil brasileiro que, além de disciplinar o dever de reparação civil integral no art. 944 do Código Civil, não se olvidou de prever, para a atividade de risco, o manto da responsabilidade objetiva, conforme o art. 927. Particularmente feliz foi o Código Civil, e bem consentâneo ao pensamento internacional que leva em conta a responsabilidade civil na sociedade de riscos e danos.
A expectativa mais positiva é que, a cada dia, o que a lei já prevê ganhe corpo nos cenários doutrinário e jurisprudencial, especialmente nas relações com outros ramos do Direito, como o dos Transportes, a fim de rever e melhor pensar as cláusulas legais excludentes de responsabilidade, bem como as que ousam oferecer, em ofensa ao plano moral, as limitações indenizatórias.
Nota
[1] Em língua portuguesa, as palavras danador e danado soam estranhas, mas, conceitualmente precisas, por que não as tentar trazer ao vocabulário jurídico brasileiro?