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Unimilitância ou fidelidade societária?

Uma resposta a Wolff

04/02/2006 às 00:00
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I. Apresentação

No final do ano passado, os assinantes e leitores deste espaço receberam um alentado artigo, do professor Cláudio Juvenal Wolff, intitulado "Unimilitância nas ‘Cooperativas’ UNIMED".

O objetivo do presente é refutar todas alegações ali realizadas, por incorretas, tanto no prisma dos fatos, quanto dos valores ali expressos e, principalmente, das considerações jurídicas nele expressas.

Antes disso, para esclarecimento daqueles que, tendo lido o mencionado texto, tiverem paciência de apreciar sua resposta, convém esclarecer quem são e por que escrevem o primeiro e o segundo articulistas.

O professor Cláudio Wolff leciona Direito Comercial na Universidade de Santa Maria e o seu artigo é, na verdade, um parecer solicitado por sócios da cooperativa médica de Santa Maria, que prestavam serviços à empresa que concorria com aquela cooperativa e que, interpelados pela mesma, procuraram respaldar, até hoje sem êxito, na Justiça, sua posição. Além dessa circunstância, ainda é sócio de empresa que, de forma ilícita, valia-se de sócios da cooperativa para com ela concorrer.

Sobre os pareceres, sempre convém referir a reflexão de Piero Calamandrei, um dos maiores juristas do Século XX: "Dir-se-ia que esses senhores nos querem convencer de que nas consultas, pagas a tanto por linha, não fazem olhos de partidários de A ou de B, mas de mestres desinteressados, que não se preocupam com os negócios desse pobre mundo. (...) Não há meio de se chegar a compreender por que bulas é que, nesses pareceres, a Verdade com V grande, coincide sempre com o interesse da parte que os solicitou. Ainda que isto seja uma verdade relativa, o importante é sempre ter em mente, diante de um parecer, que ele está para a Ciência Jurídica como ´´música de programa´´ para a Música Erudita: jamais fere a quem o encomenda".

Este articulista, por sua vez, é advogado, há quase três décadas, de cooperativas médicas, e nesta qualidade as têm defendido, com sucesso, em vários processos como aqueles em que os ofícios de Mestre Wolff também foram solicitados.

Em síntese: aqui ninguém está praticando ciência pura, mas defendendo, de uma forma ou outra, interesses. O que não desqualifica, reitere-se, por si só, os argumentos, que apenas valerão por sua qualidade intrínseca, jamais por uma neutralidade extrínseca que de fato não possuem.


II. Os Motivos de Wolff

Dito isso, passamos à discussão, que é ampla. O ilustre professor utiliza uma técnica argumentativa que se pode qualificar de "metralhadora giratória", desferindo balaços a torto e a direito, contra as cooperativas médicas UNIMED, no intuito de, desqualificando o "inimigo", desqualificar seus argumentos, ainda que os mesmos sejam verdadeiros.

Por isto mesmo, para permitir o cotejo entre suas teses e a resposta a elas, mister se faz abrir um grande espectro de debate, quase como um escudo para defender essas cooperativas que, a julgar pelo artigo, decerto estarão próximas daquelas sociedades que os romanos costumavam chamar de "societas sceleris", não se sabendo porque, há mais de 30 anos, vicejam, do Oiapoque ao Chuí, como a mais bem sucedida experiência de Sistema Cooperativo que o Brasil jamais teve.

Para permitir um cotejo preciso entre argumento e contra-argumento, optamos por resumir as teses do mestre Wolff, tanto em homenagem à compreensão do leitor, quanto em respeito ao articulista que, na lídima expressão da palavra, é para nós um ilustre desconhecido.


III. As Teses de Wolff

Principia o articulista com uma reflexão sobre a diferença entre aparência e a realidade. A exemplificação de "tese" é dada com as cooperativas médicas UNIMED, em razão do que, no jargão interno das cooperativas é chamado de "unimilitância" ("prestação de serviços exclusivos à Cooperativa", conforme diz).

"Explica" o parecerista que a "unimilitância" enfrenta a contrariedade do Conselho Administrativo de Defesa Econômica; do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Volta, logo depois, ao mote "aparência-realidade" para dizer que nas cooperativas profissionais o ato cooperativo deve beneficiar o trabalho profissional dos sócios, sendo esta única atividade que pode ser desenvolvida por tais entidades.

Em contrapartida, explicita, as UNIMEDs agem no mercado, oferecem planos de saúde, atividade que só minoritariamente convoca o trabalho médico e que, portanto não são atos cooperativos, razão pela qual as UNIMEDs não são cooperativas, mas empresas, iguais a demais, portanto cooperativas apenas na aparência.

Por outro lado, sempre seguindo o parecerista, as UNIMEDs confundem sua atividade com a dos médicos seus sócios, "eliminando" com isto a autonomia deste, o que legalmente seria insustentável. Curiosamente, cita o eminente comercialista Carvalho Santos, em trecho que será analisado logo a seguir.

A análise jurídica do parecerista resvala para a Deontologia, ao dizer que as cooperativas médicas infringem os arts. 9º e 12 do Código de Ética.

A catilinária segue pela afirmativa de que essas cooperativas deturpam sua finalidade que, nos próprios termos do autor, "seria a contribuição com bens ou serviços no interesse comum dos comparsas".

Saltam, logo a seguir, as reflexões, para a filosófica consideração de que os cooperativados, quando desrespeitam a unimilitância, fazem isto para sobreviver, pois as UNIMEDs não ofertam remuneração satisfatória.

Passa, depois, o (des)articulado a concluir que a prática das cooperativas médicas afronta à liberdade econômica de mercado, que "é a forma de defesa contra o mau uso da liberdade individual".

Conclui também que nessas cooperativas não há prestação da cooperativa aos cooperativados, como é o normal, mas o inverso, o que é aberrante, pois implica na existência de um trabalho subordinado do cooperativado junto à cooperativa.

Afirma, na seqüência, que a Lei nº 9.656/98, a lei dos planos de saúde proíbe a prática combatida e que os médicos sócios da cooperativa são por ela credenciados, sendo que o credenciamento é universal.

Arremata que nas UNIMEDs nada é cooperativa, tudo é empresa e empresa que frauda a livre concorrência.


IV.Síntese da Resposta

Dizia o Padre Vieira que os discursos enganosos costumavam unir meias-verdades, para efeitos de com elas gerar completas mentiras. O "parecer-artigo" de Mestre Wolff não corre esse risco. Em todas suas partes, numa seqüência deveras impressionante, não comete meias-verdades. Perpetra, ao longo de todas suas afirmativas, sejam fáticas, jurídicas ou valorativas, absolutas falsidades. Como facilmente se pode demonstrar.


V.Exclusividade Inexistente

As cooperativas médicas constituem universo de quase 300 entidades, espalhadas em todo o País, na mais impressionante rede cooperativista jamais criada no Brasil. Em todas elas, não se tem notícia de que haja, nos três décadas de sua existência, qualquer na qual exista regra interna impondo aos seus sócios uma prestação de serviços médicos exclusiva para os beneficiários de planos de saúde contratados com as mesmas cooperativas.

Nossa assertiva é de fácil comprovação. Qualquer leitor destas tem ou conhece médicos e a maioria deles é sócio de uma cooperativa médica. Pois é simples: basta perguntar a eles se são proibidos de atender pacientes que não sejam conveniados de cooperativas médicas. Seguramente, a resposta será negativa.

O que no jargão interno de uma cooperativa médica é chamado de unimilitância é, na verdade, uma expressão daquilo que é elementar em qualquer tipo de sociedade privada: seus sócios não podem concorrer com a própria entidade que constituíram, ou da qual participam.

Repita-se por relevante: ninguém une esforços com terceiros, constituindo uma sociedade e, ao mesmo tempo, permite que seus consócios possam minar este esforço comum, simultaneamente concorrendo com a entidade que criam e mantêm.

No caso das cooperativas médicas, a aplicação prática desta regra (que incide em todos as sociedades nas quais seja convocada uma participação pessoal dos sócios no desenvolvimento das atividades societárias) tem um significado específico.

O médico, na condição de sócio, pode prestar serviços a qualquer paciente, mas não pode relacionar-se, como prestador de serviço (credenciado), com qualquer entidade que explore economicamente, ou seja, que tenha por objeto a revenda de serviços médicos.

Existe uma diferença, que não é sutil, entre atender diretamente um paciente, sem intermediação, com ele livremente convencionando a contraprestação econômica, e atendê-lo pela intermediação de uma interposta pessoa que compra esses serviços por "X" e os revende por "X + "Y". A primeira hipótese não tem, que se saiba, qualquer proibição, em qualquer cooperativa. A segunda é normalmente vedada nos estatutos sociais das cooperativas. Este segundo caso, cujos motivos adiante explicitaremos, chama-se unimilitância.

Fica manifesta, por hora, a inexistência de qualquer exclusividade. Os sócios das cooperativas médicas atendem quem demande seus serviços. Credenciam-se, livremente, em qualquer entidade que não viva da compra e revenda dos serviços médicos. Em relação aos conveniados dessas entidades, nada impede que sejam atendidos e peçam o ressarcimento dos honorários que paguem aos facultativos (se o convênio ou as circunstâncias possibilitarem essa conduta). O que não podem, tão somente, é manter relação de prestação de serviços direta com quem concorre com as cooperativas às quais pertencem.

Somente uma concepção mal informada, ou, o que é pior, mal informadora, pode entender isto como exclusividade.


VI. Judiciário Respalda tal Conduta

Tal conduta, em si, jamais mereceu censura do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. As decisões desta autarquia sobre tal matéria atêm-se ao fato de poder existir em alguns locais, quantitativamente, um cartel com impossibilidade de estabelecimento de concorrência, o que é substancialmente distinto de uma genérica proibição de que a cooperativa não possa exigir, dos sócios, uma fidelidade à própria sociedade. Ainda assim, todas essas decisões são hoje contestadas junto ao Poder Judiciário.

A unimilitância, por outro lado, embora vista, em algumas autuações, como sendo contrato de exclusividade, por outra autarquia administrativa, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, até hoje não conta com qualquer decisão definitiva dos seus órgãos colegiados, em face da contestação que as cooperativas médicas fazem a esse entendimento, donde não se pode concluir que haja posição sacramentada da ANS sobre a matéria.

Ao contrário e exatamente ao contrário do que foi afirmado, vários Conselhos Regionais e o próprio Conselho Federal de Medicina têm decidido, em mais de uma oportunidade, pela voz das mais eminentes autoridades de Ética Médica do País (como é o caso de Genival Veloso França), que a "unimilitância" é absolutamente conforme aos preceitos éticos, como adiante será abordado.

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Se ainda não fosse tudo isto, o parecerista que se demonstra tão profundo conhecedor das cooperativas médicas, esquece-se de dizer que a mais alta Corte Judiciária Legal do País, o Superior Tribunal de Justiça, em distintas oportunidades, tem confirmado que as regras estatutárias combatidas pelo Sr. Wolff são absolutamente legítimas e legais.


VII.O que Fazem as Cooperativas

A infidelidade do parecerista quanto à realidade, nas considerações sobre o Conselho de Defesa, a Agência Nacional de Saúde e o Conselho de Medicina, é acrescida na sua visão do que fazem as cooperativas.

Todos as cooperativas são, sem dúvida, constituídos para uma única finalidade: prestar serviços aos seus sócios, sem que esta prestação tenha natureza lucrativa na relação estabelecida entre ela, cooperativa, e eles, seus sócios. Desta afirmativa, que é verdadeira, partir-se para a outra, que esta é a única atividade legalmente permitida a tal tipo societário, vai um equívoco igual a distância que existe entre a verdade e a mentira.

Uma cooperativa, para que possa prestar serviços aos seus sócios, necessariamente precisa realizar operações de mercado, tecnicamente chamadas operações de contrapartida, no intuito de viabilizar a prestação que constitui a razão de ser de sua existência.

Uma cooperativa de produção agrícola negocia a produção dos seus sócios com os interessados em adquiri-la. Uma cooperativa de consumo compra os produtos de terceiros, para fornecê-los aos seus cooperativados. Uma cooperativa de trabalho organiza o trabalho coletivo de seus sócios, seja ele material (produto) ou imaterial (serviço) e o coloca ao dispor do mercado consumidor e uma cooperativa de crédito aplica a economia dos integrantes da sociedade, junto a outras instituições financeiras, para obter recursos que permitem emprestar àqueles, pelo menor custo.

Este bê-á-bá de qualquer cooperativa não tem solução de continuidade nas cooperativas médicas. Criadas para ampliar a clientela dos seus sócios, que são os médicos cooperativados, o meio que o mercado, ao longo do tempo, julgou valioso, para viabilizar essa finalidade, foi o convênio médico, notadamente na sua espécie, que é o plano de saúde. Não aí nenhuma novidade, em relação a qualquer operação de contrapartida, de todo e qualquer outro tipo cooperativo.

O pensamento em sentido contrário, por Wolff defendido, em última análise significa que cooperativas de agricultores somente comercializariam a produção dos próprios agricultores; cooperativas de consumo exclusivamente forneceriam gêneros produzidos por seus próprios sócios; cooperativas de crédito aplicariam o dinheiro dos cooperativados emprestando apenas aos mesmos; cooperativas de taxistas unicamente poderiam fornecer serviços de táxi aos próprios motoristas de carros de praça e, por decorrência, cooperativas médicos teriam convênios restritos aos médicos para que atendessem a outros médicos cooperativados. Em suma, pouca ou nenhuma utilidade tal sociedade teria, que é o que, em última análise, pretende o interessado parecerista.

A referida tese tem o conteúdo de verdade equivalente ao que se expressa na afirmativa, subseqüente, cometida pelo articulista, quando imperturbavelmente afirma que em um plano de saúde a atividade médica é minoritária.

Salvo as exóticas ofertas de planos de saúde acoplados à venda antecipada de ataúdes e jazigos, quem adquire um plano de saúde pensa contar, acima de tudo, com o mais qualificado agente humano promotor de saúde que é o médico, naturalmente cercado de todos os meios que facilitem o diagnóstico e a prevenção ou recuperação da saúde do paciente. Dizer isto é tão óbvio que chega a ser constrangedor escrevê-lo, o que se faz para chamar a atenção do absurdo do argumento em sentido contrário.


VIII A Autonomia Preservada

O desfilar solene de incongruências segue pela afirmativa de que a cooperativa médica, ao cobrar que seus sócios não concorram, ou auxiliem, quem com ela concorra, estaria eliminado a autonomia dos seus cooperativados.

Peca, neste passo, o parecerista, contra a realidade e contra o conceito do que seja autonomia. A ofensa à realidade reside no fato de que precisamente por sentirem, os médicos, que sua autonomia escapava, através da exploração de seu grandioso trabalho por agentes econômicos, é que criaram as cooperativas, visando alcançar níveis de clientela que lhes seriam impossíveis de acessar, não fosse a organização em escala que essa sociedade oferece aos seus esforços.

O que essas cooperativas fizeram, nas três décadas de sua existência, nada mais foi que precisamente cumprir, de forma fiel, o mandato que vêm continuamente recebendo de seus sócios, permitindo a muitos, no mínimo, manter seus consultórios particulares e, a outros tantos, sobreviver amparados na clientela que da Cooperativa advém.

Naturalmente, o cumprimento deste desiderato pressupõe a colaboração coletiva, cujo dever elementar reside em não concorrer com a sociedade com a qual devem cooperar. A limitação, neste sentido, nada tem a ver com perda da autonomia.

A autonomia, por uma razão lógica, tanto implica o poder que cada um tem de fazer o que não for legalmente proibido, como a faculdade de não fazer, ou seja autolimitar aquilo que poderia ser individualmente realizado. No caso de trabalhadores, e os médicos não estão fora desse "status", tais autolimitações, é a História quem ensina, somente são eficazes se coletivamente decididas, como fazem os médicos quando aprovam os estatutos de suas cooperativas.

Pensar o contrário significaria dizer que um advogado pudesse atender, simultaneamente, autor e réu de uma ação ou que um jogador de futebol, concomitantemente, estivesse inscrito em duas equipes rivais.

Tudo isto, ainda por cima, numa sociedade cooperativa na qual, como diz o mestre literalmente citado (e muito mal compreendido) por Wolff, "os sócios não se limitam a entrar com a quota para a formação do capital, nos são, ao mesmo tempo, elementar, auxiliares da ação e do exercício social, cooperadores, operários, consumidores e compradores".


IX. A Ética de Wolff

Singular sem dúvida a interpretação que o parecerista faz do Código de Ética Médica, a ponto de dizer que a ação das cooperativas, quando seus sócios não permitem que um deles desrespeite compromissos sociais, ofende aos art. 9º e 92 do Código de Ética Médica.

Melhor que ninguém pode julgar o leitor, se for feito aqui o que o des(interessado) parecerista não fez lá; reproduzir os dispositivos ditos "desrespeitados". São eles:

"Art. 9º - A Medicina não pode, em qualquer circunstância, de qualquer forma, ser exercida como comércio."

"Art. 92 – (É vedado) – Explorar o trabalho médico como proprietário, sócio ou dirigente de empresas ou instituições prestadoras de serviços médicos, bem como auferir lucro sobre trabalho de outro médico, isoladamente ou em equipe."

A descrição dos dispositivos do Código de Hipócrates, sintomaticamente omitida no parecer, põe a descoberto a fraude argumentativa.

Se a Medicina não pode ser comercializável, se é vedado explorar economicamente o trabalho médico, como é possível considerar ético aquele que explora e comercializa a atividade médica e antiéticos os profissionais médicos quando, constituídos em cooperativa, autolimitam sua possibilidade de serem explorados e revendidos?

Somente "esquecendo" de expressar os artigos que cita e ainda omitindo na própria citação o princípio maior que rege a matéria no Código de Ética Médica, constante no art. 10 do mesmo texto ("o trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa") é que é possível cometer a imensa falácia de converter a empresa exploradora em vítima e a organização coletiva criada para impedir esta exploração em criminosa.

A fuga da realidade, material e intelectual, ainda não termina aí. Segue célere aos confins do universo da irracionalidade.


X. As Contradições de Wolff

Reconhece Wolff que as "cooperativas são criadas para que haja contribuição com bens ou serviços no interesse comum dos comparsas", o que está absolutamente correto, se dermos ao parecerista, que tanto se engana nos conceitos, o benefício da dúvida de não chamar os sócios de uma cooperativa de cúmplices, uma das acepções vernaculares da palavra "comparsa". Abstraída a reveladora indelicadeza ou ato falho, tem toda a razão neste ponto, sendo precisamente por isto que não é possível, em qualquer cooperativa, a qualquer deles, socializar prejuízos comuns e privatizar lucros pessoais, Em qualquer cooperativa e em qualquer sociedade.

Após demonstrar desconhecer o Direito e tropeçar no vernáculo, o articulista demonstra o mais profundo desconhecimento com a História Econômica, quando afirma, imperturbável, que "a liberdade de mercado é a forma de defesa contra o mau uso da liberdade individual".

Os estudantes que conhecem perfunctoriamente o desenvolvimento econômico dos tempos posteriores à Revolução Industrial sabem bem que a liberdade absoluta de mercado sempre foi o meio encontrado para aniquilar os que vivem do trabalho e que os trabalhadores somente alcançaram repartir alguns frutos da riqueza comum no momento em que se agruparam em cooperativas e sindicatos para defender, em comum, seus interesses. Neste sentido, dizer que a liberdade de mercado é o contraveneno para o abuso da liberdade individual é o equivalente a afirmar que a Santa Inquisição é o remédio para manter a crença dos homens em Deus.

Na seqüência de sua mal concatenada catilinária contra as cooperativas médicas, o articulista chega ao delírio de afirmar que nessa entidade, ao contrário dos demais cooperativas, o que existe é trabalho subordinado e que os sócios, na verdade, prestam serviços à entidade, não o contrário, como deveria ser.

Muito mais que o inverídico do afirmado, cabe salientar sua evidente contradição. A ser verdade o que afirma, então deixaria de haver qualquer razão de espanto na exigência da fidelidade, pois é ínsito da legislação trabalhista não permitir, o empregador, que o empregado ofereça seus esforços para outro empregador, a não ser que haja anuência prévia e compatibilidade horária.

No entanto, o fato asseverado, como de costume, é falso. Conceda- -se que aqueles que, com o concurso de empresários-pareceristas, ávidos de explorar o mercado da saúde, descumprem as regras estatutárias que votaram e prometeram defender, em algumas oportunidades, ajam por necessidade. Todavia, tal fato não torna a sua ação legítima, nem legal, tanto quanto a marginalidade social não justifica o banditismo e o crime, quando muito servindo, para explicar, às vezes, sua origem.

De toda e qualquer sorte, mais que a interessadíssima lição dos que pretendem lucrar com a pretensa necessidade, mais fácil é deixar que esses próprios cooperativados decidam, na sua sociedade, coletivamente, com toda a liberdade como, quando e onde flexibilizar as regras de fidelidade societária, prerrogativa que todos gozam e que o parecerista, seguramente por intenção, não por ignorância, esquece-se de explicitar.


XI. Wolff ou o STJ(O Absurdo ou a Lei)

Ao final, desfecha Wolff seu ataque decisivo, a plenos pulmões, contra as cooperativas médicas: ofenderiam elas a Lei de Planos de Saúde. No entanto, como na história infantil, o lobo soprou paredes de concreto. Contra a exegese apressada e de encomenda, a recente palavra do mais balizado intérprete da legislação comum do País, que é o Superior Tribunal de Justiça, reiterando, em uma de suas maiores instâncias decisórias, o que já tantas vezes dissera: uma sociedade, cooperativa médica, ao exigir que seus sócios cumpram o Estatuto Social, não ofende lei alguma.

Ofensa a uma lei maior, na verdade, existe, é na afirmativa inversa, que concebe um estranho tipo de sociedade, na qual seus membros esforçam-se para manter o empreendimento comum, ao mesmo tempo em que, com beatífica mansuetude, permitem que alguns deles, impunemente, solapem o interesse comum, vendendo, em privado, conhecimento, clientela e esforços que foram o fruto do acervo comum do empreendimento.

Tal sociedade somente pode existir na imaginação dos ingênuos, ou ser preconizada por aqueles que desejam, em causa própria, difundir a ingenuidade.. .


XII. Conclusão

Há mais de 30 anos nasceram as cooperativas médicas e se transformaram no maior sistema nacional de cooperativas, sendo exemplo para paises da América Latina, Estados Unidos e Japão.

Seu surgimento deveu-se à necessidade de encontrar um meio que permitisse cumprir à milenar regra do Código de Hipócrates que condena a exploração do trabalho médico para fins econômicos ou políticos.

Trinta anos depois vêm as cooperativas médicas desenvolvendo, com sucesso e em escala nacional, o meio que encontraram para cumprir esse objetivo, que é, principalmente, a oferta de planos de saúde.

O correto desempenho de tal tarefa exemplifica a lídima tarefa do Cooperativismo, no mundo inteiro, de suprimir intermediações especulativas de consumo, no crédito, na produção e nos serviços.

Nessas cooperativas, enquanto forma de obedecer a universal e milenar regra societária que não aceita que um sócio concorra ou ajude a concorrer com a sociedade da qual não faz parte, seus Estatutos Sociais, normalmente, proíbem que um sócio venda seu trabalho autônomo para empresa que atue no mesmo ramo que a Cooperativa.

Tal decisão consubstancia-se em regra livremente decidida, de forma absolutamente igual (um homem e um voto), por todos os cooperativados, que, num processo democrático, julgam as infrações a tal dispositivo.

A referida norma não proíbe atendimentos médicos de qualquer tipo, o que seria ilegal, a quem quer que seja. Veda o relacionamento econômico entre um cooperativado e um intermediário comercial do trabalho médico.

As normas desta natureza têm merecido o sufrágio dos Tribunais de Ética Médica do País e, corretamente aplicadas, o beneplácito dos Tribunais judiciários, como exemplifica copiosa jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça.

Os detratores de tal regra, até hoje, não conseguiram sensibilizar quem imparcialmente reflita sobre a questão, como se espera aqui ter esclarecido, desfazendo as "razões de lobo" no mesmo espaço expostas.

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Sobre o autor
Marco Túlio de Rose

advogado em Porto Alegre (RS), mestre em Direito, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSE, Marco Túlio. Unimilitância ou fidelidade societária?: Uma resposta a Wolff. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 946, 4 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7925. Acesso em: 24 nov. 2024.

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