2 O que se entende por excludente de ilicitude e legitima defesa
Para melhor compreensão e análise do tema, deve-se esclarecer que o Código Penal Brasileiro, em seu Título II, em especial no artigo 23 do Código Penal Brasileiro, estabelece que “não há crime se o agente pratica o fato: I – Em estado de necessidade, II – em legitima defesa e III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. (BRASIL, 1940). Ou seja, diante dessas circunstâncias, o agente não tem sua conduta eivada na sua juridicidade, o que é o mesmo que dizer que sua atuação, ainda que se amolde ao tipo penal, está sob o amparo do ordenamento jurídico.
A ideia de antijuridicidade[9] pode ser interpretada tanto no aspecto formal como material, sendo que o primeiro é a oposição contrária a uma norma legal estabelecida, enquanto que no aspecto material mostra-se uma situação que se projeta fora do ordenamento jurídico como, por exemplo, intervenção cirúrgica praticada por um médico. No conceito analítico de crime, isto é, dentro de uma visão tripartida, para ser considerado crime o fato deverá ser típico, ilícito e culpável. Contudo, não cabe, no caso em tela, adentrar ao mérito da questão, haja vista a brevidade desse artigo.
Para Greco (2017, p.142) exclusão de ilicitude “É a relação de antagonismo, de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico (ilicitude formal) que cause lesão, ou exponha a perigo de lesão, um bem juridicamente protegido (ilicitude material)”. É nesse sentido que aparece a ideia de exclusão de antijuridicidade, o que tornaria a conduta típica justificada.
Tendo em vista as declarações do então governador eleito do Rio de Janeiro, atem-se, no presente estudo, somente à análise ao artigo 25 do Código Penal, o qual define como legítima defesa a circunstância em que o agente, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. (BRASIL, 1940).
Na visão do governador Witzel, o policial militar que atirar para “abater” criminosos armados de fuzil estaria acobertado pela legítima defesa, instituto estabelecido no artigo 25 do Código Penal Brasileiro. Zaffaroni e Pierangeli, dissertando sobre o tema, prelecionam que: “A defesa a direito seu ou de outrem, abarca a possibilidade de defender legitimamente qualquer bem jurídico”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2015, p. 582).
Pois bem, em análise ao já citado artigo 25 do Código Penal Brasileiro, o instituto da legítima defesa abarca as seguintes observações quanto aos seus elementos, isto é, quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (grifou-se).
A partir da interpretação literal do artigo da lei, é possível esclarecer que a legítima defesa é a segunda causa de exclusão de ilicitude, tipificada no artigo 23 do Código Penal Brasileiro, melhor explicada no artigo 25 do mesmo diploma penal. Segundo Nucci, (2005, p. 222) “é a defesa necessária empreendida contra agressão injusta, atual ou iminente, contra direito próprio ou de terceiro, usando, para tanto, moderadamente, os meios necessários.”
Dissertando melhor sobre o tema, Nucci (2005, p. 222) explica que: “Valendo-se da legítima defesa, o indivíduo consegue repelir as agressões a direito seu ou de outrem, substituindo a atuação da sociedade ou do Estado, que não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, através dos seus agentes. A ordem jurídica precisa ser mantida, cabendo ao particular assegurá-la de modo eficiente e dinâmico”.
Feitas tais considerações, mister destacar que os requisitos da legítima defesa, no que diz respeito aos seus elementos objetivos, são: a) a reação a uma agressão atual ou iminente e injusta; b) a defesa de um direito próprio ou alheio; c) a moderação no emprego dos meios necessários à repulsa; e por ultimo o elemento subjetivo.
Quando se fala em agressão injusta, trata-se, na verdade, de uma investida a qual não se deu causa; ou seja, tal agressão não tem motivo justificante por aquele que agride a outrem. Segundo Nucci (2016, p. 247), “A agressão não precisa ser considerada antijurídica, bastando que seja injusta sob o prisma do agredido, e não do agressor”. Entende-se por agressão “a conduta (ação ou omissão) humana que ataca ou coloca perigo bens jurídicos de alguém.” (CUNHA, 2016, p. 265).
Quanto ao primeiro elemento, atualidade ou eminência, trata-se do ato que está por acontecer, isto é, em andamento. Destaca-se uma importante observação feita pelo doutrinador Rogério Sanches Cunha ( 2016.p. 266), onde ele chama a atenção de que: “Não se admite legítima defesa contra agressão passada (vingança) ou futura[10] (mera suposição)”.
Nesse sentido, disserta Silva e Bernado (2018), esclarecendo que: “Em suma, o perigo de lesão a direito próprio ou de outrem deve ser naquele momento exato onde se está sofrendo ato lesivo a bem jurídico, ou que esteja a ponto de acontecer, em futuro imediato, onde é previsível e certa a ameaça e iminentemente o ataque de bem jurídico, necessitando então de uma contrapartida imediata. Relembrando que esta resposta imediata é em síntese para afastar também o perigo iminente, e não dar cabo da vida do agressor, algo bem comum de se entender como legítima defesa, a ideia da excludente é afastar, impedir, não deixar progredir a violência propagada, neste aspecto, e somente neste, é que se encaixa o instituto. Assim, pode-se afirmar que não é aceitável uma repulsa a agressão passada, pois estaria caracterizando vingança, nem mesmo em caso de uma agressão futura, no qual há tempo suficiente para buscar auxilio em favor de proteger o direito que poderá posteriormente ser ameaçado”.
Quanto ao segundo elemento, a defesa de um direito próprio ou alheio, é ver que pode ser admitida no exercício de qualquer direito como, como por exemplo, vida, integridade física. Vale lembrar que a legitima defesa de terceiros não depende de seu consentimento tácito, “desde que evidentemente, o bem jurídico que se pretende defender seja indisponível.” (CUNHA, 2016, p. 268).
Quanto ao terceiro elemento (uso moderado dos meios necessários), o legislador pontuou, no art. 25 do Código Penal, que para repelir a injusta agressão deve a pessoa agredida usar dos meios moderados e necessários.
Diante de todas essas considerações é de se destacar que o policial militar (sniper) deverá observar os meios necessários para que sua conduta não venha a se configurar crime de homicídio, sob pena de responder judicialmente pelo delito penal.
Entende-se que um delinquente armado com um fuzil não está, necessariamente, na eminência de agir ou ferir alguém se este não estiver apontado ou em pronto emprego, onde no caso das favelas cariocas observa-se a movimentação de criminosos em motocicletas desfilando com armas de grosso calibre na mão, que não necessariamente estão em confronto ou pondo em risco a integridade física de policiais militares. Exemplo de tais situações são as festas de baile funk.
A ideia de confrontos, no histórico cenário de conflitos policiais no Estado do Rio de Janeiro, nunca resolveu o problema, no que diz respeito a índices de controle da violência. Alias agravam mais ainda o índice de feridos e mortos por balas perdidas doravante de confronto entre policiais militares e traficantes.
Durante sua campanha, uma frase polêmica dita pelo governador chamou a atenção, ao declarar a diversos sites e meios de comunicação que: “A polícia vai fazer o correto, mirar na cabecinha e fogo... Para não ter erro.”[11] (WITZEL, 2018, grifo nosso).
Desta forma, o risco iminente ou atual, próprio ou de outrem, deve ser interpretado com cautela, para não haver homicídios de inocentes ou pessoas que possam ser confundidas com criminosos, como já aconteceu no Estado do Rio de Janeiro, onde um morador com uma furadeira na mão e outro portando um guarda chuvas foram confundidos com bandidos armados, e acabaram vindo a óbito em razão da intervenção policial. (MEROLA, 2010).
Rogério Greco (2017, p. 455) esclarece que: “para que possa ser considerada iminente a agressão, deve haver uma relação de proximidade. Se a agressão é remota, futura, não se pode falar em legitima defesa”.
Cabe esclarecer que o emprego de arma de fogo nesse tipo de confronto deve ser a última medida a ser tomada, uma vez que se trata de situação extrema, conforme Caderno Doutrinário da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), que aborda a intervenção policial, uso da força e verbalização, no que diz respeito ao emprego de arma de fogo, que assim dispõe: “o disparo da arma por policiais contra uma pessoa constitui a expressão máxima de uso de força devido ao efeito potencialmente letal que representa, devendo ser considerada uma medida extrema.” (MINAS GERAIS, 2010, p. 67, grifos no original.). Tal medida leva em consideração os Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (PBUFAF), adotados no “Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos infratores”, realizados em Havana, Cuba no período de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990.
Logo, diante do caso em tela, a proposta do governador nada mais é do que uma espécie de “emergência penal e combate ao inimigo”, por se tentar defender uma legislação penal excepcional. A presunção jurídica de legítima defesa de terceiros, na visão do Projeto de Lei nº 352/2017, baseia-se nas ideias das escolas alemãs, em especial nos estudos do jusfilósofo Gunter Jakobs[12] e sua teoria do Direito Penal do Inimigo, o que viola o sistema de garantias constitucionais estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
Alexandre Rocha Almeida de Moraes, citado por Isaac de Luna Ribeiro, chama a atenção de que: “o direito penal do inimigo é fruto de uma crise paradigmática pela qual passa o Direito e a sociedade”. Neste sentido, o autor aponta pontos observáveis dessa crise paradigmática, como se vê: “[...] 1. O aguçamento da complexidade social; 2. A incerteza quanto aos riscos; 3. A imprevisibilidade dos acontecimentos; 4. A desconfiança em relação ao Estado; 5. A sensação de insegurança; 6. A instrumentalização do Direito Penal.” (MORAES apud RIBEIRO, 2018).
Conforme aponta Isaac de Luna Ribeiro (2018) “É muito difícil acreditar que a diminuição de direitos e garantias do indivíduo e aumento do poder punitivo do Estado, inclusive com entrega de uma carta branca a agentes estatais para abater cidadãos presumidos perigosos, possa resultar em algo estruturalmente melhor para a sociedade – isso se estamos considerando que tal debate se dá no campo do republicanismo, do constitucionalismo e da democracia”. (RIBEIRO, 2018).
Destarte, considerando-se a escalada da violência no Estado do Rio de Janeiro, é necessário que se melhor esclareça acerca do instituto da legítima defesa, visto que a intimidação, por si só, através de armas de “grosso calibre” como fuzis nas mãos de criminosos, deverá ser observado se a agressão se apresenta efetivamente como iminente e que possibilite riscos aos agentes policiais ou mesmo à comunidade local. Nesse caso, “a neutralização” estará amparada pela legítima defesa e justificada sob o ponto de vista jurídico se tais criminosos estiverem se deslocando em confronto real com a polícia, situação na qual se apresenta risco real.
Além do mais, ensina Schwartz (2009) que, “No exercício de sua atividade ostensiva, não raras vezes, o policial militar poderá vir a causar danos a terceiros, como se observa no dia-a-dia através dos meios de informação. Na grande maioria das vezes, estes danos são causados devido a confrontos contra os criminosos, estando, quase sempre, os policiais envolvidos no conflito, amparados por causas excludentes de ilicitude, como a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal. Assim, no caso, por exemplo, de um tiroteio entre policiais e bandidos, vindo uma pessoa inocente que não participava do confronto a ser atingida por um disparo efetuado pelo policial, responderá o Estado pelo dano causado, devendo indenizar a vítima, devido à regra da responsabilidade objetiva”.
Diferentemente do que se observa no caso o simples “abate” de criminosos portando armamento em via pública, o que não autoriza a ação policial a disparar com finalidade de neutralização, pois, como já abordado, o emprego de arma de fogo deve ser o último estágio na progressão da força policial, pois não existe legítima defesa na existência de risco remoto e futuro. Nesse caso responderá o policial militar que não observar os requisitos no tocante a legítima defesa pelo crime de homicídio, tipificado no art. 121 do Código Penal Brasileiro, ou seja, como a responsabilidade do policial militar é subjetiva, se este exceder aos limites legalmente impostos na legislação penal vigente será, tanto civil como criminal e administrativamente, responsabilizado.