Capa da publicação Snipers e legítima defesa futura: reformulando o Código Penal ao sabor dos ventos políticos
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Uma breve consideração sobre o abate de criminosos por atiradores de elite na visão do governador Wilson Witzel

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3 Jurisprudências acerca da legítima defesa – estudo de casos

Com o objetivo de ilustrar o presente artigo, que traz uma reflexão sobre o tema da legítima defesa no que diz respeito ao “abate de criminosos” sugerido por alguns líderes do governo, na atualidade, assim como da legítima defesa preventiva, passa-se ao estudo de alguns julgados que abordam o tema:

3.1 Julgado que não reconhece a excludente de “legitima defesa preventiva”

O julgado que segue, como se nota de sua ementa, aduz que o ordenamento jurídico brasileiro não comporta as excludentes de “Legitima defesa preventiva”. Vejamos a Ementa:

“EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - PRELIMINAR - INÉPCIA DA DENÚNCIA - PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO - ESTADO DE NECESSIDADE - DESCABIMENTO - POTENCIALIDADE LESIVA COMPROVADA - ARMA DESMUNICIADA - IRRELEVÂNCIA PARA CONFIGURAÇÃO DO DELITO - INTERIOR DE VEÍCULO CONFIGURAÇÃO DO DELITO TIPIFICADO NO ART. 14 DA LEI 10.826/2003. - O crime tipificado no artigo 14 da Lei 10.826/03 é de mera conduta (dispensa a ocorrência de qualquer efetivo prejuízo para a sociedade) e de perigo abstrato (a probabilidade de vir a ocorrer algum dano, pelo mau uso da arma, acessório ou munição, é presumido pelo tipo penal), de sorte que o simples porte de arma de fogo de uso permitido é capaz de configurá-lo, independentemente de a arma estar ou não municiada. - O ordenamento jurídico não comporta as excludentes de 'legítima defesa preventiva' ou 'estado de necessidade virtual', de forma que a simples alegação de que poderia ser agredido por desafetos não justifica a conduta de possuir armas ilegais, até porque a intenção do Estatuto do Desarmamento foi obstar a banalização do uso de armas de fogo, evitando que conflitos corriqueiros terminem em agressões a tiros. - Aquele que mantém em depósito arma de fogo dentro de seu veículo incorre nas sanções do artigo 14 da Lei 10.826/2003, não havendo que se cogitar na desclassificação para o delito previsto no artigo 12 da referida lei. (MINAS GERAIS. TJMG - Apelação Criminal 1.0079.11.030989-9/001, Relator(a): Des.(a) Renato Martins Jacob, 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 02/06/2016, publicação da súmula em 13/06/2016) (grifo nosso)”.

Trata-se de Apelação Criminal em que o Apelante fora condenado por portar arma de fogo em desacordo com a legislação vigente, que alegou, em sua defesa, que a arma era para se defender de desafetos, e que morava em área de risco, além de visitar locais perigosos.

Como demonstra o presente julgado, foi negado provimento ao recurso contra a sentença, que condenou o Apelante nas iras do artigo 14 do Estatuto do Desarmamento, impondo-lhe a reprimenda de 02 (dois) anos de reclusão, em regime aberto, além de 10 (dez) dias-multa.

Em sua decisão, os desembargadores argumentaram que o ordenamento jurídico pátrio não comporta as excludentes de ‘legitima defesa preventiva’ ou ‘estado de necessidade virtual’.

3.2 Julgado que não reconhece a tese de legitima defesa por indícios de excesso na ação do réu

O julgado que segue trata-se de um Recurso em Sentido Estrito no qual é abordada a inexistência de obrigação de uso de força letal por parte do agente policial que demonstrou excessos em sua ação. Veja-se a Ementa:

“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE - CIÊNCIA A NOVO PROCURADOR - PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO EM BENEFÍCIO DO RECORRENTE - REJEITA-SE - ALEGAÇÃO DE LEGÍTIMA DEFESA E ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL - INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE USO DE FORÇA LETAL POR PARTE DO AGENTE - INDÍCIOS DE EXCESSO NA AÇÃO DO RÉU - TESE ABSOLUTÓRIA QUE DEVE SER EXAMINADA PELO TRIBUNAL DO JURI. - No Processo Penal, em matéria de prazos processuais, vigora o princípio da interpretação em benefício do recorrente, de forma a assegurar a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição. - inexiste dever legal, por parte do policial, de utilizar força letal, ainda que seja para a defesa de terceiros, tendo o agente extrapolado os limites da lei, não se configurando a excludente alegada. - Estando a prova coligida a evidenciar possível excesso na ação do réu, consubstanciado na quantidade de disparos de arma de fogo realizados, inclusive pelas costas da vítima, não há falar no acolhimento de legítima defesa nesta fase, devendo a tese defensiva ser examinada pelo tribunal do júri, juiz natural nos crimes contra a vida. - inocorrendo situação concreta de surpresa e tratando-se de policial presente no local para responder a ocorrência, não há falar na qualificadora do recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa, impondo-se seu decote, por manifestamente contrária à prova dos autos. - recurso provido parcialmente.” (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Penal e Processo Penal. RSE nº 1.0024.00.045830-7/001. Rel. Beatriz Pinheiro Caíres. Julgado em 16/11/2006, grifos no original).

No caso da ementa acima, o tribunal não considerou a tese de excludente de ilicitude, uma vez que, conforme provado nos autos, o Réu, Policial Militar, foi pronunciado por se utilizar de força letal, tendo, segundo entendimento dos desembargadores, se excedido na quantidade dos disparos de arma de fogo realizados, inclusive, pelas costas da vítima. Nesse caso, não restou configurada a tese de legítima defesa, uma vez que a matéria deve ser examinada pelo Tribunal do Júri.

3.3 Julgado que reconhece a tese de legitima defesa praticado por policial militar que usou dos meios moderados e necessários para repelir injusta agressão

O julgado que segue reconhece a tese de absolvição sumária de policial militar que, no exercício de sua função, utilizou moderadamente dos meios necessários para repelir os disparos efetuados por um criminoso, bem como para salvaguardar sua vida e de terceiros. Veja-se a Ementa:

“APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO DA ACUSAÇÃO. DUPLO HOMICÍDIO COMETIDO POR POLICIAL MILITAR CONTRA CIVIS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. DOLO EXISTENTE. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. LEGÍTIMA DEFESA PRÓPRIA COM ABERRATIO ICTUS SEGUIDA DE LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO. COMPROVAÇÃO INEQUÍVOCA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Tratando-se de crime doloso contra a vida de civil, praticado por militar, o julgamento da causa escapa da competência da Justiça Castrense, incumbindo à Justiça Criminal Comum, por meio da vara do Tribunal do Júri do local onde o crime foi praticado. 2. Nos termos do art. 415, inciso IV, do Código de Processo Penal, o juiz deverá absolvê-lo, desde logo, quando demonstrada causa de exclusão do crime – a exemplo da legítima defesa, a qual elide a antijuridicidade do delito. 3. Entretanto, essa absolvição sumária, quando fundada na legítima defesa, somente é possível de ser decretada se a indigitada excludente restar comprovada nos autos de forma clara, inconteste, sendo estreme de dúvidas, situação ocorrida na hipótese dos autos. 4. In casu, do acurado exame da prova testemunhal colhida no judicium accusationis, ressoa inquestionável que o réu, no exercício de sua função de policial militar, utilizou, moderadamente, dos meios necessários tanto para repelir os disparos efetuados contra si por um criminoso, quanto para salvaguardar a vida de terceiro, posteriormente feito de refém durante a perseguição. 5. O fato do acusado, para proteger sua vida, ter atingido com um disparo uma jovem inocente, caracteriza hipótese de aberratio ictus, não afastando a excludente de ilicitude da legítima defesa, por força do art. 73 do Código Penal. 6. Em relação ao infrator que veio a óbito, indubitável que a conduta do policial militar se revelou como o único meio eficaz para fazer cessar o iminente risco à incolumidade da vítima mantida como refém na ocasião.” (AMAZONAS. TJ-AM - APL: 02291012520148040001 AM 0229101-25.2014.8.04.0001, Relator: Jomar Ricardo Saunders Fernandes, Data de Julgamento: 03/09/2018, Segunda Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/09/2018).

É importante ressaltar que, comparando os julgados e as declarações do governador Witzel noticiadas na imprensa até então, principalmente os dois primeiros julgados, verifica-se que a tese do governador não encontra guarida na legislação e nem na jurisprudência, se não for observado o requisito de injusta agressão e o uso dos meios de forma moderada.

Diante disso, o governador, durante a solenidade de posse do Secretário de Segurança Pública, ocorrida no Batalhão de Choque da Polícia Militar, garantiu que colocaria a Defensoria Pública a serviço da tropa, bem como deixou claro que os policias militares que estivessem envolvidos em mortes em razão de confrontos com criminosos teriam ampla defesa, e que não necessitariam ficar temerosos.[13] 

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É sabido que a palavra final  acerca da configuração das excludentes de ilicitudes, em especial para o caso abordado no presente artigo, que diz respeito a legítima defesa, será o Poder Judiciário, a quem cabe velar pelo estrito cumprimento da lei e avaliar se esses policiais militares que efetuarem disparos de arma de fogo em face de criminosos armados de fuzis estarão ou não amparados pela excludente de ilicitude.

Mas, por certo, tal promessa feita por parte do governador nos parece temerosa e, até mesmo, ingênua, ainda mais se tratando de um ex magistrado e conhecedor da legislação processual penal.


Conclusão

Por todo o exposto, ao longo do presente trabalho, restou claro que a ideia de se abater criminosos armados de fuzis, tão somente pelo fato de os estar portando, não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito à legítima defesa futura, pois o ordenamento jurídico resguarda o direito à vida e ao devido processo legal. Fato é que o tema é polemico e ainda merece discussão, que, certamente, serão vistas no decorrer dos governos de Bolsonaro e Witzel.

Tem-se que a chamada “legítima defesa presumida e futura”, a qual se pretende adotar, caso o Projeto de Lei nº 352/17 seja aprovado, tem um viés de cunho ideológico e inconstitucional, pois adota um sistema de justiça criminal pautado em agir com medida extrema, que culmina na eliminação do cidadão infrator. É de se deixar claro que o agente de segurança pública deve procurar se valer do uso progressivo e proporcional da força, visando à preservação da vida, não sendo aceitável seu treinamento simplesmente para neutralizar cidadãos infratores considerados “inimigos do Estado”, uma vez que, em sendo o direito à vida o maior bem resguardado pelo ordenamento jurídico pátrio, cabe ao policial, mesmo diante do dever de agir para reprimir a violência e o crime, fazer seu trabalho pautando-se no cumprimento da legalidade, visando à segurança da sociedade e da ordem pública.

Tais observações devem ser levadas a um debate de cunho principiologico, embasado na Constituição Federal vigente, e não em meros apelos sociais valendo-se da emoção.

A prática tem mostrado que a intervenção federal, bem como os conflitos e enfrentamentos policiais no Estado do Rio de Janeiro, em especial nas favelas cariocas, não foram capazes de minimizar o problema de segurança pública; segurança esta em estado de emergência que deverá ser revisto pelos novos governantes recém eleitos no pleito eleitoral de 2018.

Desta feita, a proposta defendida pelo governador de usar snipers para o “abate” de criminosos, simplesmente por estarem armados de fuzil ou portar qualquer armamento de uso restrito, bem como o Projeto de Lei nº 352/17, não encontram guarida no ordenamento jurídico brasileiro, muito menos amparo na Constituição Federal vigente, uma vez que a proposta de extermínio de criminosos armados com armas de uso restrito não será a solução eficaz para o enfrentamento da crise da segurança publica. Além disso, o ordenamento jurídico vigente não comporta a alegação de se estar amparado em legítima defesa presumida, remota ou futura.

Diante do exposto, caberá ao Poder Judiciário julgar se o agente agiu ou não em legitima defesa, visto que tal competência não cabe ao Poder Executivo, como parece desejar o governador Witzel.

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Sobre os autores
Paulo Drummond Silva

Advogado , Pós graduado em Direito Penal e Processo Penal pela UCAM Universidade Cândido Mendes/RJ.

Joseval Martins Vianna

Diretor Geral do Legale Educacional. Coordena também o Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde e ministra aulas nos cursos de Pós-Graduação de Direito Civil, Direito Processual Civil, Bioética, Biodireito e Linguagem Forense no Legale Educacional. Formado em Letras e em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Paulo Drummond ; VIANA, Joseval Martins Vianna. Uma breve consideração sobre o abate de criminosos por atiradores de elite na visão do governador Wilson Witzel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6057, 31 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79283. Acesso em: 26 abr. 2024.

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