A Reppublica Italiana adota o sistema de transmissão de cidadania ou nacionalidade denominado juris sanguinis, ou direito do sangue, sistema este através do qual é italiano o descendente de italianos, observadas as causas legais que porventura impeçam a transmissão da cidadania ou acarretem sua perda (Lei de 04.02.1992, nº 91).
É conhecido o fenômeno, portanto, da dupla cidadania de que gozam indivíduos residentes em diversos países do mundo, descendentes de imigrantes italianos, que, portanto, ostentam tanto da nacionalidade do país onde nasceram quanto da cidadania italiana, que lhes foi transmitida por herança de seus ascendentes italianos.
Em alguns países, onde a imigração italiana foi mais maciça, como no caso do Brasil, são milhares as pessoas em tal situação, o que acabou por acarretar outros milhares de pedidos de reconhecimento de cidadania originária juris sanguinis junto à Rede Consular italiana.
O excesso de pedidos e a falta de pessoal e investimento, por parte do Governo italiano, na Rede Consular, para que seja possível o atendimento adequado da demanda, tem causado o elastecimento abusivo dos prazos de reconhecimento, que foram paulatinamente aumentando de 4 para 8 anos, de 8 para 12 e assim sucessivamente, desbordando há muito do limite do tolerável.
A omissão governamental, denegando a cidadania que é de direito do indivíduo, eis que este preenche todos os requisitos para tê-la reconhecida, parece visar, na verdade, evitar uma suposta onda de imigração, com a repatriação dos descendentes dos outrora expatriados.
A situação chegou a atingir pontos críticos, como na Circunscrição Consular do Paraná e Santa Catarina, quando, em janeiro de 2005, quando o então Cônsul-Geral em Curitiba sustou, por prazo indefinido 1, o recebimento dos pedidos de reconhecimento, sob a alegação de carência de pessoal e estrutura, bem como alegando que a demora prevista para os processos em trâmite seria de 15 a 20 anos 2.
A postura do Governo Italiano, no particular, é violadora de direitos humanos fundamentais, tanto inscritos em convenções e acordos internacionais de direitos humanos de que faz parte a República Italiana, quanto inscritos na própria Constituição Italiana de 1948.
A Constituição Italiana de 1948, lei maior no ordenamento jurídico peninsular, reconhece e determina a garantia dos direitos invioláveis do homem:
"Art. 2.
La Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabili dell’uomo, sia come singolo, sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalità, e richiede l’adempimento dei doveri inderogabili di solidarietà politica, economica e sociale."
Outrossim, a própria Constituição Italiana impõe a conformidade do ordenamento jurídico italiana às normas de Direitos Internacional:
"Art. 10.
L’ordinamento giuridico italiano si conforma alle norme del diritto internazionale generalmente riconosciute. [...]"
Não obstante tais dispositivos constitucionais, diversos direitos fundamentais dos cidadãos italianos, notadamente os cidadãos por descendência, nascidos e residentes no exterior, vêm sendo sistematicamente violados, conforme passamos a demonstrar.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê o direito à nacionalidade em seu art. XV, in verbis:
"Artigo XV – 1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade."
O indivíduo, preenchidos os requisitos legais e constitucionais, tem o direito subjetivo à cidadania, e deste direito não pode ser privado arbitrariamente, vale dizer, senão quando e na forma que prevejam a Constituição e as leis.
O fato do indivíduo, devido a circunstâncias ocasionais, possuir mais de uma cidadania, não confere a nenhum dos Estados em questão o direito de privá-lo de sua cidadania. A privação arbitrária é aquela fundada em motivos ilegítimos, não legalmente previstos.
Enquadram-se como motivos ilegítimos os juízos de conveniência e oportunidade da tramitação dos processos ou mesmo na aceitação dos pedidos de reconhecimento. A privação de nacionalidade, vedada pelo Direito Internacional Público, pode dar-se por ação (desnacionalização) ou omissão (recusa ou embaraço ao reconhecimento da cidadania), enquadrando-se o presente caso na segunda hipótese.
Por outro lado, a própria Constituição Italiana de 1948 proíbe a privação da cidadania por motivos políticos:
"Art. 22.
Nessuno può essere privato, per motivi politici, della capacità giuridica, della cittadinanza, del nome."
Ora, as evidentes razões de política anti-migratória que motivam a omissão e mesmo as sustações do recebimento de novos pedidos de reconhecimento de cidadania enquadram-se perfeitamente como motivos políticos.
De se esclarecer, neste passo, que a cidadania italiana juris sanguinis, caracteriza-se como de aquisição originária, vale dizer, o indivíduo que a ela faz jus, por preencher os requisitos legais, o faz desde seu nascimento. Isto traz por conseqüência o fato de que, desde que nasce, o indivíduo é cidadão italiano, sendo que o procedimento administrativo junto à Rede Consular tem caráter meramente declaratório, ou seja, visa tão-somente reconhecer a cidadania, que é pré-existente. Nesse passo, a Itália trata desigualmente dois cidadãos com idênticos direitos (cidadão italiano nascido em qualquer parte do mundo é tão cidadão quanto o nascido na Itália, desde o nascimento).
Portanto, a conduta exposta fere, ainda, a isonomia, ou igualdade, prevista na Constituição da República Italiana, in literis:
"Art. 3.
Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua 3, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali."
A regra da igualdade ou isonomia é também prevista na Declaração Universal:
"Art. II – 1. Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será tampouco feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania."
Não pode a República Italiana distinguir entre cidadãos, quer tenham nascido no território italiano ou fora dele, vez que a própria Constituição proíbe qualquer distinção, inclusive a fundada em raça ou língua. E os instrumentos normativos da ONU proíbem, expressamente, distinções baseadas em origem nacional ou local de nascimento, tampouco na condição do país ou território em que se encontre o indivíduo.
Assim sendo, para o direito italiano e para o Direito Internacional pouco importa se o indivíduo fala italiano ou não, se nasceu na Itália ou não, se abita no território ou não. E tais fatos não podem e não devem ser levados em consideração para discriminar cidadãos italianos no exercício de seus direitos e liberdades fundamentais.
Não bastassem tais fundamentos a demonstrar a situação de flagrante inconstitucionalidade e desconformidade da conduta do Governo Italiano em relação aos direitos fundamentais, ainda se verifica que as condutas descritas constituem-se em discriminação racial, de conformidade com o Direito Internacional Público.
Com efeito, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial conceitua o significado da expressão discriminação racial para o Sistema Global de Direitos Humanos (ONU), em seu art. 1º:
"Artigo 1º - 1. Para os fins da presente Convenção, a expressão ‘discriminação racial’ significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública."
Ora, na situação que vivenciamos hoje, verifica-se claramente uma distinção, exclusão ou restrição ao exercício, gozo e fruição de direitos e liberdades fundamentais por parte da população ítalo-brasileira, ainda que isto não seja expressamente declarado.
Portanto, é inegável que as condutas referidas trazem consigo a pecha de atitudes discriminatórias. A República da Itália, com a ratificação da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação 4 assumiu o compromisso, perante a comunidade internacional, de adotar, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas, e, inclusive (art. 2º) 5:
abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação racial e zelar para que as autoridades públicas nacionais (dentre as quais incluem-se os órgãos integrantes da rede consular) ou locais atuem em conformidade com esta obrigação;
não encorajar, defender ou apoiar a discriminação racial praticada por uma pessoa ou uma organização qualquer;
tomar medidas eficazes, a fim de rever as políticas governamentais nacionais e locais e modificar, ab-rogar ou anular qualquer disposição regulamentar que tenha como objetivo criar a discriminação ou perpetuá-la onde já existir.
É seu dever legal e moral, portanto, não somente anular e proibir os atos de sustação de recebimento de requerimentos por parte de seus órgãos consulares, como, ainda, prover tais órgãos de dotação orçamentária, pessoal e infra-estrutura aptos a fazer face à demanda, com um mínimo de eficiência, mitigando, assim, a violação de direitos fundamentais perpetrada, quer por ação, quer por omissão.
O próprio Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos veda a discriminação, no art. 14 da Convenção Européia dos Direitos do Homem:
"Articolo 14 – Divieto di discriminazione
Il godimento dei diritti e delle libertà riconosciuti nella presente Convenzione deve essere assicurato senza nessuna discriminazione, in particolare quelle fondate sul sesso, la razza, il colore, la lingua, la religione, le opinioni politiche o quelle di altro genere, l’origine nazionale o sociale, l’appartenenza a una minoranza nazionale, la ricchezza, la nascita o ogni altra condizione."
A privação de direito à nacionalidade 6 acarreta outras graves violação de direitos humanos, como, por exemplo:
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a) privação arbitrária de direitos políticos, como o de votar e ser votado, e privação arbitrária de direitos civis, como o de ter acesso, em igualdade de condições, a cargos públicos (direitos estes protegidos pelo art. 25 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU – Organização das Nações Unidas 7);
b) privação arbitrário do direito de ingresso no próprio país (direito este protegido pelo art. 12, parágrafo 4, do PIDCP 8 da ONU).
A relação de direitos e liberdades violadas, bem como de diplomas normativos, evidentemente não é exaustiva. Existem inúmeras outras normas de Direito Internacional violadas, contidas em instrumentos pertencentes não somente do Sistema Global de proteção dos Direitos Humanos – leia-se ONU -, como também do Sistema Europeu.
Assim sendo, resta demonstrado, ainda que sucintamente, a gravidade da conduta e dos atos enfocados e suas caracterização como atos ilegais perante o Direito Internacional Público e o Direito Constitucional italiano.
A gravidade da situação é ressaltada face o número de vítimas das referidas violações: somente no Consulado Geral da Itália de Curitiba, cuja circunscrição estende-se pelos Estados do Paraná e Santa Catarina, o número de pessoas na fila de espera é de 85.000, segundo dados do próprio Consulado 9 (sem contar aqueles que, devido à sustação do recebimento de requerimentos, encontram-se fora das estatísticas).
Ressaltamos que a permanência de tal situação poderá vir a oportunizar o manejo, por algum interessado, de instrumento processual adequado a provocar a manifestação de órgão jurisdicional internacional em matéria de Direitos Humanos como, por exemplo, a Corte Européia de Direitos Humanos.
Mais do que a possibilidade de tais instituições sancionarem a República Italiana pelo inadimplemento de suas obrigações internacionais, emergentes de instrumentos normativos aos quais aderiu expressamente, o impacto dos fatos revelados por uma provocação de uma Corte Internacional a manifestar-se sobre o tema, perante a imprensa e a opinião pública internacional, poderão virtualmente surtir efeito.
Notas
Situação que perdura até esta data.
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Não obstante seja legítimo o reclamo das autoridades consulares por uma estrutura de trabalho adequada à demanda, não compete a estas a avaliação de juízos de conveniência e oportunidade acerca do requerimento ou não da cidadania. A demora é ônus a ser suportado, enquanto durar a omissão quanto a investimentos estruturais e de pessoal, por parte do Governo Italiano, pelos interessados, a quem compete fazer o juízo de conveniência. O fato de uma demora prognosticada em 15/20 anos, pelo Consolato Generalde d’Italia em Curitiba (avviso nº 01/2005, de 14.01.2005), não significa, necessariamente, que o indivíduo não mais possua interesse no reconhecimento da cidadania. Pode haver interesse dos descendentes do requerente, menores ou ainda não concebidos, por exemplo. A negativa não se justifica, sequer sob tal fundamento.
Neste passo fica claro que são inconstitucionais propostas como a do Ministro degli Italiani all’Estero Mirko Tremaglia, em restringir a cidadania aos falantes da língua italiana, vez que a Constituição, expressamente, o proíbe.
A Itália ratificou a Convenção, que tem força normativa, em 05.01.1976.
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Texto do art. 2º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1968:
"Art. 2º - Os Estados-partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e a encorajar a promoção de entendimento entre todas as raças, e para este fim:
a) Cada Estado-parte compromete-se a abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação racial contra pessoas, grupos de pessoas ou instituições e zelar para que as autoridades públicas nacionais ou locais atuem em conformidade com esta obrigação;
b) Cada Estado-parte compromete-se a não encorajar, defender ou apoiar a discriminação racial praticada por uma pessoa ou uma organização qualquer;
c) Cada Estado-parte deverá tomar as medidas eficazes, a fim de rever as políticas governamentais nacionais e locais e modificar, ab-rogar ou anular qualquer disposição regulamentar que tenha como objetivo criar a discriminação ou perpetuá-la onde já existir;
d) Cada Estado-parte deverá tomar todas as medidas apropriadas, inclusive, se as circunstâncias o exigirem, medidas de natureza legislativa, para proibir e pôr fim à discriminação racial praticada por quaisquer pessoas, grupo ou organização;
e) Cada Estado-parte compromete-se a favorecer, quando for o caso, as organizações e movimentos multirraciais, bem como outros meios próprios para eliminar as barreiras entre as raças e a desencorajar o que tenda a fortalecer a divisão racial."
A desnacionalização abusiva ou privação arbitrária da nacionalidade/cidadania é ilícito internacional, previsto na Convenção de Nova York, da ONU, em 30.08.1961.
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"Art. 25 – Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2º e sem restrições infundadas:
a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos;
b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores;
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país."
PIDCP: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 16.12.1966, e ratificado pela Itália em 15.09.1978.
Aviso nº 01/2005, já referido.