Resumo: O presente trabalho tem como objetivo investigar, sob a matriz da Teoria Geral do Garantismo Jurídico, a questão atinente à exclusão de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal e o seu tratamento pela legislação brasileira atual (Código Tributário Nacional e leis extravagantes). O problema levantado nesta pesquisa foi indagar (sob uma perspectiva garantista juntamente com o estudo da seletividade do Direito penal brasileiro) se a extinção de punibilidade na atual lei de sonegação fiscal é válida, legítima e condizente com o interesse público. À primeira vista, parece, a tipificação do direito penal positivista brasileiro, legitima, por ser legal (por obedecer às leis formais de legalidade), porém ao se verificar que os ‘tipos’ penais são mecanismos utilizados pelos grupos sociais dominantes para selecionarem as condutas dos subalternos, então o sistema penal passa a não ter legitimidade, de fato. Para acabar com a falsa idéia de legitimidade do direito deve-se observar, no caso da sonegação fiscal, os princípios da igualdade e proporcionalidade, e garantir punição razoável conforme cada crime cometido, ao contrario do que ocorre hoje, de punir excessivamente as condutas da maioria e não punir a conduta (também criminosa) dos grupos hegemônicos no poder político. Este estudo serve para propor, ou ao menos denunciar, sob um aspecto racional e, concomitantemente, dentro de uma visão de direito vigente, mas atenta ao que os atuais formuladores do direito não querem observar, vale dizer, a Constituição sob seu aspecto material, a falácia que envolve uma parte da produção legislativa, mais propriamente, no âmbito penal.
Palavra-chave: Garantismo; Legitimidade; Sonegação Fiscal.
INTRODUÇÃO
O objetivo geral deste trabalho é Investigar, sob a matriz da Teoria Geral do Garantismo Jurídico, a questão atinente à exclusão de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal e o seu tratamento pela legislação brasileira atual.
Em relação aos objetivos específicos, estes foram: a) Demonstrar as principais características da Teoria Geral Garantista, de Luigi Ferrajoli; b) Estudar as diferenças entre legalidade e legitimidade segundo o garantismo; c) Analisar a seletividade do Sistema Penal, bem como o conceito de mito da igualdade definido pelo mesmo autor; d) Aplicar os parâmetros garantistas de legitimidade normativa, a fim de serem confrontados com a atual legislação sobre sonegação fiscal. e) Identificar de que forma a extinção de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal é uma demonstração da seletividade do sistema penal, bem como da existência do mito da igualdade; f) Identificar, também, de que maneira a extinção do direito de punir no crime de sonegação não atende aos conceitos de legalidade e legitimidade, a partir de uma visão garantista.
No que diz respeito à metodologia, observa-se que o método utilizado foi o Indutivo. A técnica de pesquisa utilizada para obtenção dos dados foi a Pesquisa Bibliográfica, realizada a partir de documentação indireta. Quanto à análise e interpretação dos resultados, a pesquisa teve caráter qualitativo, tentando oferecer uma apreciação global sobre as conclusões que a investigação propiciou.
1. O GARANTISMO, DE LUIGI FERRAJOLI
A Teoria Geral do Garantismo origina-se do desdobramento da teoria penal garantista, esta última surgiu na Itália, em 1989, e tem como marco precursor a obra Diritto e Ragione de Luigi Ferrajoli. A teoria garantista parte de uma análise crítica do positivismo jurídico, e tem como base a separação entre Moral e Direito (entre “ser” e “dever ser”), e a centralidade do indivíduo na sociedade, de modo que na visão garantista, a sociedade deve dar subsídio para o desenvolvimento do cidadão e garantir os seus direitos fundamentais.
Tal idéia de Estado como garantia de paz e proteção do cidadão não começou com Ferrajoli, ela vem deste Thomas Hobbes, que afirmava que para acabar com o bellum omnium contra omnes (a guerra de todos contra todos) deveria acabar com o estado de natureza entre os homens, de modo que deveria ser criado um grande ser político que protegeria os homens: o Leviatã.
A teoria garantista, além de primar pela proteção estatal dos direitos dos homens, apresenta três concepções: uma teoria jurídica, um modelo normativo e uma filosofia política. Na forma de teoria Jurídica, apresenta-se como uma releitura dos conceitos de vigência, validade e eficácia. Tal reconceituação é pautada na diferença entre estes três (como será visto mais adiante), o que acarreta uma mudança significativa no modo de analisar a legitimidade de uma lei e gera um modelo normativo de estrita legalidade que vem a contrariar o modelo de mera legalidade, ou legalidade formal. A mera legalidade representa, na visão garantista, a forma positivista de legalidade em que basta a norma ser vigente para ser válida. O modelo de legalidade estrita, garantista, muda a forma de analisar a legitimidade estatal porque passa a exigir do Estado que este justifique suas leis nos princípios fundamentais (como será explicitado ao longo deste capítulo), esta exigência caracteriza a acepção de filosofia política do garantismo. Nas palavras do próprio autor, traduzidas da versão em espanhol utilizada neste trabalho:
De acordo com o primeiro sentido, "garantismo" designa um modelo normativo do direito penal, o modelo de "estrita legalidade". [...] Em uma segunda acepção, "garantismo" designa uma teoria jurídica da "validade" e da "eficácia" como categorias distintas não só entre si, mas também no que diz respeito à "existência" ou "vigência" das normas. [...]
Em uma terceira acepção, com efeito, "garantismo designa uma filosofia política que impõe ao direito e ao estado o ônus da justificação externa conforme aos bens e interesses cuja tutela e garantia constitui precisamente o objetivo de ambos. ( FERRAJOLI, 2006, p. 281 , Itálico e aspas do original).
O modelo de legalidade estrita verifica contradições e incoerências, entre as normas infraconstitucionais e a Carta Magna. Aquelas deveriam se submeter aos princípios fundamentais desta, quando isto não ocorre o Estado não está garantindo a efetividade das normas essenciais para os cidadãos e por isso ele perde a legitimidade de seu poder, já que este advém de um contrato social entre o povo (detentor do poder) e o Leviatã (o Estado que passa a deter o monopólio da violência legítima, em troca da proteção aos cidadãos). Se os direitos fundamentais e suas garantias (efetividade destes) não estão sendo respeitados pelo Estado, então este contrato se quebra e o poder do Leviatã perde a sua legitimidade. Desta forma o modelo de legalidade estrita, exposto por Ferrajoli:
[...] permite ao estudioso analisar um determinado sistema constitucional para verificar eventuais antinomias entre as normas inferiores e seus princípios constitucionais, bem como incoerências entre as práticas institucionais efetivas e as normas legais. A partir daí, poderá inferir-se o grau de garantismo do referido sistema, ou seja, o grau de efetividade da norma constitucional. (CADEMARTORI, 2006, p. 97)
Na forma de teoria jurídica, o garantismo redefine o que é validade, vigência e eficácia, mais precisamente esclarece a diferença entre os conceitos. Para o estudioso italiano, uma norma pode ser eficaz e ao mesmo tempo não ser válida. Um exemplo disso pode ser verificado nas leis infraconstitucionais que violam direitos fundamentais, já que estas estão vigentes, porém não são válidas sob o ponto de vista constitucional. No mesmo raciocínio, uma lei pode ser válida, mas não eficaz, como um princípio constitucional que é válido, porém não tem efetividade porque não é obedecido pelas demais leis inferiores, nem pelo Estado, quando os legisladores fazem as leis. Esta diferenciação não existia no positivismo em que uma norma para ser válida precisava apenas estar em vigor, ou seja, ter seguido as normas formais para entrar em vigor, independente do conteúdo da lei ser constitucional ou não, como explica Cademartori:
Então, para evitar tais confusões, o garantismo propõe uma redefinição das categorias tradicionais, passando a entender como vigentes (ou de validade meramente formal) as normas postas pelo legislador ordinário em conformidade com os procedimentos previstos em normas superiores, reservando a palavra validade à validade também substancial dos atos normativos inferiores.(CADEMARTORI, 2006, p. 100, itálico do original).
Na sua terceira acepção, como filosofia política, a teoria garantista confere, através de sua redefinição do conceito de validade, a efetividade dos direitos fundamentais, já que para uma norma ser válida ela precisa, além da forma, do conteúdo e este conteúdo deve estar de acordo com o postulado na Constituição.
Desta forma, Colocando o Estado a serviço do cidadão (conforme o contrato social) e da garantia de seus direitos fundamentais, o indivíduo é posto no centro da sociedade. A teoria de Ferrajoli baseia-se no conceito de centralidade do indivíduo, ou seja, sob a perspectiva garantista o Estado trabalha para o indivíduo e para a manutenção dos direitos fundamentais para todos, na garantia de um Estado Democrático de Direito. Este é diferente de democracia, pois no Estado Democrático de Direito, garantista, os direitos fundamentais dos indivíduos e suas garantias (efetivação desses direitos) não podem ser violados nem mesmo pela maioria (ROSA, 2003)
Logo, a teoria garantista também redefine o conceito de democracia, criando o que o autor chama de democracia substancial. Ferrajoli afirma haver uma crise do direito nos países democratas (em especial na Itália, Espanha e França), esta crise apresenta três principais aspectos, quais sejam: a crise da legalidade; a crise do Estado social; e a crise do Estado Nacional (FERRAJOLI, 2004)
A primeira crise é a crise do valor que vincula as regras pelos titulares dos poderes públicos. Para ele, há uma ausência de eficácia dos controles do poder, acarretando uma ilegalidade do poder. Ferrajoli cita escândalos de corrupção envolvendo a política, a administração pública, as finanças, e a economia em alguns países europeus. Este sistema corrupto, segundo o autor, constitui uma espécie de Estado paralelo, controlado pelos lobbies dos empresários, que tem seu próprio comportamento e sua própria noção de legalidade. Na Itália, a ilegalidade pública se manifesta também como crise constitucional, com a degradação do valor; de regras institucionais; e dos limites impostos ao poder público.
Não é diferente no Brasil, também contaminado pela corrupção e degradação do sistema político, que controlado pelos empresários influentes, acaba por colocar interesses adversos à frente das garantias constitucionais, aprovando leis patrocinadas pelos lobbies e que não demonstram o real interesse com a população e com os princípios constitucionais. O exemplo clássico deste controle empresarial que degrada o sistema legislativo brasileiro é a lei dos crimes hediondos. O congresso movimentou-se para criar a lei dos crimes hediondos, que vedava a progressão de regime (que é uma garantia constitucional) para alguns crimes escolhidos pelos parlamentares. A lei dos crimes hediondos foi a lei que, promulgada no Brasil numa época democrática (excluindo-se, então, as leis do período militar) foi a mais criticada pelos constitucionalistas e estudiosos do Direito, do Brasil. A lei 8.072 de 25 de julho de 1990 foi criticada por não ter lógica de definição de quais crimes deveriam ser taxados como hediondos (havendo uma visível seleção de condutas, conforme os interesses doa grupos sócio-econômicos privilegiados), bem como por ter violado preceitos constitucionais (e até mesmo tratados internacionais) como a progressão de regime e outras garantias dos presos. Após muita crítica, através do habeas corpus nº 82959, o Superior Tribunal Federal permitiu a progressão de regime para um preso por ter cometido um crime hediondo e declarou a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, (artigo que veda a possibilidade de progressão do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos). Começando então a derrubada das inconstitucionalidades da lei. A lei dos crimes hediondos é um exemplo de como no Brasil há também a crise da legalidade, assim como descrita por Ferrajoli, em que a corrupção e os lobbies empresariais degradam os valores do direito e os princípios constitucionais.
O segundo aspecto da crise democrática, conforme Ferrajoli, é a crise do Estado Social, caracterizada pela inadequação estrutural das formas de Estado de Direito às funções do Estado Social, já que há uma acentuação do caráter seletivo e desigual do direito. Um dos aspectos desta crise é a pressão provocada pelos interesses setoriais e corporativos sobre o Poder Legislativo, exigindo ação positivas sobre a constante afirmação de emergência e exceção, gerando um inchaço legislativo.
O terceiro aspecto da crise do direito é, para o autor, a crise do Estado nacional, ocasionada pela falta de constitucionalismo no direito internacional, que acarreta uma crise na soberania nacional. Se a soberania não representa mais a real vontade da maioria, como já afirmava o filósofo Jean-Jacques Rousseau, então o Estado está em crise.
Para o garantista, esta tripla crise se traduz numa crise da própria democracia e da legalidade:
Porque, na verdade, em todos os pontos levantados, equivale a uma crise do princípio da legalidade, ou seja, da sujeição dos poderes públicos à lei, na qual fundamentam tanto a soberania popular como o paradigma do Estado de direito. Além disso, ela acaba na reprodução das formas neoabsolutistas de poder público, carentes de controles e governadas por poderosos interesses ocultos dentro de nosso ordenamento.
Talcrise da democracia, e da legalidade, coloca em perigo o futuro dos direitos fundamentais e de suas garantias, (já que os direitos fundamentais são o vínculo substancial imposto pela democracia) não sendo apenas uma crise do direito, mas também uma crise da razão jurídica. A democracia proposta por Ferrajoli é uma democracia constitucional, substancial, ou seja, não é fundamentada apenas em regras formais, mas também, e principalmente, embasada na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, colocando os indivíduos no centro da sociedade. O garantismo coloca imposições, barreiras para o poder do Estado, e esta barreira é a Constituição e seus direitos fundamentais
A Constituição representa o contrato social de Rousseau, e os direitos fundamentais limitam o poder do Estado sobre o indivíduo. Se o Estado não protege seus cidadãos e não lhes garante os direitos fundamentais deste contrato constituinte da sociedade, então o Estado perde a legitimidade de seu poder, e passa a exercer (não um monopólio de violência legítima, mas sim) uma ditadura. A democracia se quebra, já que os direitos fundamentais de todos os indivíduos não estão sendo respeitados. Quando um Estado promulga uma lei que viola as garantias e direitos fundamentais, então não apenas a legitimidade do Estado e os valores da democracia estão sendo quebrados, mas também há uma crise do próprio direito e da razão jurídica, como afirma Ferrajoli:
Com efeito, os direitos – quer de liberdade como sociais – são elementos limitadores do Poder Estatal, e o grau de garantia desses direitos se constitui como parâmetro de mediação da legitimidade e qualidade de uma democracia. (ROSA, 2003, p.35)
A partir deste pensamento Ferrajoli aponta uma nova concepção de legalidade, validade e democracia, que ele chama de substanciais ou “não meramente formais”. Ou seja, que na sua substância tenham a Constituição e seus princípios.
1.2. O MODELO DE LEGALIDADE SUBSTANCIAL DE FERRAJOLI
O garantismo, como exposto, redefiniu os conceitos de validade, vigência e eficácia em contraponto ao modelo positivista, que não diferenciava a norma vigente da válida. O positivismo se baseia em uma legalidade unidimensional, ou seja, a única dimensão da norma que a torna legal, legítima, é a obediência às regras de procedimento internas do ordenamento jurídico.
Na verdade, a premissa do positivismo jurídico clássico é o princípio da legalidade formal, ou, se preferir, de mera legalidade, como metanorma de reconhecimento das normas. Segundo esta premissa, uma norma jurídica, seja qual for o seu conteúdo, existe e é valida apenas em virtude das formas de sua produção. (FERRAJOLI,2006, p. 52, Itálico do original).
Para o positivismo jurídico a lei é válida quando segue as normas procedimentais (descritas na própria constituição, quais sejam: aprovação do congresso, quorun determinado, etc). Já para Ferrajoli, uma norma deve ser válida apenas quando substancialmente está de acordo com a Constituição, não apenas no que diz respeito às normas para sua feitura, mas também ao modo como a nova lei se submete à Constituição em relação aos seus princípios. Se uma nova lei viola, direta ou indiretamente, um princípio constitucional, esta lei não é válida, do ponto de vista garantista, e logo, não é obrigatória, pois o seu conteúdo está em desacordo com a constituição.
É desta forma que Ferrajoli versa sobre os direitos e garantias, ou seja, as garantias devem estar presentes nas leis, de forma que aquelas definem a validade (ou invalidade) destas. Ferrajoli, segundo Ibáñez, “vê a relação entre a lei e a garantia como implicação normativa e não como mera descrição ou constatação de um fato jurídico (que poderia não ocorrer).
No conceito de Ferrajoli não pode haver norma sem a garantia, pois esta é parte integrante da norma ao ponto de invalidar-se uma lei que não traga consigo as garantias fundamentais expostas na constituição. Já no positivismo esta estrita relação não ocorre.
Para os positivistas vigência é igual à validade, ou seja, uma norma é válida a partir do momento que ela entra em vigência no ordenamento jurídico. A eficiência da norma é condição de validade. Esta visão fundamenta a validade de uma lei em quesitos apenas formais, procedimentais da mesma, e reduz a validade aos procedimentos legislativos de capacidade e promulgação da lei que, ao tornar-se vigente, adentra no ordenamento jurídico e ganha automaticamente validade. O garantismo surge para remodelar esta antiga concepção reducionista de validade e legitimidade. Sobre isto, afirma Ferrajoli:
Pelo pensamento kelsiano, pode-se explicar a validade a partir do conceito de Norma Fundamental, que considera o ordenamento como um conjunto de normas que para serem válidas devem buscar o seu fundamento em outra norma válida superior, e assim sucessivamente até chegar a uma “norma fundamental”, que serve de fundamento e de cláusula de todo o ordenamento jurídico. A validade da Norma Fundamental não é baseada em outra norma (como ocorre com as demais normas positivas no ordenamento jurídico) posto que serve como um artifício teórico para fechar todo o sistema normativo.
Entretanto, com o advento da teoria Garantista, Ferrajoli formula uma crítica por achar a teoria kelsiano excessivamente racional no seu aspecto estrutural, desconsiderando os fatores substanciais ou materiais que também determinam a validade normativa. Assim, para Ferrajoli o que valida as normas inferiores não é a “Norma Fundamental”, mas nos princípios do direito, posto que estes são os fundamentos do Direito, e as leis que decorrerem desta terão, então, validade porque decorrem também destes princípios. Portanto as leis inválidas, que não estão de acordo com os princípios fundamentais deveriam, pelo prisma garantista, serem anuladas, perdendo, pois, a sua eficácia.
[...]a presunção de validade geral que, segundo as teorias normativas assiste a ordem na sua totalidade: a presunção, como já foi reforçada pelas teorias da democracia, que identificam o fundamento da legitimidade democrática das decisões com o simples respeito às regras processuais sobre a forma de "que" e "como". Depois de superada semelhante presunção, é justamente o "direito nulo" ou "ilegítimo" produzido pela contradição com padrões mais elevados e, por conseguinte, a violação dos limites impostos sobre o poder negativo, em que se torna objeto privilegiado da ciência jurídica. E é a crítica da lei é inválida dirigida a fomentar a sua anulação, que constitui a principal tarefa, científica e ao mesmo tempo política, da ciência jurídica. (FERRAJOLI, 2006, p. 29).
Portanto, para Ferrajoli, a lei ilegítima não deve se tornar eficaz, ou seja, não deve ser cumprida, porque substancialmente ela viola direitos constitucionais, ou seja, ela quebra o contrato social. Ora, desde Jean-Jacques Rousseau, há entre a população e o Estado um contrato social, em que aquele transfere para este o monopólio da violência legítima. Podemos concluir que o Direito tem poder sobre os cidadãos na medida em que ele se fundamenta nos princípios deste contrato social. O Estado deve trabalhar para o cidadão, que deve ser o centro da sociedade. Esta é maior que aquele, mas ela só tem poder porque o próprio indivíduo lhe cedeu este poder, através do contrato social. Logo se o Estado atuar contra os interesses dos indivíduos ele perde a legitimidade. Neste mesmo raciocínio, a norma fundamental legitima o ordenamento jurídico, que deve trabalhar em prol do cidadão a fim de garantir a paz social (nem que para isso tenha que usar o monopólio da violência, como nas prisões, para manter a sociedade pacífica).
Logo, pode-se perceber que as leis não são válidas apenas por estarem vigentes no ordenamento, mas as normas têm validade apenas se forem legítimas do ponto de vista substancial, se forem pautadas pelos direitos fundamentais dos indivíduos, como a igualdade, pressuposto para uma sociedade justa e voltada para o indivíduo.
No Estado Constitucional, democrático, de Direito as normas só tem validade se pautadas nos fundamentos e garantias constitucionais. Quando a validade das normas se reduz ao preenchimento de requisitos formais o Estado perde a sua legitimidade. Se uma lei ao ser criada obedece a competência e as regras formais para ser criada porém viola princípios constituconais fundamentais (igualdade, proporcionalidade etc), então esta lei não é legal, valida. Pois a lei tem que se submeter ao Direito e não à forma
Com efeito, o sistema de normas sobre a produção das leis - geralmente estabelecido, nos nossos ordenamentos jurídicos, 206, p. 29com cunho constitucional – é composto não só de regras formais sobre a competência ou sobre os procedimentos e formação das leis. Inclui também normas substanciais, como o princípio da igualdade e os direitos fundamentais, que de vários formas limitam e vinculam o poder legislativo excluindo ou impondo certos conteúdos. Assim, uma norma- por exemplo, uma lei que viola o princípio constitucional da igualdade - por mais que tenha existência formal ou vigência, pode muito bem ser inválida e, como tal, passível de cancelamento por contrastar com uma regra substancial sobre a sua produção. ( FERRAJOLI, 2006, p. 20-21, destaque meu).
Logo uma lei que não é válida, é apenas vigente, não deve ser aplicada (deve ser cancelada, anulada), cabe ao Estado fornecer subsídios para que o cidadão possa fazer a verificação da legitimidade e impedir os abusos de poder. Esses subsídios serão estudados no capítulo seguinte.
Ferrajoli entende que as normas meramente válidas (válidas do ponto de vista positivista) sejam declaradas inválidas (porque violam os princípios fundamentais) e sejam descartadas do ordenamento de forma a não terem eficácia. Por este entendimento, a teoria garantista de Ferrajoli é chamada por alguns de teoria minimalista, por incentivar a “diminuição” do Direito, retirando deste as leis inválidas do ponto de vista substancial, ou material.
1.3. A EFETIVAÇÃO DAS GARANTIAS PELO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
O indivíduo, como já afirmou Aristóteles (1997), precisa da sociedade para viver, ele é um zoon politikon (animal político). A sociedade visa o bem maior dos cidadãos, que unem-se para melhor sobreviverem. A sociedade então, para o pensamento grego, está acima do indivíduo, para este modelo de pensamento uma morte na batalha defendendo sua pólis, é uma morte boa e heróica.
Esta idéia de sociedade acima do indivíduo preponderou durante muito tempo, e chega ao ápice com as monarquias absolutistas Européias, principalmente na França com o Monarca Luís XIV (que governou a frança de 1643 a 1715) e sua célebre frase “L’État c’est moi” (o Estado sou eu). O absolutismo foi a primeira formação do que caracteriza, ainda hoje, um Estado territorialmente demarcado, que centraliza suas funções precípuas, porém, no caso do Estado do séc. XVIII este se caracterizava pelo exercício irrestrito, absoluto, do poder pelos que o detinham (vale dizer: os monarcas absolutistas).
A opressão absolutista durou até as chamadas revoluções burguesas de fins de século XVIII, com os ideais humanistas e libertários da Revolução francesa de 1789 de igualité, liberté et fraternité, (igualdade, liberdade e fraternidade) e americana de 1776, e a Revolução Gloriosa da Inglaterra, ainda anterior, em 1688. A partir dessas idéias e ações, consolidou-se o Estado Liberal, que era uma resposta ao Estado Absolutista monárquico interventor.
O Estado Liberal se apresentava como abstencionista, sendo apenas limitado pela lei. Na economia o Estado também não intervinha (o que caracterizou o jargão da política econômica do laissez-faire, ou “deixe estar”) ficando o domínio econômico por conta da ‘mão invisível’ (conceito de Adam Smith) do mercado que controlaria a economia através da livre concorrência entre os agentes econômicos
Ainda sob a era do Estado Liberal, houve a Grande Depressão de 1929 que gerou uma crise no capitalismo da época através da crise da bolsa de ações. Esta crise teve como resposta dos governos da época (Europa e E.U.A) uma maciça intervenção no ordenamento econômico que teve como conseqüência a superação do modelo liberal abstencionista e o advento de um novo modelo Estatal. Neste período foram conquistados os direitos de segunda geração, os direitos sociais. Após nova reforma surgiu a concepção de um Estado paternalista, assistencialista: o Estado Social de Direito, que por sua vez era a resposta ao Estado Liberal, omisso. O Estado Social, ou Estado de Bem Estar Social chamado também Welfare State. Tal Estado, além de garantir os já consagrados direitos de igualdade, fraternidade e de liberdade conquistados pelas declarações de direitos das revoluções burguesas (direitos da primeira geração) e também garantiu os direitos sociais (direitos de segunda geração), através de intensiva ação do Estado com as políticas sociais:
Porém, com o passar dos anos este tipo de Estado, como afirma Ferrajoli (2006) levou a um inchaço legislativo, porque ficou a cargo do Congresso Legislativo a missão de elaborar todo tipo de lei de cunho social. Ocorre que havia muita pressão de vários setores da sociedade, todos afirmando que suas leis assistencialistas eram urgentes e importantíssimas, gerando uma carga imensa sobre o Congresso que passou a fazer lei sobre quase tudo, procurando resolver todo o tipo de problema social. Então as leis, que deveriam ser gerais e abstratas passaram a ser, em sua maioria, casuísticas, protegendo o direito daqueles setores que exerciam pressão sobre o legislativo, os lobbies.
A partir desta crise do Estado Social de Direito, buscou-se a solução através de um novo conceito de Estado, que atendesse aos ideais libertários iluministas e sociais, mas que ao mesmo tempo não sobrecarreguasse o Congresso com pressões de lobbies que acabam por deslegitimar esta instituição. Então, através do Estado Consitucional de Direito, que vem a ser o resultado dessas mudanças, podemos retirar a carga assistencialista do Estado, e ao mesmo tempo não anular os direitos do cidadãos, porque neste conceito de Estado o povo tem os mecanismos processuais (constitucionais e infraconstitucionais) necessários para exigir que as garantias fundamentais sejam efetivadas. Esses mecanismos são, no Brasil, por exemplo, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, ação direta de Inconstitucionalidade, entre outros meios em que o povo está a frente, em seu papel de cidadão, requisitando a efetivação de seus direitos fundamentais.
No Estado Constitucional de Direito, é importante também o papel do Juiz, ao interpretar as leis infraconstitucionais de forma a tornarem efetivas as normas constitucionais, de forma que se uma lei fere um dispositivo constitucional esta lei deve ser considerada inválida pelo magistrado. “A efetivação das garantias não cabe tão-somente ao poder político, mas também ao jurídico, através do processo interpretativo”(CARVALHO, 2001, p.176).
Mas isto só é possível através de uma visão garantista, que dissocia a mera legalidade (a simples vigência de uma lei) da estrita legalidade, ou seja, da legalidade embasada na Constituição:
A Constituição nessa concepção garantista, deixa de ser meramente normativa (formal), buscando resgatar o seu próprio conteúdo formador, indicativo do modelo de sociedade que se pretende e de cujas linhas as práticas jurídicas não podem se afastar. (ROSA, 2003, p.35, tálico do original).
Desta forma o juiz passa a ter um papel não apenas de “repetidor” das leis, sem questionar o real direito. Ele deixa de observar apenas a forma (a existência e vigência da lei) para observar o conteúdo da lei, e fazer um filtro de legalidade, em que é observado não a mera legalidade formal kelsiana, mas a estrita legalidade formal e material (ou substancial) garantista, na qual uma lei que viola um princípio constitucional deve ser anulada ou cancelada, ela não deve ter efetividade. Este é um corolário não apenas de um estado Domocrático, mas também Constitucional de Direito, em que as leis estão sujeitas ao controle judiciário e social (através de ações dos cidadãos). Desta forma a lei não basta estar vigente, ele deve ter passado pelo crivo da validade substancial:
O paradigma da democracia constitucional não é outro que a sujeição do direito ao direito gerada por esta dissociação entre vigência e validade, entre mera legalidade e estrita legalidade, entre forma e conteúdo, entre a weberiana "racionalidade formal" e "racionalidade material. (FERRAJOLI, 2005, p.37).
Voltando às lições de Jean-Jacques Rousseau, o indivíduo faz um contrato com a sociedade, na qual aquele sede seus poderes para esta, em troca de proteção e uma boa qualidade de vida. O Estado passa a ter o monopólio legítimo do poder. A constituição, então, é a melhor maneira de representar este pacto entre os indivíduos, donos do poder, e a sociedade, para quem estes passam o poder de forma legítima, contanto que este poder seja usado para o bem do cidadão.
O paradigma do Estado constitucional de direito - ou seja, o modelo garantista - não é outra coisa que esta dupla sujeição do direito à lei, que afeta ambas as dimensões de todo o fenômeno normativo: a vigência, a forma e a substância, sinais e significados, legitimação formal e legitimação substancial, ou melhor "racionalidaed formal" e "racionalidade material" weberiana. ( FERRAJOLI, 2006, p. 22).
Desta forma o garantismo, com a sua redefinição de validade, fornece instrumentos para o juiz e os cidadãos freiarem a corrupção do direito e das leis casuísticas inconstitucionais, através dos instrumentos colocados a disposição da população pela Constituição (já citados: ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ect) para, sob uma análise garantista das leis, impedirem que leis inconstitucionais violem os direitos fundamentais e deslegitimem o Direito e suas instituições.