A extinção de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal.

Uma abordagem garantista

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3. A ILEGITIMIDADE DA EXCLUSÃO DE PUNIBILIDADE DO CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A punibilidade é o poder que o Estado detém, de punir o agente do crime, esta punição ocorre em prol da sociedade. Quando ocorre a extinção da punibilidade, acaba-se com este poder repressivo estatal:

As causas de extinção da punibilidade atuam como inibidoras da aplicação da sanção penal, extinguindo o direito que tem o estado de aplicar punição quando da ocorrência de crime de qualquer natureza.(ANDRADE FILHO, 2007, p.149).

O foco deste trabalho está na análise da legitimidade da exclusão de punibilidade do crime de sonegação fiscal, um dos os tipos penais previstos nos crimes contra a Ordem Tributária, este crime consiste em:

I - prestar declaração falsa ou omitir, total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos, taxas e quaisquer adicionais devidos por lei;

II - inserir elementos inexatos ou omitir, rendimentos ou operações de qualquer natureza em documentos ou livros exigidos pelas leis fiscais, com a intenção de exonerar-se do pagamento de tributos devidos à Fazenda Pública;

III - alterar faturas e quaisquer documentos relativos a operações mercantis com o propósito de fraudar a Fazenda Pública;

IV - fornecer ou emitir documentos graciosos ou alterar despesas, majorando-as, com o objetivo de obter dedução de tributos devidos à Fazenda Pública, sem prejuízo das sanções administrativas cabíveis.

A mesma lei (4.729/65) afirmava que se tornava extinta a punibilidade dos crimes de sonegação fiscal quando o agente promovesse o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria, ou seja, a ação administrativa.

A lei n. 5.498 de 1968, modificou tal dispositivo ao estabelecer que:

Art 1º Extingue-se a punibilidade dos crimes previstos na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, para os contribuintes do imposto de renda que, dentro de 30 (trinta) dias da publicação desta Lei, satisfizerem o pagamento de seus débitos na totalidade, ou efetuarem o pagamento de 1ª (primeira) quota do parcelamento que lhes tenha sido concedido.

§ 1º Fica igualmente extinta a punibilidade dos contribuintes, mencionados neste artigo, que tenham pago seus débitos ou que os estejam pagando na forma da legislação vigente.

§ 2º As disposições deste artigo não se aplicam aos contribuintes cujos débitos decorram de operações realizadas através de entidades nacionais ou estrangeiras que não tenham sido autorizadas a funcionar no País.

Com o advento da lei n. 8.137 de 27 de dezembro de 1990 a graduação penal aumentou, prevendo-se penas de reclusão e detenção (a antiga lei previa somente detenção). Como as duas leis versavam sobre semelhante fato, apesar de não haver revogação expressa, alguns entenderam que a primeira lei restou revogada, haja vista que se assim não fosse ocorreria bis in idem, ou seja, poderia um cidadão ser enquadrado em dois crimes semelhantes pela mesma ação delituosa. Porém o art. 98 da lei n. 8.383 de 1991 faz menção expressa de que não houve tal revogação.

A lei n.8.137/90 previu em seu artigo 14 que haveria o benefício da extinção de punibilidade se houvesse o pagamento do tributo ou contribuição social (com acessórios) antes do recebimento da denúncia. Então com esta nova lei passa-se a extinguir a punibilidade estatal contra quem sonegou impostos se o agente efetuar o pagamento antes do recebimento da denúncia. Esta é após a ação fiscal (administrativa), logo, na lei de 1990 o autor do crime tem mais tempo para efetuar o pagamento.

Tal benefício foi revogado com o artigo 98 da lei 8.383 de 30 de dezembro de 1991. Todavia, a revogação durou cerca de quatro anos, pois a lei n. 9.249/95, em seu artigo 34, voltou a prever o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia como sendo causa de extinção de punibilidade.

Além disso, não é necessário que realmente haja o efetivo pagamento para que seja extinto o poder punitivo do Estado perante o criminoso, pois a extinção de punibilidade para quem sonegou imposto dá-se da mesma forma que a extinção do crédito tributário, prevista no artigo 156 do CTN (Código Tributário Nacional):

Art. 156 - Extinguem o crédito tributário:

I - o pagamento;

II - a compensação;

III - a transação;

IV - a remissão;

V - a prescrição e a decadência;

VI - a conversão de depósito em renda;

VII - o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no Art. 150 e seus parágrafos § 1 e § 4;

VIII - a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2 do artigo 164;

IX - a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória;

X - a decisão judicial passada em julgado.

XI - a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei.

A lei n. 9.964 de 2000 introduziu o pagamento através do Refis (Programa de Recuperação Fiscal) que prevê formas facilitadas de parcelamento do crédito tributário. O artigo 9º da lei 10.684 de 30 de maio de 2003 versa que é suspensa a punibilidade enquanto o agente estiver incluído no parcelamento [1], então durante o pagamento não há a punição estatal. E Após o devido pagamento integral a punibilidade extingue-se, conforme o parágrafo segundo, também do artigo 9º, da mesma lei.

O minimalismo penal de Ferrajoli constitui-se num utilitarismo reformado, situa-se numa dimensão intermediária entre o abolicionismo de Baratta e o modelo penal máximo, autoritário, das teorias tradicionais. Ferrajoli critica tanto as teorias justificacionistas tradicionais quanto as teorrias abolicionistas, e vislumbra um minimalismo pautado por um processo de legitimação, não aceitando todo o autoritarismo do direito penal máximo nem abolindo o mesmo. Para o garantismo o direito penal deve se submeter à Constituição Federal, tendo os direitos fundamentais como base, de forma a ter um Sistema Penal mais “garantidor”, justo e legítimo, num Estado Democrático de Direito.

Ferrajoli é contra o modelo penal máximo, repressor, porque ao se analisar as teorias que justificam a pena pela finalidade de retribuição (o criminoso tem livre-arbítrio e deve ser castigado), prevenção (considerando que o criminoso é um mal social), ou ressocialização (o criminoso deve ser (re)inserido na sociedade, a idéia de que ele é um outsider, um estranho na sociedade), vê-se que todas estas teorias não cumprem a finalidade que elas mesmo se comprometem, porque o sistema está corrompido pela ilegalidade.

Já as teorias abolicionistas, como a sociológica (de Baratta) afirmam que a pena tem como finalidade exatamente o não cumprimento da finalidade das primeiras teorias (justificacionistas), ou seja, o Sistema penal não pretende realizar as função que ele declara porque a verdadeira função dele é manter o criminoso fora da sociedade, etiquetando-o, estigmatizando-o. Porém Ferrajoli crê que há uma falácia em deslegitimar todo o Sistema Penal pela razão de entender que a única razão da pena é a de etiquetar a conduta do sujeito “desviante’. O abolicionismo confunde a função seletiva do sistema penal, colocando a única razão da pena como sendo a de selecionar condutas e estigmatizar o apenado.

Para o garantismo, as incongruências, de que fala Baratta, entre a função declarada e a função latente do Direito Penal, resolvem-se por um processo de legitimação garantista do Sistema Penal. Tal legitimação passa pela avaliação das leis, que devem ter seu conteúdo de acordo com os preceitos constitucionais. Para Ferrajoli a pena é um mal, e por ser um mal ela deve ser substanciada constitucionalmente. Já para as teorias justificacionistas a pena é um bem, pois o criminoso é o mal; e para a teoria abolicionista a pena é um mal e deve ser aos poucos eliminada. Esta é, esquematicamente, a diferença entre as teorias minimalistas de Baratta e Ferrajoli. Este último admite que a pena é um mal, e admite a crise do Direito, porém prevê um modo de legitimar o direito e a pena e eliminar apenas as normas do Direito que não estão de acordo com os princípios jusfundamentais. Se é preciso realizar um processo de legitimação do Direito, entende-se necessário que seja verificado se as leis estão de acordo com os preceitos constitucionais, e abolir as normas incongruentes, na forma do minimalismo penal de Ferrajoli. Esta verificação entre norma e constituição:

[...] assegura que a centralidade das pessoas e a garantia de seus direitos sejam não apenas valores externos ou condicionantes axiológicos, mas também vínculos estruturais de toda a ulterior dinâmica política que implica o Estado democrático. (FREIRE, 1997, p. 64.).

O Brasil (conforme preconizado na sua Carta Magna) é um Estado Democrático (e Social) de Direito cuja democracia obedece a uma forma representativa (através do escrutínio) e parcialmente participativa (através dos institutos do referendum, plebiscito e iniciativa popular). Como Estado Democrático de Direito o Estado brasileiro assume certos encargos institucionais e de caráter sócio-político que são irrenunciáveis como condições de perpetuar o que seja legitimamente considerado democrático. Para tanto, a garantia da lei, vale dizer, uma legislação constitucional, eficaz e legítima, é uma das responsabilidades e obrigações fundamentais do Estado Brasileiro.

Num Estado Democrático de Direito as garantias fundamentais, no seu aspecto axiológico, devem gozar do maior grau de aplicabilidade. Como um dos corolários disto, a Constituição assegura o princípio da igualdade, que, como visto anteriormente, é violado pela seletividade penal.

Para Ferrajoli, segundo seu conceito de estrita legalidade visto no capítulo primeiro, uma lei que viola algum princípio fundamental não é legítima. Ela pode ter legalidade formal, porém o seu conteúdo está em desacordo com a Constituição.

A exclusão de punibilidade no crime de sonegação fiscal é mais um instrumento pelo qual o Direito Penal se reafirma, pois a desproporcionalidade intencional existente entre a repressão da sonegação fiscal (ato com maior probabilidade de ser cometido por indivíduo da classe privilegiada) e a repressão de outros crimes como trafico de drogas, furto, latrocínio (crimes cometidos, em sua maioria pelos sujeitos dos grupos sócio-econômicos não privilegiados) faz aumentar ainda mais a desigualdade social. Com isso, o direito penal torna-se, através de movimentos como o da lei e ordem, a maior força do bem (a sociedade dos privilegiados) contra o mal (os marginais).

Desta forma, a exclusão de punibilidade no crime de sonegação fiscal não apenas viola o princípio da igualdade, como também é demonstrado que a intenção da exclusão do direito de punir estatal contra o sonegador é a de manter a desigualdade entre os privilegiados que cometem o crime de sonegação fiscal (e não sofrem pena alguma, se pagarem o imposto sonegado). Já os não privilegiados que cometem crimes de furto, roubo, ect (e mesmo se devolverem o dinheiro ou objeto que furtaram ou roubaram, irão sofrer repressão estatal, visto que a punibilidade do Estado não se extingue nestes casos).

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Como estudado no segundo capítulo, há três graus em que há o etiquetamento, em que se aumenta a desigualdade entre os grupos sócio-econômicos, estes três graus de criminalização são: a formação das leis, a aplicação das leis e a execução das leis. Foi explicado também como nestes três graus de criminalização o Direito Penal tende a imunizar as condutas dos cidadãos dos grupos sócio-econômicos privilegiados, com o objetivo de manter a desigualdade social.

A extinção de criminalidade no crime de sonegação fiscal é uma amostra de como já no primeiro grau de criminalização (no momento em que foi sancionada a lei) já houve a imunização dos privilegiados através da possibilidade de exclusão do jus puniendi estatal se o agente admitir o crime e pagar a dívida.

Uma lei que prevê uma pena leve (ou benefícios como anistia, suspensão ou extinção de punibilidade) para um crime grave está colidindo gravemente com o princípio da proporcionalidade, e isto ocorre intencionalmente a fim de imunizar a conduta de certos indivíduos. Desta forma esta lei viola totalmente o princípio da igualdade, porque torna alguns indivíduos beneficiados com imunidade perante a lei enquanto outros são severamente repreendidos.

Fica claro como o pagamento da dívida como causa de exclusão do jus puniendi nos crimes de sonegação é uma amostra de que foi viola do artigo 5º da Costituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[...].

Tal violação torna tal lei ilegítima, sob o ponto de vista de justiça externa, na acepção garantista.

A Sonegação fiscal, no que diz respeito à sua exclusão de punibilidade, segundo os conceitos de Ferrajoli, revela-se vigente na medida em que passou por um processo legislativo formalmente correto de aprovação e instituição, ela é eficaz porque efetivamente produz os seus efeitos na ordem social ao ser observada pelos seus destinatários. Porém não é válida, porque não atende, sob um ponto de vista axiológico material, aos princípios jusfundamentais, já que ela fere o princípio da proporcionalidade, dentre outros princípios tais como o da eqüidade, justiça social, etc.

Sob o ponto de vista da legalidade estrita, o conteúdo da lei que propõe a exclusão de punibilidade no crime de sonegação fiscal é uma lei sem legitimidade porque não apenas viola o princípio penal da proporcionalidade e o princípio constitucional da igualdade, como a razão desta previsão legal é justamente ser desproporcional e aumentar a desigualdade, como analisado anteriormente.

Montesquieu (1949) já afirmava que a lei tinha uma razão de ser criada, ou seja, tinha seu próprio espírito. Ela é mais que um sistema legalizado, ela deve ser fruto de um fato social. Se as leis são reflexos dos paradigmas sociais, são também instrumentos da busca pelo convívio harmonioso. Logo, as leis se fundamentaram na busca do bem-comum. Se as leis forem, em sua concepção, pautadas pela busca de um bem de interesse exclusivo de um grupo do poder sócio-economicamente privilegiado, elas não estarão cumprindo o seu objetivo, a sua razão de ser, porque a razão das leis seria o oposto do objetivo declarado do sistema penal.

Se a exclusão de punibilidade representa uma vontade, de tornar o direito penal seletivo, de um grupo social, então esta exclusão do jus puniendi é ilegítima, na visão garantista, visto que, a lei deve representar a vontade da sociedade, e não de um grupo dela

Quando o Direito Penal não reconhece todos os homens igualmente, imunizando o crime dos privilegiados, então deve-se acabar com os privilégios a fim de que o Direito volte a ser legítimo.

A exclusão do jus puniendi (direito de punir) do Estado, no caso do crime de sonegação fiscal é não apenas um exemplo, uma prova, de que o Direito Penal é desproporcional e desigual, é também uma das causas de que geram maior desigualdade. Por isso, para mudar-se a desigualdade do sistema penal e tornar o objetivo declarado do sistema penal o real objetivo deste, deve-se eliminar estas incongruências, estes paradoxos, através do movimento de cidadãos conscientes, podendo-se fazer uso do mandado de injunção, por exemplo.

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Sobre os autores
Luiz Henrique Urquhart Cademartori

mestre em Instituições Jurídico-políticas e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada (Espanha), professor do programa de mestrado em Ciência Jurídica e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), consultor do INEP e SESu–MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional, assessor jurídico do Centro de Controle de Constitucionalidade (CECCON) da Procuradoria de Justiça de Santa Catarina, autor de várias obras e artigos sobre Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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