A extinção de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal.

Uma abordagem garantista

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CONCLUSÃO

No primeiro capítulo foi analisado que o garantismo redefine os conceitos de validade vigência e eficácia fazendo um contraponto ao positivismo jurídico de Hans Kelsen. De forma que, para a teoria garantista os termos vigência, validade e eficácia são conceitos diferentes. Para Ferrajoli, se uma norma está em vigência isto não é sinônimo de que a norma é válida, todavia esta diferenciação não ocorre no positivismo, pois na teoria kelsiana para a norma ser válida basta que esteja em vigor, ou seja, se a norma passou pelos procedimentos formais de aprovação de lei no Congresso Nacional esta norma é válida. Já para a teoria garantista isto não ocorre, pois Ferrajoli considera uma norma válida aquela que está de acordo com os direitos fundamentais, aquela que não viola princípios fundamentais previstos na Constituição, por isso o garantismo é visto como uma teoria “baseada na centralidade da pessoa”, quer dizer, na garantia dos direitos fundamentais do cidadão.

A partir dessa redefinição de validade, Ferrajoli cria o conceito de legalidade estrita, ou legalidade substancial, que contrapõe o que ele chama de legalidade meramente formal do positivismo jurídico. A legalidade positivista, sob o ponto de vista do garantismo, é meramente formal porque leva em conta apenas os quesitos formais (normas de procedimento) necessários para uma lei entrar em vigor, e a partir de então esta lei se torna válida.

Ocorre que para Ferrajoli, a legalidade não se trata apenas da forma, mas também do conteúdo. Na teoria garantista, se o conteúdo de uma lei não está de acordo com os direitos fundamentais, então esta lei não tem legalidade. Ela tem uma legalidade apenas formal, mas não real.

Para Ferrajoli, há uma confusão entre legitimidade e legalidade. Esta falha ocorre quando as regras formais, através do legalismo positivista, se sobrepõem à legitimidade, de forma que passam a considerar que toda norma legal (que em sua origem foi feita com base na legalidade) é também legitima.

Há um equívoco perigoso na idéia de que para uma lei ser legítima basta ser vigente. O exemplo mais grave do que este raciocínio pode levar é a questão do nazismo. O imperialismo de Hitler não tinha defeitos em sua legalidade, a constituição nazista seguiu o rito legal para ser considerada Carta Constitucional, porém não era legítima porque não correspondia à vontade de todos, além de ser uma afronta a dignidade da pessoa humana. Tal constituição não deveria ser aceita apenas por ser procedimentalmente bem elaborada, posto que não era legitima. Mas devido ao pensamento positivista clássico as leis sem legitimidade acabam por ser incorporadas ao direito apenas por terem passado pelo crivo do correto procedimento de criação.

Assim, o conceito de legalidade substancial da teoria garantista exige que as leis ilegítimas sejam anuladas do ordenamento. Tais leis não devem ter efetivação. Não devem ser aplicadas porque trazem consigo uma carga de ilegalidade. Neste ponto a teoria de Ferrajoli se aproxima de uma teoria minimalista, pois supõe a supressão das leis que tem validade meramente formal.

Esta supressão das leis inválidas (sob o ponto de vista substancial) pode ser efetivada através do estado Constitucional de Direito, que se caracteriza por um Estado em que os cidadãos e o Poder Judiciário intervêm de forma fazer um filtro de seleção das leis válidas das inválidas. Isto pode ocorrer através de ações populares, ações civis públicas, mandado de Injunção entre outras medidas que o cidadão sozinho ou em grupo (sociedades) pode interferir no direito, eliminando as leis ilegítimas.

Neste Estado Constitucional de Direito o juiz também tem um papel fundamental, pois ele que pode decidir entre aplicar ou não uma medida que está vigente, porém ela é substancialmente inválida por violar norma constitucional.

No segundo capítulo, antes de adentrar na teoria de Alessandro Baratta foi preciso fazer um esboço histórico sobre a evolução do pensamento criminológico, começando pela escola clássica. Esta escola começou com Cesare Beccaria e sua obra “dos delitos e das penas” (1764), ele afirma que a medida da pena é o dano social que o crime causa na sociedade. Depois tem início a escola Positiva com o determinismo biológico de Cesare Lombroso. Este acreditava que o criminoso já nasce predestinado a ser um marginal, por suas características físicas e psicológicas. Desta forma inicia-se uma divisão maniqueísta entre o bem (a sociedade) e o mal (o criminoso). Sendo que a prisão agora é vista como uma medida de reeducação resocialização.

Tanto a Escola Clássica quanto a Escola Positiva compõem o paradigma etiológico, elas estudam o criminoso e o crime e não estudam a sociedade e o direito penal. Em contraponto a este paradigma surge o paradigma da reação social, que surge após a teoria do Labeling aproauch com o livro “outsiders” de Howard Becker. Este novo paradigma foca-se na reação que a sociedade exerce sobre o criminoso. A sociedade taxa certas pessoas e condutas como marginais e então através do etiquetamento ela (a sociedade) faz o criminoso.

Alessandro Baratta afirma que esta seleção de condutas é feita pela classe dominante, ou grupos socio-economicos previlegiados, que selecionam as condutas dos grupos não privilegiados para serem as condutas criminosas repreendidas pelo Estado.

O processo de rotulação do criminoso é realizado por três graus de criminalização: a produção das normas; a aplicação das normas; e a execução das normas. Dentre estas etapas os indivíduos que pertencem aos grupos sócio-econômicos dominantes são imunizados enquanto os sujeitos dos grupos sócio-economicos não privilegiados são mais repreendidos, pelas leis (produção de normas), pela polícia e Ministério Público com ajuda das mídias (aplicação das normas) e pelo sistema Judiciário (execução das normas).

Para Baratta o sistema penal é um mito da igualdade. Porque a função declarada do sistema penal é a igualdade, porém sua função não declarada é aumentar a desigualdade entre os grupos sócio-econômicos, aumentando a criminalidade e justificando mais repressão, majorando a importância do sistema penal, num ciclo.

Segundo a Criminologia Crítica, o sistema penal tende a selecionar as condutas das classes subalternas para serem mais repreendidas e as condutas dos grupos favorecidos são imunizadas.

No terceiro capítulo será demonstrado como a extinção de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal, observada sob a perspectiva da seletividade penal e do conceito garantista de legalidade substancial, é inválida, ilegítima e não condiz com o interesse público.

A extinção de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal viola o princípio da proporcionalidade, no qual a pena de um crime deveria ser proporcional ao dano, porque na sonegação fiscal o criminoso deixa de ir para a cadeia mediante o simples pagamento da dívida. Enquanto isto não ocorre em crimes menos danosos, como o furto, por exemplo.

Esta desproporcionalidade demonstra a seletividade do Sistema penal e trás à tona o mito da igualdade. De forma que, se a pena dos crimes não é proporcional ao dano, mas sim é escolhida de acordo com o status do criminoso, como visto no segundo capítulo, então o direito penal é desigual. E a lei que prevê a exclusão de punibilidade no crime de sonegação fiscal também é desigual.

Se tal exclusão de punibilidade viola o princípio da igualdade, e da justiça social (porque, ao contrário, a lei que prevê este benefício ao sonegador tem como objetivo ser desproporcional, ser desigual e aumentar a injustiça social, justificando o Sistema Penal) então, pela teoria garantista de Ferrajoli, a exclusão de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal não tem validade substancial, porque viola a Constituição federal, então este dispositivo não deveria ter eficácia

Para acabar com a ilegalidade (ou legalidade apenas formal) da exclusão de punibilidade neste crime, deve-se atentar para as formas de efetivação das garantias típicas do Estado Constitucional de Direito, e deve contar também com a participação do juiz no papel de deslegitimador da exclusão de punibilidade.


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Notas

[1] Lei n. 10.684/03, art. 9º: É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.


Abstract: This study aimed to investigate, under the perspective of the General Theory of Legal Guarantees, the issue regards the exclusion of punishment in crimes of tax evasion and the way that Brazilian legislation (National Tax Code and extravagant law) read this situation. The problem raised in this research was asking (under a guarantee perspective, along with the study of the selectivity of Brazilian criminal law) if the extinction of punishment in the current law on tax evasion is valid, lawful and consistent with the public interest. At first glance, it seems, the classification of positivist law in Brazil, legitimate, because it is legal (because it has formal legitimacy) but when you see that the crimes are mechanism used by dominant social groups to select the conduct of subordinates, then the criminal justice system shall not have legitimacy, in fact.To put an end to the false idea of legitimacy of law, must be observed in the case of tax evasion, the principles of equality and proportionality, and ensure reasonable punishment to every crime committed, contrary to what happens today. Today the Penal System punish excessively conduct of the majority and not punish the conduct (also criminal) of groups of the hegemonic power politics. This study serves to propose, or at least denounce, in a rational look and at the same time within a vision of existing law, but mindful of the formulators of the current law does not want to watch, it said, the Constitution under its material aspect, the fallacy that involves a part of the legislative output, more specifically, under criminal law.

Keywords: Guarantee; Legitimacy; Tax Withholding

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Sobre os autores
Luiz Henrique Urquhart Cademartori

mestre em Instituições Jurídico-políticas e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada (Espanha), professor do programa de mestrado em Ciência Jurídica e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), consultor do INEP e SESu–MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional, assessor jurídico do Centro de Controle de Constitucionalidade (CECCON) da Procuradoria de Justiça de Santa Catarina, autor de várias obras e artigos sobre Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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