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O Ministério Público no Tribunal de Contas

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12/02/2006 às 00:00
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Sua atuação restringe-se ao Tribunal de Contas, porém, juntamente com essa Corte, ostenta posição fundamental de guardião do erário e dos interesses da coletividade por meio do exercício do controle externo da administração pública.

Resumo: O presente trabalho disserta sobre o Ministério Público atuante nas Cortes de Contas brasileiras. O Ministério Público especial, como é chamado pela doutrina, foi introduzido no ordenamento pátrio há muitos anos, e hoje é reconhecido como órgão de extração constitucional, ante o artigo 130 da Constituição Federal. Firmado está que é órgão diverso do parquet comum, assim como da Procuradoria-Geral do Estado. Sua atuação restringe-se ao Tribunal de Contas, porém, juntamente com essa Corte, ostenta posição fundamental de guardião do erário e dos interesses da coletividade por meio do exercício do controle externo da administração pública. Abordamos o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de arredar do referido órgão as autonomias financeira e administrativa, ainda que as reconheça para o próprio Tribunal de Contas e Ministério Público ordinário. Concluímos, entretanto, que seria mister a plena independência do parquet especial, principalmente para dar maior liberdade ao membro da instituição quando do exercício de suas atribuições constitucionais. O presente trabalho constitui uma singela contribuição para a difusão dos debates e estudos acerca do tema, visando ao fortalecimento das instituições.


INTRODUÇÃO

Há muito em nosso ordenamento, o Ministério Público especial é um órgão atuante nas Cortes de Contas.

Essas Cortes são essenciais ao controle externo do dinheiro público, realizado pelo Poder Legislativo com seu auxílio.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, acirrada discussão sobreveio acerca da natureza jurídico-organizacional do parquet especial, até o Pretório Excelso se pronunciar à respeito (ADIN 789-1 do Distrito Federal).

Isso foi o que nos despertou empenho.

Em alguns pontos ao longo deste trabalho, nos referimos ao Tribunal de Contas de um modo abrangente, ou seja, de maneira a englobar tanto o Tribunal de Contas da União, quanto os dos Estados e Municípios. Tal posicionamento se deu em virtude da obrigatória observância, pelas unidades federadas, ao modelo ditado pela Constituição Federal – artigo 75.

Assim, assinalamos desde já, que as estruturas das Cortes brasileiras devem observar o paradigma estabelecido na Constituição Federal.

Cabe esclarecimento, ainda, acerca da nomenclatura utilizada: membros do Tribunal de Contas para os Ministros ou Conselheiros, estes últimos no plano estadual e municipal, por se tratar de órgão colegiado; e integrantes dos Tribunais de Contas aos Ministros, Conselheiros, membros do Ministério Público especial, servidores, Ministros-substitutos.

Quanto aos capítulos, no presente trabalho, procuramos expor inicialmente a base histórica, ante a tentativa de proporcionar uma melhor visão dos institutos – Ministérios Públicos (ordinário e especial) e Tribunais de Contas.

Após, passamos à análise do direito comparado, com os modelos clássicos dos Tribunais de Contas, baseada na brilhante tese do Prof. Gualazzi.

Ao analisar os principais aspectos do Tribunal de Contas na Carta Republicana de 1988, examinamos a instituição que abriga o Ministério Público especial e que possui lugar de suma importância na sociedade, ante sua atuante fiscalização financeira, contábil, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração. Fiscalização essa que temos que reforçá-la cada vez mais, na intenção de construir uma sociedade mais democrática e com um melhor aproveitamento do dinheiro público.

Por fim, passamos ao capítulo do Ministério Público especial com seus principais pontos abordados, visando a uma maior compreensão do instituto.


1. ASPECTOS HISTÓRICOS

1.1. MINISTÉRIO PÚBLICO ORDINÁRIO

Antes de abordarmos a parte histórica do Tribunal de Contas e do Ministério Público especial, necessária uma rápida análise, porém relevante, do surgimento e evolução do Ministério Público ordinário.

Apesar de não ser pacífico entre os estudiosos, a origem do Ministério Público está no Egito antigo, há mais de 4.000 anos. Alguns mencionam que o surgimento deu-se em Roma, elevando a importância de suas instituições (os censores, os questores, o fisci advocatum, o defensor civitatis, os procuratores caesaris, o praetor fiscalis, os irenarcha, os praefectus urbis, os praesides os curiosi, os frumentarii e os stationarii) e desprezando completamente a origem egípcia.

No Egito, os procuradores do rei – magiai – exerciam funções parecidas às que desempenha o parquet de hoje. Eram, genericamente, "a língua e os olhos do rei", do Faraó. Suas funções, dentre outras, consistiam em castigar rebeldes, reprimir violentos, proteger os cidadãos, defender certas pessoas, perseguir criminosos, ouvir as palavras da acusação e participar de instruções a fim de se descobrir a verdade.

Outro registro do instituto vem dos Tribunais Babilônicos em 2.000 a.C. – Código de Hamurabi – em que um representante do rei chamado "redoudaiani" era uma espécie de Ministério Público.

Merece menção o período da Grécia clássica, onde teriam existido os temóstetas, responsáveis pelo exercício do direito de acusação, bem como os éforos que formavam um Tribunal idealizado para controlar os atos dos dois reis espartanos e dos gerontes. Todos estes institutos gregos, no geral, se responsabilizavam pela execução da lei e pelo exercício da acusação penal.

Mais adiante, com a Idade Média, na Europa Ocidental, nota-se a figura dos saions germânicos, que atuavam como funcionários fiscais, criados pelo "Imperador do Ocidente Carlos Magno". Defendiam os órfãos, o Erário e os interesses dos incapazes, acusavam os tutores impenitentes e criminosos, interviam na justiça e executavam sentenças. Ainda na Alemanha, existia a figura do Gemeiner Anklager, que, na omissão da vítima, exercia a função de acusador criminal. Os bailios e os senescais tinham a responsabilidade de defender os interesses dos senhores feudais em juízo e também são consideradas figuras com atividades análogas às do Ministério Público. 1

Parte da doutrina refuta algumas das instituições, principalmente a grega e a romana, pois seria pouco provável o surgimento de uma instituição nos moldes do Ministério Público.

Nessa esteira, até aqui, as origens apontadas remontam tão-somente uma proximidade com o Ministério Público; sua verdadeira raiz está na França com a Ordonnance de Felipe, o Belo, em 25 de março de 1303. Foi a "certidão de nascimento" do instituto, a primeira menção expressa num diploma legal – "procureur du roi (les gens du roi)".

Nessa época, os procuradores do rei eram funcionários incumbidos da tutela dos interesses gerais do Estado, seja como acusador público, criminal ou custus legis, um verdadeiro longa manus do soberano, dado o caráter absolutista do governo.

Tal ato da realeza foi uma reação aos senhores feudais, os quais arranhavam a sua soberania, e, através dele, o rei chamou para si o poder supremo, pôs-se acima de todos – "super omnia" – para poder atuar perante o Poder Judiciário.

Assim, deu-se origem à expressão parquet, conforme explicação de Tornaghi:

A fim de conceder prestígio e força a seus procuradores, os reis deixaram sempre clara a independência destes em relação aos juízes. O Ministério Público constitui-se em verdadeira magistratura diversa da dos julgadores. Até os sinais exteriores dessa proeminência foram resguardados; membros do Ministério Público não se dirigiam aos juízes do chão, mas de cima do mesmo estrado ("parquet") em que eram colocadas as cadeiras desses últimos e não se descobriam para lhes endereçar a palavra, embora tivessem de falar de pé (sendo por isso chamados "Magistrature debout", Magistratura de pé). (1976. Apud MACHADO, 1998, p. 14.)

Posteriormente à Ordonnance do Rei Felipe, outras vieram, ainda na fase da Monarquia Absolutista, a fim de ampliar o campo de atuação do Ministério Público. Dentre elas podemos destacar a Ordonnance Criminelle, editada em 10 de agosto de 1670 pelo Rei Luís XIV.

A Revolução Francesa, em 1789, com um caráter nitidamente descentralizador, e a conseqüente legiferação que a procedeu, fez com que o Ministério Público fosse incluído no âmbito do Poder Executivo, definindo-o como agente perante os Tribunais em que atuava.

Com essa inclusão, restou garantida sua independência em relação ao Parlamento e ao Poder Judiciário, inclusive vedando a possibilidade de censura e crítica por parte dos juízes às suas conclusões.

Finalizando a análise francesa, surge em 20 de abril de 1810 o "Cod d’Instruction Criminelle" onde se atribuiu ao Ministério Público uma melhor organização. Importante ressaltar que no referido país, até hoje, o instituto guarda um estreito vínculo com o Poder Executivo, devido à sujeição ao Ministro da Justiça, especialmente no âmbito disciplinar.

No Brasil, as primeiras referências vieram com as Ordenações Manuelinas de 1521, onde o promotor era o fiscalizador da lei e da sua execução.

Com o advento de um governo geral, em 1548, surge o primeiro texto nacional acerca do tema, datado em 09 de janeiro de 1609. O referido texto disciplinava a composição do Tribunal da Relação da Bahia e previa de forma expressa "o Promotor de Justiça".

O Código de Processo Criminal de 1832 foi o primeiro a dedicar tratamento sistemático e abrangente ao instituto. Após, é editado Decreto, em 11 de outubro de 1890, da autoria de Campos Sales, onde foi instituída a independência do parquet.

No âmbito constitucional, a primeira Carta Republicana quedou-se inerte. Já a de 1934 incluiu o Ministério Público nos artigos 95 a 98.

Com a Constituição de 1937 veio o retrocesso e a exclusão, constando, tão-somente, uma referência ao Procurador-Geral da República.

Posteriormente, tida como a mais democrática das constituições até então, a Carta de 1946 trouxe a independência funcional do Ministério Público com inúmeras disposições favoráveis.

A Constituição de 1967 inovou em dois pontos: subordinação do Ministério Público ao Poder Judiciário e regulamentação séria do concurso público para provimento das vagas de promotor – artigo 138, § 1°.

A Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, retirou algumas conquistas e o subordinou ao Poder Executivo, ante a instalação do governo militar. Porém, a Emenda Constitucional n° 07, de 13 de abril de 1977, inovou em outros pontos, como a organização por carreira do Ministério Público Estadual através de lei estadual.

Com o início da abertura para um regime democrático, foi promulgada a lei complementar n° 40, de 14 de dezembro de 1981, que traçou novo aspecto ao Ministério Público.

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Por fim, a Constituição Federal de 1988 consagra o Ministério Público como uma instituição Republicana, tal qual como lançou Campos Sales, sem olvidar das leis orgânicas e demais normas esparsas que ampliam, e instrumentam, e regulam, e garantem o instituto.

E conclui Marco A. L. Caminha (2000):

Enfim, a análise histórica do Ministério Público revela que essa instituição, muda de função ao transitar da sociedade política para a sociedade civil, ou seja, desvincula-se do aparelho coercitivo do Estado (do aparato burocrático responsável pela dominação através da coerção) para integrar, no âmbito da sociedade civil, a parcela dos valores e interesses que compõem uma concepção democrática do mundo e que atuam no sentido da transformação da realidade (os sujeitos políticos coletivos que buscam a hegemonia democrática na batalha ideológica que se trava no seio e através da sociedade civil). Aquele Ministério Público que antes trabalhava exclusivamente na defesa dos interesses do Poder Público, sempre coincidentes com os interesses do seu titular (o Rei) e nem sempre com os do povo, hoje defende os interesses deste, quer sejam coincidentes ou não com os dos titulares do Poder (Administradores).

1.2. TRIBUNAL DE CONTAS

O surgimento do Tribunal de Contas data do ano de 1714, em Berlim, pelo Rei Frederico Guilherme I, da Prússia, denominado Controladoria Geral de Contas. Tal órgão surgiu para evitar o desperdício do dinheiro real e fornecer mais riquezas ao monarca 2.

Outro registro vem da França, em 16 de setembro de 1807, criado por Napoleão Bonaparte, que em pronunciamento constante nos Invalides, de Paris, disse: "Quero que mediante uma vigilância ativa seja punida a infidelidade e garantido o emprego legal dos dinheiros públicos" (Apud MARANHÃO, 1992, p. 327).

Outros países também o instituíram, como a Holanda, Bélgica, Itália, França, Portugal e quase todos os países do mundo civilizado. Porém, temos como modelos clássicos os Tribunais da França, Bélgica e Itália, que merecem análise em capítulo próprio.

No Brasil, no período colonial, ainda sendo uma forma de controle e não propriamente uma Corte de Contas, as Juntas das Fazendas das Capitanias e a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, jurisdicionadas a Portugal, iniciaram a história do Tribunal de Contas no Brasil.

Com D. João VI, foi instalado o Erário Régio em 1808, e criado o Conselho da Fazenda, com atribuição de acompanhar a execução da despesa pública.

Após a proclamação da independência do Brasil, em 1822, o Erário Régio foi transformado no Tesouro pela Constituição de 1824, prevendo-se, então, os primeiros orçamentos e balanços gerais.

Apesar do surgimento da Corte de Contas ter ocorrido após a República, a idéia de sua criação vem do Senado do Império, em 23 de junho de 1826, com um projeto apresentado por Felisberto Caldeira Brandt – Visconde de Barbacena, e de José Inácio Borges. Tal projeto foi combatido por Manoel Jacinto Nogueira da Gama – Conde e, logo depois, Marquês de Baependi.

Muito se discutiu em torno do tema. Para uns, as contas públicas deviam ser examinadas por um órgão independente, porém, outros refutavam esse entendimento, por entenderem que elas podiam continuar sendo controladas por aqueles mesmos que as realizavam. Dentre as personalidades que defendiam a criação da Corte, seja propondo projetos ou por outra forma, destacamos Manuel Alves Branco – Ministro da Fazenda, Pimenta Bueno, Visconde do Uruguai.

Com a queda do Império, a conseqüente proclamação da República e as reformas político-administrativas do Governo Provisório, foi possível tornar realidade, finalmente, o Tribunal de Contas da União.

O iminente jurista Rui Barbosa, à época Ministro da Fazenda, redigiu, em 7 de novembro de 1890, o Decreto nº 966-A, que criava o Tribunal de Contas da União, norteado pelos princípios da autonomia, fiscalização, julgamento, vigilância e energia.

Cabe ressaltar trechos da exposição de motivos do referido Decreto, que conceituava o Tribunal de Contas como sendo:

(...) corpo de magistratura intermediária à Administração e à Legislatura que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.

E mais:

(...) convém levantar, entre o Poder que autoriza periodicamente a despesa e o Poder que cotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com a Legislatura, e intervindo na Administração, seja, não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do Executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente, discrepem da linha rigorosa das leis de finanças. (Apud COTIAS E SILVA, 1999, p. 36)

A Constituição de 1891, a primeira republicana, "instituiu" definitivamente o Tribunal de Contas da União, inscrevendo-o no seu artigo 89. Segundo os dizeres do próprio Rui Barbosa, em artigo publicado no jornal A Imprensa, de 10 de dezembro de 1900, no qual critica a Carta, na Constituição deveria constar "é mantido" em lugar de "é instituído", tendo em vista que o Tribunal era antecedente à Constituição. Vejamos um segmento do referido texto:

A República estava em maré de idéias generosas. Ia a Constituição reforçar o júri com a sanção Constitucional. Ia abolir constitucionalmente a pena de morte. Ia decretar, no pacto fundamental, a substituição da guerra pelo arbitramento. Natural era que lhe sorrisse também, como um atavio a mais para as galas de sua obra, a inovação fiscal destinada a coarctar os abusos do Governo contra o orçamento. Elevou-se, pois, no Tribunal de Contas. Dir-se-ia que se tomara por ele até de ciúmes. Quisera tê-lo criado, para não ter, nesse merecimento, rivais. Tal satisfação do amor próprio lhe não permitia o fato oficial da pré-existência dessa instituição. Tudo podem, porém, as Constituições. A de 1891 eliminou o fato, graças a uma pia mentira, declarando criar a instituição já criada. "É instituído", diz, "um Tribunal de Contas"; quando, se houvesse de ser veraz, como especialmente das Constituições se deve supor, teria que dizer, como a respeito do júri: "É mantido". (Apud MARANHÃO. 1992, p. 36)

Apesar da existência do Decreto nº 966-A, bem como da Constituição de 1891, o Tribunal de Contas somente foi instalado em 17 de janeiro de 1893, devido à atuação do Ministro da Fazenda do Governo Floriano Peixoto – Tenente Coronel Innocêncio Serzedello Corrêa.

Inicialmente, teve competência para o exame, revisão e julgamento de todas as operações relacionadas com a receita e a despesa da União. O mecanismo de fiscalização se fazia pelo sistema de registro prévio.

A Constituição de 1891, que institucionalizou o Tribunal, conferiu-lhe a competência para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade antes de serem prestadas ao Congresso Nacional. 3

A partir daí, teve prosseguimento a história do Tribunal de Contas da União, ora dilatando seu campo de atuação, ora coibindo. Exemplo de restrição ocorreu logo em seguida à instalação do Tribunal pelos Decretos do próprio Governo Floriano Peixoto, que retiravam a competência para impugnar despesas consideradas ilegais, o que acarretou a demissão do Ministro Serzedello Corrêa, conforme sua carta de 27 de abril de 1893:

Esses decretos anulam o Tribunal, o reduzem a simples Ministério da Fazenda, tiram-lhe toda a independência e autonomia, deturpam os fins da instituição, e permitirão ao Governo a prática de todos os abusos e vós o sabeis - é preciso antes de tudo legislar para o futuro. Se a função do Tribunal no espírito da Constituição é apenas a de liquidar as contas e verificar a sua legalidade depois de feitas, o que eu contesto, eu vos declaro que esse Tribunal é mais um meio de aumentar o funcionalismo, de avolumar a despesa, sem vantagens para a moralidade da administração.

Se, porém, ele é um Tribunal de exação como já o queria Alves Branco e como têm a Itália e a França, precisamos resignarmo-nos a não gastar senão o que for autorizado em lei e gastar sempre bem, pois para os casos urgentes a lei estabelece o recurso.

Os governos nobilitam-se, Marechal, obedecendo a essa soberania suprema da lei e só dentro dela mantêm-se e são verdadeiramente independentes.

Pelo que venho de expor, não posso, pois Marechal, concordar e menos referendar os decretos a que acima me refiro e por isso rogo vos digneis de conceder-me a exoneração do cargo de Ministro da Fazenda, indicando-me sucessor. Tenente-Coronel Innocêncio Serzedello Corrêa 4

A Carta de 1934, promulgada na fase de retração do Tribunal, fase esta entre a Revolução de 1930 e o Estado Novo de 1937, trouxe avanços significativos, mas sua reduzida permanência no cenário brasileiro não permitiu que se operassem os efeitos almejados. Os avanços obtidos foram logo derrogados pela Carta de 1937, tendo o Tribunal de Contas quedado às margens, no esquecimento.

Entretanto, após 1945, com o fim da Era Vargas e a nova Constituição de 1946, o instituto retoma suas forças.

Vejamos, então, as Constituições de 1934 a 1946.

No texto supremo de 1934, o Tribunal de Contas era tido como "órgão de cooperação nas atividades governamentais" e possuía oito referências (artigos 99 a 102 e seus parágrafos).

Constitucionalizou a atividade judicante das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e dilatou as competências da Carta anterior, ressalvando que muitas delas o Tribunal já vinha exercendo, ante às leis ordinárias já editadas. Podemos citar algumas, como por exemplo: proceder ao acompanhamento da execução orçamentária – diretamente ou por delegações; registro prévio de qualquer ato da administração pública de que resultasse obrigação de pagamento; manteve o registro dos contratos que interessassem à despesa ou à receita (caso houvesse recusa pelo Tribunal, a execução seria suspensa até pronunciamento do Poder Legislativo – sem o registro, os contratos não resultavam perfeitos e acabados); apresentação de parecer prévio sobre as contas do Presidente, para posterior encaminhamento à Câmara dos Deputados.

Após a Constituição de 1934, surgiram novas leis e decretos regulamentando as disposições, destacando-se o Decreto Legislativo nº 12, de 28 de dezembro de 1934 e a Lei nº 156, de 24 de dezembro de 1935, que se transformou na lei orgânica do Tribunal de Contas em face da nova Constituição (o corpo de Ministros passou a contar com sete membros e fixou-se em quatro o número de auditores, além de dois membros do Ministério Público: um procurador-geral e um adjunto).

A segunda Carta Republicana vigorou somente até 10 de novembro de 1937, com o advento de nova Constituição e o Estado Novo, por Getúlio Vargas.

A Constituição de 37, a "polaca", devido ao texto inspirado no regime fascista europeu polonês, com preponderância do Poder Executivo sobre os demais poderes da República, fez com que o Tribunal de Contas perdesse força, bem como o Congresso Nacional, que havia sido fechado pelo ditador.

O Tribunal de Contas encontrava-se no artigo 114 da Constituição:

Art. 114 - Para acompanhar, diretamente ou por delegações organizadas de acordo com a lei, a execução orçamentária, julgar das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e da legalidade dos contratos celebrados pela União, é instituído um Tribunal de Contas, cujos membros serão nomeados pelo Presidente da República, com a aprovação do Conselho Federal. Aos Ministros do Tribunal de Contas são asseguradas as mesmas garantias que aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Os Ministros continuaram a ser nomeados pelo Presidente, mas agora quem os aprovava era o Conselho Federal – vinculado ao Executivo.

Houve uma omissão quanto ao parecer prévio do Tribunal, ante às contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo. Ocorria que o Presidente as prestava, o Tribunal emitia parecer (não opinativo) e o próprio Presidente da República as aprovava por meio de decreto-lei.

O Decreto-lei nº 7, de 17 de novembro de 1937, dizia que o Tribunal de Contas continuaria a exercer, em caráter provisório, sua jurisdição e competências anteriores, com a recusa a registro devendo ser comunicada ao Presidente da República, e não mais ao Congresso Nacional. Assim, todas as demais atribuições do Tribunal foram mantidas, salvo a exceção mencionada no parágrafo anterior.

Ainda sob a égide na Carta de 1937, surge a nova lei orgânica do Tribunal de Contas, identificada pelo Decreto-lei nº 426, de 12 de maio de 1938, alterado pelo Decreto-lei de nº 475, de 8 de junho do mesmo ano.

Com o fim da Era Vargas e a chegada da Democracia, a promulgação da Constituição de 1946, que colocou o Tribunal de Contas como órgão auxiliar do Poder Legislativo (Capítulo II – Do Poder Legislativo, Seção VI – Do Orçamento – artigos 76 e 77), trouxe poucas inovações em matéria de competências da Corte de Contas. O que ocorreu foi uma reprodução do texto de 1934, restituindo as atribuições suprimidas pelo Estado Novo.

Art. 76 - O Tribunal de Contas tem a sua sede na Capital da República e jurisdição em todo o território nacional.

§ 1º - Os Ministros do Tribunal de Contas serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, e terão os mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos Juízes do Tribunal Federal de Recursos.

§ 2º - O Tribunal de Contas exercerá, no que lhe diz respeito, as atribuições constantes do art. 97, e terá quadro próprio para o seu pessoal.

Art. 77 - Compete ao Tribunal de Contas:

I - acompanhar e fiscalizar diretamente, ou por delegações criadas em lei, a execução do orçamento;

II - julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e as dos administradores das entidades autárquicas;

III - julgar da legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões.

§ 1º - Os contratos que, por qualquer modo, interessarem à receita ou à despesa só se reputarão perfeitos depois de registrados pelo Tribunal de Contas. A recusa do registro suspenderá a execução do contrato até que se pronuncie o Congresso Nacional.

§ 2º - Será sujeito a registro no Tribunal de Contas, prévio ou posterior, conforme a lei o estabelecer, qualquer ato de Administração Pública de que resulte obrigação de pagamento pelo Tesouro nacional ou por conta deste.

§ 3º - Em qualquer caso, a recusa do registro por falta de saldo no crédito ou por imputação a crédito impróprio terá caráter proibitivo. Quando a recusa tiver outro fundamento, a despesa poderá efetuar-se, após despacho do Presidente da República, registro sob reserva do Tribunal de Contas e recurso ex officio para o Congresso Nacional.

§ 4º - O Tribunal de Contas dará parecer prévio, no prazo de sessenta dias, sobre as contas que o Presidente da República deverá prestar anualmente ao Congresso Nacional. Se elas não lhe forem enviadas no prazo da lei, comunicará o fato ao Congresso Nacional para os fins de direito, apresentando-lhe, num e noutro caso, minucioso relatório de exercício financeiro encerrado. (grifo nosso)

As inovações consubstanciam-se no julgamento das contas dos administradores das entidades autárquicas e julgamento da legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, as quais, até então, o Tribunal apenas examinava, sem olvidar do restabelecimento da prestação de contas do Presidente da República.

A Carta fez com que o Tribunal de Contas utilizasse todos os elementos dos sistemas clássicos, baseados nos exames prévio e posterior, veto absoluto e relativo com registro sob protesto, tudo dependendo da natureza dos atos jurídicos e fatos administrativos e seus aspectos. 5

Cabe ressaltar o surgimento de nova lei orgânica – n° 830, de 23 de setembro de 1949, que regulamentou o texto de 46. Ela definiu a Corte como órgão auxiliar do Poder Legislativo na fiscalização da administração financeira da União e principalmente na execução do orçamento.

O Tribunal de Contas passou a se constituir de nove Ministros e a exigência de bacharelado em direito deu lugar ao "comprovado saber, especialmente para o desempenho do cargo".

Além dessas modificações, podemos citar a divisão do Tribunal em câmaras, o concurso de provas e títulos para o cargo de auditor e a introdução do instituto da defesa oral no Tribunal.

Com o golpe militar, em 31 de março de 1964, a conseqüente promulgação da Constituição de 1967, o Decreto-lei n° 199, de 25 de fevereiro de 1967 (lei orgânica do Tribunal de Contas da União), e ainda, a Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, o Tribunal de Contas perdeu competências e teve suas atribuições suprimidas pelo regime autoritário.

Dentre as modificações, podemos citar: retirou-se o exame e julgamento prévio dos atos e contratos geradores de despesas, bem como o julgamento da legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ficando a cargo do Tribunal, tão-somente, a apreciação da legalidade para fins de registro, não dependendo do Tribunal para melhorias posteriores; concedeu-se a possibilidade de efetuar auditorias financeiras e orçamentárias sobre as contas dos três poderes, instaurando-se desde então os sistemas de controle externo (exercido pelo Congresso com o auxílio da Corte de Contas) e interno (exercido pelo Poder Executivo).

Merece destaque o dispositivo referente aos fundos de participação, outra inovação da Carta de 67. O texto fixou que a lei atribuiria à Corte a competência para efetuar o cálculo das cotas estaduais e municipais dos Fundos de Participação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, independente de autorização orçamentária ou de outra formalidade, devendo a entrega efetuar-se mensalmente por intermédio dos bancos oficiais. Porém, tal atividade durou até a edição do Decreto 1.805, de 01° de outubro de 1980.

Art 26 – (...)

§ 1º - A aplicação dos Fundos previstos neste artigo será regulada por lei, que cometerá ao Tribunal de Cantas da União o cálculo das cotas estaduais e municipais, independentemente de autorização orçamentária ou de qualquer outra formalidade, efetuando-se a entrega mensalmente, por intermédio dos estabelecimentos oficiais de crédito. (grifo nosso)

Quanto aos Municípios, a Carta trouxe a possibilidade de intervenção caso não seja prestada contas na forma da lei, bem como o parecer prévio sobre as contas do Prefeito, sem se olvidar de que a criação de Tribunais de Contas Municipais somente era permitida nas cidades com mais de dois milhões de habitantes e renda tributária superior a quinhentos milhões de cruzeiros.

A Emenda Constitucional n° 1 ampliou a competência das Cortes de Contas Estaduais, que exerciam o controle externo das Câmaras Municipais, sendo que tais Câmaras poderiam ser controladas por órgão estadual criado para tal fim.

Antes de adentrarmos na atual Constituição, cabe mencionar o primeiro regimento interno do Tribunal de Contas da União, disposto pela resolução administrativa n° 14, de 12 de dezembro de 1977, a qual consolidou diversas normas regimentais vigentes. Hoje, o regimento interno se traduz na resolução n° 155, de 04 de dezembro de 2002.

Finalmente, pela Constituição Federal de 1988, o Tribunal de Contas da União teve sua jurisdição e competências substancialmente ampliadas. Recebeu poderes para, no auxílio ao Congresso Nacional, exercer a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade e a fiscalização da aplicação das subvenções e renúncia de receitas. O estudo do Tribunal de Contas ante a atual Carta merece capítulo próprio, onde exporemos as peculiaridades pertinentes.

1.3. MINISTÉRIO PÚBLICO ESPECIAL

Diferentemente do Ministério Público ordinário, o órgão atuante nas Cortes de Contas já possuía autonomia funcional desde a sua origem. Seu surgimento ocorreu após a criação do parquet comum, com a edição do Decreto n° 1.166, de 17 de outubro de 1892, cujo artigo 19 assim dispunha, inclusive atribuindo o direito de voto ao representante do Ministério Público: "Art. 19 – O pessoal do Tribunal de Contas compor-se-á de cinco membros, o Presidente e quatro Diretores, com voto deliberativo, um dos quais representará o Ministério Público."

E, ainda, com o Decreto n° 392, de 08 de outubro de 1896, que reorganizou o Tribunal de Contas no Brasil, a fim de lhe atribuir qualidade de órgão próprio, conforme artigo 81, agora, sem o direito a voto:

Artigo 81 – O representante do Ministério Público é o guarda da observância das leis fiscais e dos interesses da Fazenda perante o Tribunal de Contas. Conquanto representante dos interesses da Pública Administração, não é todavia delegado especial e limitado desta, antes tem personalidade própria e no interesse da lei, da Justiça e da Fazenda Pública tem inteira liberdade de ação. (grifo nosso)

Desde o início já se fazia a diferenciação. O Ministério Público da Corte de Contas possuía uma maior independência devido à necessidade de se obter isenção na apreciação das contas, já o parquet comum agia em defesa do Poder Executivo.

Com o passar dos anos, tal separação só se firmou. A legislação que seguiu manteve a instituição integrada à Corte, designando-a como guardiã da aplicação da lei e considerando-a quadro especializado nessa proteção.

As constituições que vieram não trataram do Ministério Público atuante na Corte de Contas. Somente com a Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, o instituto mereceu destaque, ainda que de maneira discreta:

Art 73 - O Tribunal de Contas tem sede na Capital da União e jurisdição em todo o território nacional.

(...)

§ 5º - O Tribunal de Contas, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público ou das Auditorias Financeiras e Orçamentárias e demais órgãos auxiliares, se verificar a ilegalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos, aposentadorias, reformas e pensões, deverá: (...)

Com a atual Constituição, promulgada em 05 de outubro de 1988, o Ministério Público especial encontrou assento constitucional, em especial nos artigos 73, §2°, inciso I e 130.

Art. 73 - O Tribunal de Contas da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96.

(...)

§ 2º - Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão escolhidos:

I - um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento;"

(...)

Art. 130 - Aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta Seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura.

Citamos, ainda, as normas encontradas na lei orgânica do Tribunal de Contas da União – lei ordinária n° 8.443, de 16 de julho de 1992, que dedicou capítulo VI para o parquet especial.

Em relação à investidura, passaremos a analisar a evolução histórica do órgão. 6

Na primeira República, o promotor era demissível ad nutum, porém, os Decretos 3.421, de 12 de dezembro de 1917, e 13.247, de 23 de outubro de 1918, garantiam-lhe estabilidade após dez anos. Novamente, agora através do Decreto 15.770, de 01° de novembro de 1922, restaura-se a investidura precária.

Com o advento da Carta de 1934 a incerteza prosseguiu até a lei 830, de 23 de setembro de 1949, que previu a investidura de caráter efetivo, que durou por quase vinte e cinco anos.

Já o Decreto-lei n° 1.313, de 28 de fevereiro de 1974, em seu artigo 7°, caput, assim dispôs: "O cargo de Procurador-Geral junto ao Tribunal de Contas da União é de provimento em comissão."

Os Procuradores tiveram o mesmo tratamento – Decreto-lei n° 1.660, de 24 de janeiro de 1979, artigo 3°, § 1°, que assim dispunha:

Artigo 3º - Os cargos de Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União ficam transformados em cargos de Subprocurador-Geral, com o vencimento e a representação mensal fixados no Anexo I deste Decreto-lei.

§ 1º - Respeitada a situação de seus atuais ocupantes, os cargos transformados nos termos deste artigo serão providos em comissão quando vagarem.

Sob a égide da Carta de 1967, Emenda Constitucional n° 01 de 1969 e as leis orgânicas dos Tribunais de Contas dos diversos Estados, observamos a atuação do Ministério Público especial nas Cortes de Contas. Citamos alguns exemplos.

Em São Paulo, assim como na maioria dos Estados, os interesses da Administração no Tribunal de Contas eram defendidos pela Procuradoria-Geral do Estado, em conformidade com a Constituição Estadual.

Já o Tribunal de Contas do Distrito Federal, desde sua instituição, em 13 de abril de 1960, lei n° 3.751, atuou de acordo com o verdadeiro órgão do Ministério Público especial e sua real posição institucional. O cargo de Procurador-Geral é de provimento efetivo, bem como o dos Procuradores, que são submetidos a concurso, público, de provas e títulos.

A ampliação da atividade do Ministério Público ordinário, do Tribunal de Contas, e, conseqüentemente, do Ministério Público especial foi trazida pela Carta de 88, e isso fez com que aumentassem as discussões em torno do tema deste trabalho. É o que veremos no capítulo próprio.

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Sobre o autor
André Santana de Souza

Assistente jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Público (Escola Paulista da Magistratura SP), Pós graduando em Direito Penal (EPM SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, André Santana. O Ministério Público no Tribunal de Contas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 956, 12 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7955. Acesso em: 29 mar. 2024.

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