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O caso da Guerra Civil da antiga Iugoslávia e a Implantação do Tribunal Penal Internacional

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10/03/2020 às 11:45
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5 A Implementação de uma Corte Penal para Julgar os Culpados

Nesse contexto, pela Resolução da ONU nº. 827, em 25 de maio de 1993, sob a pressão da comunidade internacional, com a Guerra da Bósnia ainda ocorrendo, o Conselho de Segurança da ONU, incapaz de acabar com a guerra, estabeleceu oficialmente o Tribunal Penal Internacional para a extinta Iugoslávia.

Sediado em Haia, nos Países Baixos, este Tribunal ad hoc (literalmente, “para isso”, isto é, com a finalidade de julgar as atrocidades cometidas durante as guerras que assolaram esse território) foi o primeiro exemplo contemporâneo de estabelecimento de um tribunal penal internacional, bem como possui competência para julgar quatro categorias de crimes praticados no território da ex-República Federal da Iugoslávia a partir de 1º de janeiro 1991, durante uma série de conflitos, que resultou na sua divisão política e territorial, senão vejamos: a) graves violações às Convenções de Genebra de 1949; b) violações às leis e costumes da guerra (art. 3º); c) crimes contra a humanidade (art. 5°); e, d) genocídio (art. 4º).

Oportuno mencionar que a jurisdição do Tribunal foi estendida para crimes cometidos durante o conflito no Kosovo em 1998 e 1999, sendo que sua sentença máxima é a prisão perpétua.[18]

O art. 2º da Resolução 827/1993 da ONU, que o estabeleceu, não define data limite para o término da atuação desse Tribunal. Esse dispositivo se restringe a mencionar que essa data será posteriormente determinada pelo Conselho de Segurança. Ou seja, irá encerrar seus trabalhos quando todos os casos que estiverem sob sua jurisdição forem devidamente julgados. Por isso que o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia ainda continua em pleno exercício de sua função única, qual seja, acusar as pessoas responsáveis por violações graves das leis humanitárias internacionais cometidas no território da ex-Iugoslávia.

Vale ressaltar que este Tribunal somente julga pessoas, estabelecendo, como norma fundamental, a responsabilidade pessoal, não havendo responsabilidade penal de pessoas jurídicas.[19]

Aliás, esse é um traço característico do referido Tribunal. Isto porque o sujeito ativo de crimes internacionais (a exemplo de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra)  são indivíduos, sobretudo chefes de Estado e comandantes de exércitos. Daí a responsabilidade penal pessoal. Ainda que em nome do Estado que representam ou da corporação que lideram, o fato é que os autores são pessoas físicas e é isso que deve ser considerado, sob pena de imperar a impunidade.

Muito embora tenha sido alvo de críticas no que se refere a sua competência para julgar os acusados, posto que o Tribunal foi criado por Resolução do Conselho de Segurança da ONU e não mediante um tratado internacional,[20] o mesmo inovou ao prever a punibilidade de delitos praticados durante conflitos armados internos, os quais não eram tutelados pela legislação penal internacional até então.

Outro dos méritos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia reside no fato de prever a punibilidade para oficiais do alto escalão do Estado por atos praticados no exercício de suas funções oficiais, independente de desfrutarem de quaisquer imunidades.

Dentre os indiciados perante o Tribunal, o julgamento de maior destaque, todavia, foi o de Slobodan Milosevic, ex-presidente da Iugoslávia, conhecido como “o carniceiro dos Balcãs”, acusado de cometer genocídio e crimes contra a humanidade na Bósnia e crimes contra a humanidade em Kosovo e na Croácia, em razão de uma campanha de “limpeza étnica” realizada durante os 13 anos que se manteve no poder. Primeiro ex-chefe de Estado a sentar-se no banco dos réus de um Tribunal Internacional, o julgamento de Milosevic foi apontado como um marco no campo jurídico internacional, posto que nunca um ex-presidente de um país havia sido julgado antes por crimes que afrontam a comunidade internacional.[21]

Tendo em vista que Milosevic não era acusado de cometer homicídio com as próprias mãos, restou à acusação demonstrar sua responsabilidade de comandante dos processos de limpeza étnica e do planejamento dos crimes contra a humanidade ou, sabendo deles, nada fazendo para impedi-los. Argumento que, de fato, veio a ser comprovado ao longo do processo.

Em 11 de março de 2006, Milosevic foi encontrado morto em sua cela, no centro de detenção do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. Alguns reclamam que isso não é justo, posto que ele morreu como Chefe de Estado e político e não como um criminoso. “A morte em circunstâncias obscuras do ditador”, antes de ser julgado por seus atos bárbaros, “frustrou grande parte das esperanças a respeito do julgamento, no entanto o falecimento no cárcere” do responsável pelos maiores genocídios na Europa depois da Segunda Guerra Mundial “pode ainda ser visto como um exemplo e uma advertência, para os governantes de todo o mundo, de que não estarão fora do alcance da justiça internacional”.[22]

Além de Slobodan Milosevic, o Tribunal julgou Ratko Mladic e Radovan Karadzic (esses dois últimos acusados de genocídio no cerco de Sarajevo e de realizar o massacre de 8.000 homens e meninos na cidade bósnia de Srebrenica, em julho de 1995), respectivamente o antigo Presidente da República Socialista da Sérvia e Presidente da República Federativa da Iugoslávia entre 1997 e 2000; Chefe do Exército servo-bósnio da República Srpska; e o Presidente da República Srpska.

Radovan Karadzic foi condenado a 40 anos de reclusão, enquanto Ratko Mladic teve seu veredicto final em novembro de 2017, com a condenação à prisão perpétua.

No total, 161 pessoas foram presas e julgadas, dos quais cerca de 77% era de etnia sérvia. Desses 161, 18 indivíduos foram absolvidos, 80 sentenciados, 13 tiveram seus casos transferidos para outro país (Croácia, Bósnia ou Sérvia), 36 procedimentos terminaram (seja devido às acusações terem sido retiradas ou pela morte dos acusados durante o processo) e, quando da elaboração deste artigo, 12 ainda estavam em desenvolvimento.[23]

De acordo com o relatório da OTAN em 2006, de modo geral a experiência do Tribunal foi bastante positiva:

Criou um precedente na justiça penal internacional e lançou as bases para a criação posterior do Tribunal Penal Internacional. Ele acusou um chefe de Estado em exercício, Slobodan Milosevic, pela primeira vez. Tem contribuído para o desenvolvimento do direito internacional humanitário e definiu os seus conceitos-chave: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Ele lançou luz sobre alguns dos episódios mais negros na história recente da Europa e tem dado às vítimas uma voz. Por fim, tem contribuído, direta e indiretamente, para o reforço do Estado de direito e do sistema legal nos países dos Bálcãs.[24]

Em que pesem as críticas, via de regra, a experiênca angariada com o Tribunal Penal Internacional para a ex Iugoslávia foi extremamente proveitosa, haja vista que ao mesmo tempo em que respondeu com a devida punição os agentes responsáveis pelos atos monstruosos praticados durante a Guerra Civil da Iugoslávia, desencorajara a prática de atrocidades semelhantes às que escreveram com poças de sangue as páginas da História recente do território dos Bálcãs.

Nesse sentido, pertinente a concepção de Natasha Zupan (apud CARNEIRO, 2016, p. 50), para quem o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia é concebido como

Um dos mecanismos-chave – se não o mecanismo-chave– de justiça de transição desenvolvido pela comunidade internacional. O Tribunal tem objetivos de longo-alcance, que incluem [trazer] pessoas responsáveis por sérias violações da lei humanitária internacional no território da antiga Iugoslávia desde 1º de janeiro de 1991 à justiça; [prover] justiça às vítimas; [coibir] futuros crimes; e [contribuir] para a restauração da paz ao promover a reconciliação na antiga Iugoslávia.


6 Conclusão

Um dos maiores dramas da Europa Oriental no final do século XX teve como palco a Iugoslávia.

As guerras da Iugoslávia, ocorridas entre 1991 e 1999, compreendem a Guerra de Independência Eslovena (1991), a Guerra de Independência da Croácia (1991-1995), a Guerra da Bósnia (1992-1995) e a Guerra do Kosovo (1996-1999), e são consideradas os conflitos mais violentos que assolaram o território europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

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Nada obstante a Iugoslávia se encontrasse oficialmente unificada, sob a estigma da “montagem” de um país regido por uma ditadura severa e opressora, o fato é que as pessoas não estavam unidas como uma nação, devido à diversidade étnica e social existente. Nesse sentido o posicionamento de Paulo (2012):

Devido à variedade étnica, a unificação impediu que o sentimento de nação se desenvolvesse pelo território iugoslavo, ocasionando inúmeras divergências tanto no campo social quanto no político.

A existência desse caldeirão de etnias transformava em uma “colcha de retalhos” o território iugoslavo. Motivo pelo qual é forçoso concluir que a Iugoslávia só existiu por conveniência, tratou-se, pois, de uma construção ideológica meramente para fins políticos. Destarte, a República Federal Socialista da Iugoslávia foi constituída e preservada unicamente enquanto foi possível tirar poveito dela, tornando-se um estorvo quando não mais se adequou aos propósitos para os quais fora criada, isto é, quando a secessão se tornou a única alternativa às províncias e Estados que a compunham.

A menina Zlata Filipovic (apud MATHIAS; AGUILAR, 2012, p. 448), habitante de Sarajevo quando a guerra começou, com muita propriedade, apresentou em seu livro sua visão da guerra:

O tempo inteiro tento entender essa sacanagem que é a política. [...] Tenho a impressão de que política quer dizer sérvios, croatas, muçulmanos. Homens. Que são todos os mesmos. Que se parecem todos. Que não têm diferenças [...] Entre meus colegas, entre nossos amigos, em nossa família, há sérvios, croatas, muçulmanos. O resultado é um grupo muito variado de pessoas e eu jamais soube quem era sérvio, quem era croata, quem era muçulmano. Hoje a política enfiou o nariz na estória toda. Marcou os sérvios com um S, os muçulmanos com um M e os croatas com um C. A política quer separá-los. E para escrever estas letras ela usou o pior, o mais negro dos lápis. O lápis da guerra, que só sabe escrever duas palavras: infelicidade e morte.

Talvez por isso, ainda hoje, as feridas não cicatrizaram por completo. As cenas aterrorizantes da guerra ainda estão muito vivas na memória de quem assistiu a essa barbárie. Sobre o período da guerra, há os que aconselham: “O melhor é esquecer”. No entanto, nem todos conseguem. E alguns simplesmente não querem.

Nessa toada, Tito buscou uma irmandade e unidade entre os eslavos, porém não conseguiu estruturá-la devido às feridas existentes ainda não cicatrizadas.

Por outro lado, segundo já exposto anteriormente, as guerras que ocorreram na Iugoslávia não se trataram de conflitos entre grupos étnicos, mas sim de uma guerra multi-étnica que se disputou, também, através dos corpos, lançando-se mão da violência sexual. Assim, os estupros eram sistemáticos e buscavam a chamada “limpeza étnica”.

Como se vê, cometer crimes internacionais requer não só generalização e sistematização, mas também que o mundo inteiro olhe e não faça nada. Começar a agir desde já é de fundamental importância para que um dia haja justiça contra os mais terríveis e asquerosos crimes já praticados contra a humanidade. Portanto, a experiência angariada com o Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia foi amplamente válida e aceita.

De fato, deve-se tentar. Tentar e se tentarmos juntos e por muito tempo esse dia chegará. Porventura crer em tal seria utopia? Que seja. Já dizia Eduardo Galeano que a utopia, conquanto nunca seja alcançada, possui exatamente essa finalidade: fazer com que não deixemos de caminhar.

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Sobre a autora
Rosemary Gonçalves Martins

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE (2013). Especialista em Conflitos Internacionais e Globalização pela UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo (2019).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Rosemary Gonçalves Martins. O caso da Guerra Civil da antiga Iugoslávia e a Implantação do Tribunal Penal Internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6096, 10 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79641. Acesso em: 18 abr. 2024.

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