Palavras chaves: prescrição; ação civil pública; ressarcimento ao erário.
Resumo: a prescrição é um instituto típico das tutelas condenatórias, e como tal, amplamente utilizável nas ações civis públicas promovidas para reparação dos danos causados ao erário. Muito embora haja o disposto no art. 37, § 4o, da Constituição Federal, que dá margem a uma interpretação gramatical e simplista, no sentido de serem as ações ressarcitórias de danos ao erário imprescritíveis, a proposta desta pesquisa é demonstrar que se faz necessário uma interpretação conglobante, lógica, histórica, sistemática, e, sobretudo razoável, no sentido de se considerar tais ações como igualmente a mercê da prescrição.
Sumário: 1. Introdução; 2. O que é prescrição?; 2.1. Do fundamento da prescrição; 2.2. As diferenças entre prescrição e decadência; 2.3. Das ações imprescritíveis; 3. As ações de reparação de danos causados ao erário; 3.1. Da Imprescritibilidade das ações civis públicas ressarcitórias ao erário; 3.2. Da prescritibilidade das ações civis públicas ressarcitórias do erário, num prazo de 05 anos; 4. Considerações finais; 5. Bibliografia.
1. Introdução
O tema da prescrição, em qualquer ambiente jurídico, é extremamente complexo e discutível. Não sem razão Washington de Barros Monteiro [1] pondera que "dentre todos os institutos jurídicos, o da prescrição foi provavelmente o que mais se prestou às especulações filosóficas. Já na antiguidade, divergiram a seu respeito os pontos de vista".
Instituto disciplinado em regra pelo Direito Civil [2], repercute em todas as matérias jurídicas, inclusive quando se fala de interesse da Fazenda Pública. Deveras, as ações que a Fazenda pode promover, e as ações que podem lhe ser promovidas, contam sempre com prazos prescricionais.
No entanto, há várias posições, sobretudo nos quadros do Ministério Público nacional, notadamente em arrazoados de ações civis públicas de indenização por atos de improbidade causadores de danos ao erário, entendendo que tais pedidos são imprescritíveis. Sustentam essa tese por uma interpretação literal da Constituição Federal, que no seu art. 37, § 5º, prevê:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
........
§ 5º. A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
A tese defendida pelos adeptos da teoria da imprescritibilidade das ações de danos causados ao erário, em casos de improbidade administrativa, é aparentemente simples: a Constituição disse que a lei estabeleceria os prazos de prescrição para atos ilícitos, "ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento".
Logo, todo ato de improbidade administrativa seria passível de prescrição, cujos prazos seriam fixados em lei infraconstitucional. No entanto, ressalva-se "as respectivas ações de ressarcimento". Portanto, estas ações seriam imprescritíveis.
A proposta deste trabalho é demonstrar que a intenção do constituinte não foi criar uma ação imprescritível. Neste passo, as ações indenizatórias por danos causados ao erário, em razão de atos de improbidade administrativa, são, sim, passíveis de prescrição.
Para tanto, num primeiro momento haverá a busca dum conceito de prescrição, diferenciando-a dos demais institutos similares.
Após isso, far-se-á uma análise dos atos de improbidade administrativa que podem causar danos ao erário.
E, finalmente, conjugando os dois institutos, defender-se-á a tese da prescritibilidade das ações deste tomo.
2. O que é prescrição?
A palavra prescrição procede do vocábulo latino praescriptio, derivado do verbo praescribere, formado de prae e scribere, com a significação de escrever antes ou no começo (LEAL, 1939, p. 09).
Sua origem aparentemente remonta à romana Lei Aebutia, no ano 520 D.C. Nesta época [3], quando um litigante levava uma pretensão para ser resolvida ao pretor romano, este designava um magistrado para solucionar o litígio, que predeterminava a orientação do julgamento de acordo com as fórmulas preordenadas. Pela Lei Aebutia, o pretor foi investido do poder de criar ações e fórmulas que não tivessem previsão no direito honorário, fixando, contudo, um prazo para sua duração, dando origem as chamadas ações temporárias. Antônio Luiz da Câmara Leal (1939, p. 10) explica:
Ao estatuir a fórmula, e a ação era temporária, ele fazia preceder de uma parte introdutória, em que determinava ao juiz a absolvição do réu, se estivesse extinto o prazo de duração da ação. Essa parte preliminar da fórmula, por anteceder a esta, se dava a denominação de praescriptio
Como se vê, esse termo praescriptio nenhuma relação direta tinha com o conteúdo da determinação do pretor, mas derivava do caráter introdutório dessa determinação, porque era escrita antes, ou o começo da fórmula.
Deste modo, caso um litigante demandasse uma "ação temporária" cujo prazo estivesse expirado, o pretor sequer enviava a questão para o magistrado, "pré-escrevendo" a inexistência da ação. Eis o embrião da prescrição extintiva de direitos moderna.
Modernamente, em linhas gerais, entende-se a prescrição extintiva como a exceção que alguém tem contra aquele que não exercitou durante certo tempo fixado em regra jurídica a sua pretensão [4]. Contudo, esse conceito é recente. Muito se discutiu sobre as conseqüências advindas pela prescrição. A doutrina civilista alemã do início do século XX, por exemplo, advogava a tese de que a prescrição fulminava o direito às ações judiciais, como direito público, subjetivo, autônomo e abstrato. Já os civilistas italianos e franceses eram adeptos da tese de que a prescrição aniquilava o próprio direito em tese. [5]
Todavia, Pontes de Miranda (1971, v. VI, p. 131) já alertava que prescrição atingia, na verdade, a pretensão a uma ação válida. A propósito:
A prescrição não atinge, de regra, somente a ação; atinge a pretensão, cobrindo a eficácia da pretensão e, pois, do direito, quer quanto à ação, quer quanto ao exercício do direito mediante cobrança direta (aliter, alegação de compensação, que depois estudaremos), ou outra manifestação pretensional.
Portanto, a prescrição não fulmina nem o direito, nem o exercício de uma ação, posto que pode haver ações de direitos prescritos, que embora "inválidas", são possíveis. Tanto é assim que se alguém paga judicialmente uma dívida prescrita, o juiz não pode conhecer de ofício essa prescrição [6], nem tampouco aquele que pagou a dívida prescrita poderá recobrá-la [7]. Neste passo, mesmo tendo havido prescrição, houve ação, e inclusive com efeitos concretos no mundo fático.
Ademais, conforme o Código Civil brasileiro (Lei 10.406, de 10-01-2002), "violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206" [8]. Neste desdobramento, o legislador, categoricamente, disse que a prescrição fulmina a pretensão à preservação de um direito.
Essa proposta legislativa vem ao encontro da melhor doutrina, que reconhece na prescrição a perda à pretensão [9] valida do exercício judicial de um direito pelo decurso do prazo fixado em lei.
2.1. Do fundamento da prescrição
Muito se discute sobre o fundamento jurídico da prescrição. Para Coviello, seu principal fundamento é a força destruidora do tempo, ao passo que Savigny estabelece que a prescrição se fulcra no castigo à negligência (apud LEAL, 1939, p. 21).
Outros, como Carvalho Mendonça, preferem a tese de que na prescrição ocorre a presunção de abandono ou renúncia do direito (LEAL, op. cit., p. 22). Essa negligência temporal equiparar-se-ia à renúncia da própria pretensão, pois as relações humanas devem ter caráter temporal (VALLE, 1918, p. 06). Neste sentido as lições de Numa P. do Valle (op. cit., p. 06):
Eis como a prescripção tende a legitimar o que é normalmente contrário ao direito. Ella suppõe no titular do credito a inércia e o abandono de seu direito. Estabelece-se, então, uma contradição entre o prescribente e o sujeito activo da obrigação, de modo tal que o direito d’aquelle augmenta á medida que o deste decresce e attinge o seu maximum quando o do outro se anulla inteiramente.
Poder-se-ia argumentar também, ainda que empiricamente, que a prescrição visa proteger o devedor ou mesmo diminuir as demandas.
Antônio Luiz da Câmara Leal (1939, p. 23) preconiza que os fundamentos da prescrição no direito romano eram basicamente três: "necessidade de fixar as relações jurídicas incertas, evitando as controvérsias; castigo à negligência; e interesse público".
Ao nosso sentir, a prescrição, discutida de há muito, tem inegável e especial efeito pacificador. O seu fundamento maior é a necessidade e a ordem social (VALLE, 1918, p. 07). Conforme o já citado Pontes de Miranda (Loc. cit), os prazos prescricionais existem para garantir a paz social:
Os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica. Não destroem o direito, que é; não cancelam, não apagam as pretensões; apenas, encobrindo a eficácia da pretensão, atendem à conveniência de que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a acionabilidade. Qual seja essa duração, tolerada, da eficácia pretensional, ou simplesmente acional, cada momento da civilização o determina. Os prazos do Código Comercial correspondem a concepção da vida já ultrapassada; porém o mesmo já se pode dizer de alguns prazos do Código Civil. A vida corre célere, — mais ainda na era da máquina.
No mesmo sentido Maria Helena Diniz (1991, p. 202) [10], para quem "esse instituto foi criado como medida de ordem pública para propiciar segurança às relações jurídicas, que seriam comprometidas diante da instabilidade oriunda do fato de se possibilitar o exercício da ação por prazo indeterminado."
Segundo Planiol (apud VALLE, 1918, p. 11), o motivo que levou a se introduzir a prescrição extintiva foi o desejo de impedir processos difíceis de serem julgados, pois no interessa da ordem e da paz social convém liquidar o passado e evitar contestações sobre contratos e fatos cujos títulos se perderam e cuja lembrança se acha apagada da memória.
Assim, a rigor, a prescrição existe para garantir a paz social. Portanto, a existência de prazos imprescritíveis é temerária, na medida em que isso traz ínsita a insegurança jurídica.
O exercício de um direito não pode ficar pendente indefinidamente. Deve ser exercido pelo titular dentro de determinado prazo. Não ocorrendo isso, perde o titular a prerrogativa de exigir uma pretensão válida de seu direito (VENOSA, 2002. v. I., p. 611).
2.2. As diferenças entre prescrição e decadência
Instituto similar, porém inegavelmente distinto, é a decadência. Há inegável confusão entre estes tipos jurídicos. Tanto é assim que o antigo Código Civil brasileiro (Lei 3071, de 01-01-1916) tratava de ambos sob o nome comum de prescrição, sequer fazendo menção sobre a decadência.
No entanto, a prescrição não é o mesmo que a decadência.
O vocábulo decadência provém do verbo latino cadere, que significa cair. É formado pelo prefixo de, que implica dizer de cima; também pela fórmula verbal cadere, que como visto significa cair; e, finalmente, pelo sufixo entia, que denota ação ou estado. Deste modo, literalmente, decadência significa dizer ação de cair ou estado daquilo que caiu.
Conforme a linguagem jurídica, foi introduzida para indicar a queda ou o perecimento do direito pelo decurso do prazo fixado ao seu exercício, sem que seu titular o tivesse exercido. Apresenta um ponto em comum com a prescrição: ambas se fundam na inércia continuada de seu titular durante certo lapso de tempo. Daí serem muitas vezes confundidas.
No entanto, a prescrição extingue a pretensão ao direito de ação válida, ao passo que a decadência extingue o próprio direito.
Outrossim, o prazo decadencial, que não se suspende, interrompe e nem possui óbices, inicia-se desde o momento em que o direito nasce; já a prescrição, cujos prazos são passíveis de impedimentos [11], suspensões [12] e óbices [13], somente inicia-se quando o direito é violado, ameaçado ou desrespeitado, porque esse será o momento em que nasce o direito à pretensão válida, contra a qual a prescrição se dirige.
Um terceiro aspecto que merece consideração: a decadência supõe um direito que, embora nascido, não se tornou efetivo pela falta de exercício; ao passo que a prescrição supõe um direito nascido e efetivo, mas que pereceu pela falta de proteção pela ação, contra a violação sofrida (LEAL, 1939, p.123).
Ainda é digno de nota que os prazos decadenciais podem ser estipulados livremente pelas partes [14], ao passo que os prazos prescricionais estarão sempre fixados em lei, sendo que se não houver prazo específico aplicar-se-á a regra geral do art. 205, do Código Civil, que prevê: "a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor."
Quanto à atuação judicial, o juiz poderá conhecer de ofício a prescrição somente no interesse de incapaz [15]; já no respeitante à decadência, o juiz poderá decretá-la oficiosamente quando o prazo estiver fixado em lei [16].
Cabe destaque o fato de que a prescrição não corre contra determinadas pessoas (ex: entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal [17]; entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar [18]; contra os menores de dezesseis anos [19]; contra os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos [20] etc.). Por seu lado, a decadência corre contra todos, indistintamente.
Admite-se, no entanto, ser extremamente difícil no caso concreto reconhecer-se quando o prazo é prescricional, ou quando é decadencial, o que, com o advento do novo Código, restou um pouco mais facilitado.
Agnelo Amorim Filho [21] partiu da premissa de que para se reconhecer se um prazo é decadencial ou não, basta verificar qual a tutela judicial que o protege. Assim, são prescritíveis as ações condenatórias, sendo que as desconstitutivas ficam a mercê da decadência, e as declaratórias livres dos dois institutos.
Deste modo, se o direito é protegido mediante uma ação com carga predominantemente declaratória, seria imune à prescrição ou à decadência.
Fosse o direito protegido mediante tutela condenatória por excelência, falar-se-ia de prescrição, ao passo que se o direito fosse defendido mediante tutela constitutiva ou desconstitutiva, o instituto era a decadência.
Todavia, desde o Código Civil de 2002, há forte tendência em se admitir que os prazos prescricionais estariam dispostos numerus clausus no art 206, deste texto. Todo e qualquer outro prazo que estivesse lançado fora deste rol seria prazo decadencial [22].
2.3. Das ações imprescritíveis
Pontes de Miranda (Op. cit, p. 132), ao tratar da eventual possibilidade da imprescritibilidade de ações, disse que tal expediente é exceção excepcional, cabendo apenas em casos muito sui generis. A propósito:
Imprescritibilidade.
Com o perdão da extensão da citação, extrai-se desse posicionamento importantes questões, como a de que são imprescritíveis apenas as pretensões declaratórias. Note, por exemplo, que ele diz: "(são imprescritíveis) a pretensão oriunda de direitos registrados no registro de imóveis, exceto a pretensão à reparação do dano (art. 177, 1a. parte)."
Note-se, ademais, que mesmo admitindo a pretensão da imprescritibilidade da ação declaratória em sede de registro público, ele opõe como exceção a essa prescrição a reparação do dano (ação indenizatória).
Em outro momento, Pontes de Miranda propõe: "(são imprescritíveis): d) as pretensões que nascem das relações de vizinhança (arts. 554-588), exceto as de indenização nos casos dos arts. 561, 570, 579, 580-583 e 587 [23]"
Outra vez mais o autor deixa de fora a pretensão indenizatória (reparatória de danos) do rol das ações imprescritíveis.
Ao debruar-se sobre o tema da imprescritibilidade, Silvio de Salvo Venosa (2002, V. I., p. 617.) advoga a tese de que há, sim, relações jurídicas incompatíveis, inconciliáveis por sua própria natureza com a prescrição. E cita exemplos referentes aos direitos da personalidade (vida, honra, nome, liberdade etc) e as chamadas ações de estado de família. Inclui, ainda, os chamados direitos facultativos ou potestativos [24]. Em nenhum momento arrolou nenhum interesse reparatório da Fazenda Pública como imprescritível, ou mesmo questões de fundo reparatório. [25]
Cabe repetir que com o advento do novo Código ficou ainda mais clara a distinção entre prescrição e decadência [26]. Conforme Agnelo Amorim Filho [27], são prescritíveis as ações condenatórias, sendo que as desconstitutivas ficam a mercê da decadência, e as declaratórias livres dos dois institutos.
Concluiu o autor, então, que estão sujeitas à prescrição "todas as ações condenatórias e somente elas" (op. cit., p. 12). Neste diapasão, todas e quaisquer ações que tenham cunho condenatório estão sujeitas aos prazos prescricionais.
Por outro lado, todas as pessoas, naturais ou jurídicas, privadas ou públicas, estão sujeitas aos efeitos da prescrição. Claro está que qualquer pessoa pode ter a condição de prescribente; a ninguém se concede o privilégio de estar imune aos efeitos da prescrição (GOMES, 1971/453).
No mesmo pensar Washington de Barros Monteiro (op. cit., p. 339), para quem a prescrição também atinge as pessoas jurídicas de direito público:
...a prescrição aproveita realmente, de modo indistinto, tanto às pessoas físicas como às jurídicas, quer as de direito público, quer as de direito privado. Nenhum privilégio outorga o direito nesse particular. Não existem entidades imunes aos seus efeitos, como sucedia outrora com a Ordem de Malta, que pretendia não estar sujeita a qualquer prescrição.
Para Hely Lopes Meirelles (1995, p. 627), essas regras civis devem ser aplicadas ao Direito Administrativo: "A prescrição das ações da Fazenda Pública contra o particular é comum da lei civil ou comercial, conforme a natureza do ato ou contrato a ser ajuizado."
Por conseguinte, salta à vista, num primeiro momento, a possibilidade da prescrição das ações civis públicas reparatórias dos danos causados ao erário.
Todavia, há quem pregue em contrário. Pois veja-se: