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O Ministério Público e a tutela jurisdicional coletiva dos direitos dos idosos

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15/02/2006 às 00:00
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O Estatuto do Idoso atribuiu ao Ministério Público legitimidade para instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso.

1. Introdução

            O estágio atual do estudo da tutela jurisdicional coletiva, embora ainda possa ser considerado incipiente, já revela indiscutíveis progressos científicos, surgindo tentativas de sistematização do denominado processo coletivo [01] ou processo civil de interesse público [02], além de diversos outros estudos específicos acerca da tutela coletiva dos direitos.

            Ao concluir um de seus pioneiros textos sobre o tema da tutela jurisdicional coletiva, José Carlos Barbosa Moreira já notava a ausência de estudos sistemáticos acerca da tutela coletiva e apontava a necessidade de uma maior preocupação teórica com o processo coletivo, ao afirmar que nessa matéria "o legislador se antecipou às preocupações científicas" [03].

            Certamente o interesse teórico com a denominada tutela jurisdicional coletiva e com seus temas conexos assumiu especial relevo no Brasil após a edição da denominada Lei da Ação Civil Pública. No entanto, nem sempre a produção científica - e jurisprudencial, acrescente-se - acompanhou qualitativamente as inovações normativas, ora havendo resistência em modificar conceitos próprios do processo individual ou clássico, ora com a tentativa de limitar indevidamente o alcance de institutos que certamente auxiliariam o escopo do amplo acesso à justiça.

            O contínuo avanço científico na seara da tutela coletiva é especialmente necessário em tempos em que começam a serem ouvidas vozes que identificam o uso das ações coletivas com abusos processuais e em que se nota um amesquinhamento jurisprudencial do alcance dos institutos, além de se tornar cada vez mais presente uma produção normativa que procura limitar o alcance das ações coletivas [04].

            Estamos em um momento histórico em que não é exagerado afirmar que, caso não haja sérias reflexões acerca da tutela jurisdicional coletiva, boa parcela dos avanços conquistados até o momento sofrerá retrocesso legislativo, jurisprudencial e científico, acabando por confinar tão importantes institutos a reduzido espaço.

            Se observarmos bem, hoje a situação se inverteu e o legislador e a jurisprudência estão se antecipando às preocupações e avanços científicos, mas nem sempre com o objetivo de apresentar soluções úteis e eficazes para a realização dos direitos transindividuais, mas, sim, para provocar um indesejável retrocesso, subvertendo a lógica da afirmação de Barbosa Moreira citada no início deste item.


2. A Tutela Jurisdicional Coletiva [05]

            A partir da edição da Lei da Ação Civil Pública a tutela jurisdicional coletiva assumiu novos contornos, adequando nosso ordenamento à "vocação coletiva do processo contemporâneo" [06] e iniciando-se uma espécie de consciência processual coletiva, que foi incrementada pela promulgação da Constituição. Mauro Cappelletti, em texto clássico [07]- [08], observou que o estudo do processo sofreu uma metamorfose exatamente em razão dos conflitos de massa ou transindividuais.

            Na evolução do estudo dos direitos transindividuais, merece realce a distinção identificada por Barbosa Moreira acerca da essencialidade ou acidentalidade do tratamento coletivo de determinados interesses ou direitos [09]. É importante mencionar essa nota evolutiva para esclarecer o objeto do processo coletivo e também para demonstrar que esses direitos não passaram a existir após previsões legislativas, mas, como qualquer direito, já eram perceptíveis como fato social, apenas desamparados instrumentalmente pelo processo clássico. [10] Como afirmou Barbosa Moreira, "não basta reconhecer em teoria a relevância jurídica desses valores: como quaisquer outros, eles só se tornam verdadeiramente operativos na medida em que existam meios próprios e eficazes de vindicá-los em juízo". [11]

            A fim de oferecer um instrumental adequado para esse novo tipo de direitos, foram editadas diversas normas, com especial destaque para a conformação constitucional da tutela coletiva e para a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que, em conjunto, constituem um regramento comum a todo processo coletivo. Em uma espécie de histórico recente da tutela coletiva, podemos mencionar a edição dos seguintes diplomas legislativos: Lei da Ação Popular; Lei ambiental nº 6938/81; Lei da Ação Civil Pública, que, também anterior à edição da Constituição de 1988, recebeu incremento após o novo texto constitucional; Lei dos portadores de deficiência física (nº 7853/89); Lei 7913/89; Estatuto da Criança e do Adolescente; Código de Defesa do Consumidor; Lei de Improbidade Administrativa; Lei 8884/94; Leis federais [12] do Ministério Público (Lei 8625/93 e Lei Complementar 75/93); Lei de Responsabilidade Fiscal; Estatuto da Cidade e Estatuto do Idoso.

            A experiência brasileira influencia outros países, não sendo exagero afirmar que nosso aparato legislativo é satisfatório, bastando assinalar que o recente Anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos Para Ibero-América, formulado pelo Instituto Iberoamericano de Direito Processual originou-se de uma comissão formada por juristas brasileiros. [13] Antonio Gidi chega a afirmar que "a Europa não pode ser ponto de referência para o Brasil em termos de processo coletivo. Ao contrário, somos nós, brasileiros, quem devemos dar essa lição para todo o mundo da civil law. Ao menos na área de direito processual coletivo, nós somos o ponto de referência para a doutrina e o legislador europeus" [14]


3. O sistema processual coletivo

            Importa estabelecer que as diversas leis que tratam da proteção de interesses ou direitos metaindividuais em juízo formam, juntamente com a as disposições constitucionais, um sistema integrado que pode ser denominado de processo coletivo ou tutela jurisdicional coletiva. Dentro desse sistema, como vetores de princípios básicos, estão a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, que se complementam e se interagem recíproca e integralmente. Na certeira observação de Arruda Alvim, há uma verdadeira fungibilidade recíproca [15] entre a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, salvo no que forem incompatíveis.

            Essa idéia de sistema integrado da tutela jurisdicional coletiva e a noção de que esses interesses ou direitos supra-individuais não foram "inventados" pelo legislador são requisitos fundamentais para o desenvolvimento dos demais itens, inclusive para o seguinte, em que procuraremos delinear as características dos direitos individuais homogêneos.


4. Direitos transindividuais: Os Direitos Individuais Homogêneos

            Apesar de a doutrina haver identificado direitos que não correspondiam à clássica estrutura individual e que, pela própria natureza, deveriam ser tratados coletivamente, seja pela intrínseca indivisibilidade, seja pela dimensão social adquiria, não havia uma uniformidade na nomenclatura, havendo certa promiscuidade entre os termos difusos ou coletivos e uma confusão conceitual, motivo pelo qual se dizia que "uma das poucas óbvias no que tange ao conceito de interesse difuso é que se trata de um personagem absolutamente misterioso" [16].

            Diante da indefinição conceitual, mas da certeza da existência de direitos que seriam essencialmente coletivos e outros que o seriam apenas acidentalmente, o legislador infraconstitucional houve por bem definir as diversas categorias existentes (art. 81, parágrafo único, do Código do Consumidor) [17]- [18].

            Na conceituação dos interesses ou direitos difusos, optou-se pelo critério subjetivo da indeterminação dos titulares e da inexistência de relação jurídica base entre eles e, no aspecto subjetivo, pela indivisibilidade do objeto. Note-se que nessa categoria não há referibilidade a qualquer grupo organizado, nem se faz presente uma relação jurídica necessária entre os titulares. Não existe uma afetação institucional desses direitos, que apresentam maior grau de fluidez. Existe pura e simplesmente uma comunhão de destino entre os titulares do direito.

            Já os direitos coletivos, segundo a definição do Código de Defesa do Consumidor, apresentam uma relação jurídica base preexistente à lesão ou ameaça de lesão dos direitos do grupo, categoria ou classe de pessoas. Aqui encontramos, portanto, a determinabilidade dos titulares do direito, embora continue presente a nota da indivisibilidade do objeto.

            Na realidade, segundo Kazuo Watanabe, para a correta distinção entre os direitos difusos e coletivos, é fundamental a correta fixação do objeto litigioso do processo (pedido e causa de pedir) [19]- [20], já que de um mesmo fato pode surgir mais de uma pretensão [21].

            No que se refere ao o tratamento coletivo de direitos individuais, devem estar presentes os requisitos da homogeneidade e da origem comum [22]. A origem comum pode ser de fato ou de direito, não havendo necessidade de uma unidade factual e temporal. A homogeneidade necessária é entre situações de fato ou de direito sobre as quais as características pessoais dos titulares atuem uniformemente, de modo a prevalecer a dimensão coletiva à individual. Note-se que nos direitos individuais homogêneos poderá inexistir entre as pessoas uma relação jurídica base anterior, havendo um vínculo com a parte contrária decorrente da própria lesão ao direito. Como esclarece Kazuo Watanabe, "essa relação jurídica nascida da lesão, ao contrário do que acontece com os interesses ou direitos difusos ou coletivos, que são de natureza indivisível, é individualizada na pessoa de cada um dos prejudicados, pois ofende de modo diferente a esfera jurídica de cada um deles, e isto permite a determinação ou ao menos a determinabilidade das pessoas atingidas" [23]. Tal determinabilidade se traduz em determinação efetiva no momento do exercício do direito, seja por meio de ação individual, seja por meio de habilitação na liquidação de sentença prolatada em ação coletiva.

            O que deve ser remarcado é que os direitos individuais homogêneos são essencialmente individuais [24], sendo coletivos apenas na forma como são tutelados, motivo pelo qual podem ser designados como acidentalmente coletivos.

            Além de outras vantagens [25], parece-nos que a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos incrementa o acesso à justiça, possibilitando que se levem a juízo causas que individualmente não seriam buscadas, em razão de fatores econômicos, sociais, psicológicos [26] e culturais.

            Antonio Gidi afirma que o acesso à justiça é um dos objetivos da tutela coletiva de direitos e, ilustrando sua assertiva, informa que foi observado nos Estados Unidos que, se em determinado fato lesivo envolvendo quarenta milhões de membros do grupo lesado, apenas dez por cento resolvessem ir pessoalmente a juízo, ainda que cada audiência durasse apenas dez minutos, seriam necessários cem anos para que todos casos fossem decididos [27], o que demonstra que o processo coletivo enseja economia processual e possibilita maior acesso à justiça. [28]

            A natureza jurídica dos direitos individuais homogêneos é a de um direito subjetivo "individual complexo" [29], porque, ao mesmo tempo em que diz respeito às necessidades de uma única pessoa, essas necessidades são as mesmas de todo um grupo de pessoas, fazendo nascer sua relevância social. De se notar, portanto, que o direito individual homogêneo é, por sua natureza, individual e, na maioria dos casos, é patrimonial, merecendo tratamento coletivo em razão de sua extensão social. [30] Em razão de seu impacto social - "impacto de massa" - os direitos individuais homogêneos assumem dimensão coletiva e recebem tutela processual diferenciada. Ou seja: seu caráter individual é superado e só voltará assumir relevância na fase de liquidação da condenação genérica. [31]

            É evidente que isso não significa que as situações de direito material não sejam levadas em consideração. Apenas queremos alertar que as situações individuais são tratadas coletivamente e, por isso, são desprezadas durante a fase de conhecimento. Se assim não fosse, estaríamos diante de litisconsórcio multitudinário e não de uma legítima ação coletiva [32].

            Outro ponto conceitual importante é que não há necessidade de que haja um número extenso ou indeterminado dos direitos individuais homogêneos para que se ajuíze uma ação coletiva [33]. Nesse sentido, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro salienta que um "fato pode adquirir dimensão social independente da existência de um grande número de pessoas" e que, por passar a ser um interesse comum a uma determinada coletividade, assume um caráter de interesse público a resolução da questão por meio de uma ação coletiva. [34]


5. A legitimidade ativa nas ações coletivas [35]

            Considerada como um dos ‘pontos sensíveis’ [36] da temática da tutela jurisdicional coletiva, a legitimação para agir sempre despertou controvérsias doutrinárias [37], havendo consenso apenas quanto ao fato de que não seria possível atribuir tal legitimação, em conjunto, à totalidade dos co-titulares e de que a substituição processual do art. 6o do CPC também se apresentava de modo insuficiente. [38]

            Dentre as várias possibilidades de que dispunha, o legislador brasileiro optou por conferir legitimação a entes públicos e privados [39], sendo que essa legitimação pode ser considerada como concorrente, disjuntiva e exclusiva. [40]

            Vem sendo encarecida pela doutrina a presença da nota da representatividade adequada [41] para aferir a legitimidade para a ação coletiva. [42] Em um plano ideal, realmente esse sentido da representatividade adequada deve ser buscado, mas peculiaridades jurídicas e culturais brasileiras, como o não paralelismo estreito com a class action norte-americana [43] e a falta de organização da sociedade civil, indicam que o ponto de partida é mesmo o atual sistema, com preponderância fática de entes públicos – Ministério Público à frente – como autores das ações coletivas por excelência [44].

            Nosso sistema, entretanto, não é incompatível com a necessidade de se controlar o uso equivocado ou com má-fé das ações coletivas e, com esse propósito, a aferição de uma "representação adequada" se mostra importante para coibir desvios. Mesmo os entes públicos devem ser controlados, já que não pode ser descartado que a ação coletiva seja utilizada contrariamente aos interesses da comunidade lesada. Um exemplo: a Constituição e o Estatuto do Idoso autorizam que os idosos tenham acesso gratuito ao transporte coletivo urbano, bastando que seja comprovada a idade. As empresas de ônibus urbanos da cidade do Rio de Janeiro resolveram impor aos idosos um prévio cadastro para que pudessem usufruir do benefício e negam o acesso aos coletivos a quem não estiver cadastrado, sendo que tal cadastro foi suspenso pelas próprias empresas. Afora a bizarrice da suspensão do cadastro e da manutenção da exigência de um cartão que simplesmente não era emitido sem o prévio cadastro, o certo é que a exigência de um cartão especial (denominado de "rio card") adquirido a partir desse mesmo cadastro é claramente inconstitucional. Mesmo assim, o Estado do Rio de Janeiro ajuizou ação coletiva visando a regulamentar a expedição do cartão para o acesso aos coletivos e a determinar o imediato reinício do cadastramento. Ou seja: ao invés de combater o comportamento abusivo das empresas, o Estado, na condição de legitimado ativo, utilizou uma ação coletiva para coonestar a prática das empresas, referendando, por via oblíqua, a lesão aos direitos dos idosos. Essa passagem ilustra um uso desvirtuado da ação coletiva e que realmente merece ser objeto de séria reflexão.

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            O que vem sendo exigido pela jurisprudência é um nexo temático entre o legitimado e a matéria tutelada ("pertinência temática" [45]- [46]), como forma de ao menos especificar a legitimidade no caso concreto.

            Outro ponto a ser destacado é o da natureza da legitimidade das ações coletivas, havendo intenso debate doutrinário se se trataria de legitimação ordinária, extraordinária ou um terceiro gênero [47]. Entendemos que esse debate é equivocado por pretender trabalhar com categorias do processo individual, já que não há necessidade de se buscar um paralelo necessário entre os institutos processuais. Estamos diante de um processo com suas peculiaridades próprias, dentre as quais avulta a questão da legitimidade. Uma nova realidade não tem que se prender a classificações antigas, que foram elaboradas diante de outra realidade. [48]

            Na tutela coletiva, a "substituição" dos titulares do direito é a regra, de modo que soa excêntrico tratar essa legitimidade como "extraordinária" [49]. Como observa Arruda Alvim, "se fosse possível dizer que a substituição processual era um caso de legitimidade extraordinária (...) já no processo coletivo, para o fim de atuar coletivamente, passou o instituto a ser a forma normal de atuação". [50]

            Entendemos que se trata de uma legitimação autônoma [51], portanto, em qualquer hipótese de tutela coletiva. Essa ressalva é necessária em razão de ser opinião corrente de que a legitimação seria ordinária em se tratando de direitos difusos ou coletivos e seria extraordinária quando se relacionasse com direitos individuais homogêneos, em razão de estes últimos serem em essência individuais. Não podemos concordar com esse raciocínio. Como já exposto, os direitos individuais homogêneos possuem um caráter complexo por adquirirem uma dimensão social, de modo que a individualidade perde importância para fins de tutela coletiva, tanto assim que o pedido veiculado deve ser genérico [52].


6. A legitimidade do Ministério Público nas ações coletivas

            Podemos dizer, sem exagero, que o exercício da tutela coletiva pelo Ministério Público é hoje a face mais visível de sua disciplina constitucional, motivo pelo qual Barbosa Moreira considera que houve uma autêntica revitalização institucional [53], provocada pela edição da Lei da Ação Civil Pública e confirmada pela Constituição. Mauro Cappelletti, inclusive, que tem posicionamento sabidamente contrário à legitimação do Ministério Público em matéria de direitos transindividuais em razão do perfil da instituição na Itália [54], ao tomar conhecimento da situação brasileira, afirmou que as "razões do escasso êxito dessa solução na Europa não se aplicam ao Ministério Público brasileiro, sobretudo depois que sua independência foi assegurada pela Constituição, e em conseqüência também o fato de que em algumas cidades do Brasil se criaram seções especializadas em matéria de interesses difusos, nos quadros do Ministério Público. Fique bem claro, porém, que essas são as duas condições – independência e especialização – absolutamente indispensáveis ao êxito da solução aqui considerada" [55].

            Ao lado desse incremento de atribuições, houve – e há – forte posicionamento que visa a limitar o amplo espectro de atuação do Ministério Público, especialmente no que se refere à tutela dos direitos individuais homogêneos, geralmente sob o argumento de que se pretende salvaguardar a sociedade da sanha abusiva de Promotores de Justiça e de que sua atuação em matéria de direitos individuais homogêneos é bastante restrita. A defesa dos direitos individuais homogêneos, pois, tornou-se campo próprio para a proliferação dessas idéias restritivas.

            Antes de passarmos para uma fase descritiva e ao mesmo tempo analítica acerca da legitimidade do Ministério Público para a tutela dos direitos individuais homogêneos, cabe mencionar uma nova objeção à atuação do Ministério Público na tutela de direitos transindividuais, que foi exposta por Adriano Perácio de Paula em recente trabalho. [56] Segundo este autor, atuando como parte em ação cível, o Ministério Público sempre deverá estar representado por advogado, em razão de a Constituição só haver lhe conferido capacidade postulatória em matéria penal, vedando-lhe o exercício da advocacia. Falta ao Ministério Público, portanto, de acordo com o referido autor, capacidade postulatória para ajuizar qualquer ação coletiva, devendo contratar advogado, que teria a exclusividade absoluta sobre o jus postulandi.

            Esse posicionamento é flagrantemente equivocado, parecendo até ser fruto de uma má-vontade com a atuação do Ministério Público, antes de se constituir em uma consistente posição acadêmica. Felizmente, não temos conhecimento de qualquer adesão a esse entendimento. Até mesmo quem se dedicou ao tema com um enfoque restritivo à atuação do Ministério Público, nem sequer cogitou questionar sua capacidade postulatória para atuar como autor no processo civil [57]. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [58], em parecer encomendado pela OAB, afirma expressamente que a capacidade postulatória "é inerente à própria instituição. Pretender exigir-se que para a propositura da Ação Civil Pública o Ministério Público deve comparecer em juízo representado por um advogado é, data vênia, um exagero. Seria amesquinhá-lo. Seria reduzi-lo a um mero órgão administrativo do Estado (...)".

            Para afastar essa idéia da falta de capacidade postulatória, bastaria mencionar o disposto no art. 81 do CPC. Entretanto, a própria Constituição confere capacidade postulatória ao Ministério Público para o ajuizamento de ações coletivas no art. 127, ao incumbir-lhe a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, estando incluída a possibilidade de ajuizamento de ações judiciais, e no art. 129, III, em que se lê que cabe ao Ministério Público promover a Ação Civil Pública, devendo ser notado que no inciso primeiro do mesmo artigo utiliza-se o mesmo verbo para a ação penal; a vedação constitucional ao exercício da advocacia evidentemente não significa que o membro do Ministério Público não possa ajuizar ações de sua atribuição, devendo haver compatibilização das normas constitucionais. A razão dessa vedação é histórica e nada tem a ver com a nova configuração da tutela jurisdicional coletiva.

            6.1. Panorama doutrinário

            Iniciemos a exposição apresentando os argumentos que nos parecem mais restritivos [59].

            Miguel Reale [60] entende que os direitos e coletivos e individuais homogêneos como definidos no Código de Defesa do Consumidor são categorias inconstitucionais (sic), "tendo sido indevidamente acrescidas à dos difusos e indisponíveis, os únicos que a Carta Magna expressamente contempla". Adilson Abreu Dallari [61] também entende que a Constituição só autorizou o Ministério Público a defender direitos difusos e coletivos, sendo inconstitucional qualquer outro alargamento de sua "competência". Do mesmo modo, Ives Gandra da Silva Martins [62] entende haver incompatibilidade constitucional com a defesa dos direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público por meio de ação coletiva.

            A constitucionalidade de sua defesa pelo Ministério Público está no art. 127 da Constituição, na medida em que menciona a defesa dos interesses sociais, e no art. 129, IX, na parte em que autoriza o Ministério Público a exercer outras funções compatíveis com sua finalidade. O acesso à justiça garantido pelo art. 5o, XXXV,da Constituição também legitima a atuação do Ministério Público, já que existem lesões individuais que possuem relevância social e só receberam a tutela adequada por meio da ação coletiva.

            O fato de o texto constitucional não mencionar expressamente a categoria dos direitos individuais homogêneos não deve impressionar. Até mesmo para evitar esse tipo de equívoco em que incidiu Miguel Reale é que há quem defenda a mudança do nome desses direitos, conforme já referido [63].

            O rótulo dado pelo legislador não pode mudar a natureza das coisas, e haverá direitos acidentalmente coletivos independentemente da denominação legislativa. A novidade é que agora temos um sistema processual integrado que possibilita sua tutela efetiva.

            É interessante notar que somente agora venha sendo questionada essa categoria de direitos, se o legislador já trabalha com ela há anos. Basta lembrar que a Lei 6024/74 legitima o Ministério Público a ajuizar ações em hipóteses de liquidação extrajudicial, caso evidente de direitos individuais homogêneos [64], sem falar no disposto na Lei 7913/89.

            O certo é que "caso não houvesse disciplina legal, da mesma forma, três seriam as modalidades de interesses transindividuais: os interesses difusos, os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos". [65] Não havia esse rótulo na época da edição da Constituição, mas podemos dizer que a proteção judicial dos direitos individuais homogêneos já estava prevista em seu texto por todas as razões expostas.

            Ademais, uma outra razão para a não inclusão dos direitos individuais homogêneos no art. 129, III, da Constituição, está no fato de que nem todas as situações individuais alcançam dimensão a justificar a atuação do Ministério Público, ao contrário do que ocorre com os interesses difusos e coletivos, que, pela própria natureza, têm afetação automática à coletividade e não apenas ao indivíduo. Na Constituição temos as diretrizes genéricas, havendo conformação legislativa posterior, que foi o que ocorreu com a disciplina dos direitos individuais homogêneos.

            Rogério Lauria Tucci [66], embora não se refira expressamente à denominação direitos individuais homogêneos, acrescenta dois argumentos contrários à atuação do Ministério Público: a abusividade do ajuizamento de ações e o indevido exercício de funções próprias de advogados, eis que seriam tutelados direitos individuais [67].

            Pedro da Silva Dinamarco [68], a seu turno, após afirmar que diversas ações coletivas são propostas indevidamente em razão do temor de o Promotor de Justiça ser punido administrativamente, conclui que está havendo um "inegável abuso" por parte do Ministério Público, o que acabaria por tornar ineficiente a tutela coletiva, afirmando, ainda, que é inconstitucional a defesa do erário [69]. Em sua opinião, apenas quando o direito for simultaneamente indisponível e homogêneo é que haverá legitimidade do Ministério Público.

            O argumento de que haveria indevido exercício de advocacia pelo Ministério Público nos casos de direitos individuais homogêneos não pode prosperar. Ao ajuizar uma ação coletiva, o Ministério Público está exercendo seu múnus constitucional, nada havendo de usurpação de função. Ademais, é sempre válido repetir, nunca estará o Ministério Público defendo direitos individuais específicos, mas, sim, estará tutelando uma situação que, a partir de lesões individuais, assume dimensão social, transcendendo a posição individual de cada titular. A atuação do Ministério Público é impessoal e genérica, desvinculada da situação pessoal de cada titular. Tanto é assim, que o pedido formulado na defesa dos direitos individuais homogêneos deve ser necessariamente genérico, havendo posterior habilitação individual dos eventuais titulares que desejarem. E essa habilitação forçosamente será por meio de advogados, cessando a legitimidade do Ministério Público.

            Note-se, portanto, que o tratamento coletivo dos direitos individuais não se confunde com a satisfação pessoal do crédito daí decorrente, este sim indiscutivelmente disponível e que deve ser buscado por meio de advogado. [70]

            O argumento da abusividade é mais ideológico do que técnico, já que não se combate um instituto pelas suas eventuais deturpações práticas. O fato de haver o ajuizamento indevido de ações coletivas (fato este que não se nega neste trabalho) não significa que se deva impedir o uso do instituto. Temos todo um aparato técnico para impedir o desenvolvimento de uma ação - individual ou coletiva – que seja inadequada. Se uma ação foi ajuizada por meio de uma inicial inepta, que se rejeite aquela petição específica; se houve má-fé, que se condene o litigante. Ou seja: pela técnica processual evita-se a utilização abusiva das ações coletivas, seja pelo ajuizamento correto de ações, seja pelo controle de admissibilidade das demandas.

            O que não pode ocorrer é a criação de uma regra genérica que limite a atuação do Ministério Público, como, aliás, só ele fosse responsável por abusos forenses, quando na verdade sabemos que não é bem assim que as coisas se passam. Do modo como exposto pelos autores, parece que ao Ministério Público vale uma extravagante teoria concreta do direito de ação, sendo abusivo o ajuizamento de uma ação que veicule pedido julgado improcedente.

            Afirmar, como faz Pedro Dinamarco, que Promotores de Justiça ajuízam ações de modo leviano por receio de punições administrativas pessoais é desconhecer complemente a realidade de uma Instituição, nem mesmo se dando ao trabalho de examinar os mapas estatísticos dos Ministérios Públicos que trazem o número de inquéritos civis arquivados. Não há punição para o correto exercício funcional e isso inclui o ajuizamento de ações nas hipóteses cabíveis e o não ajuizamento quando não houver justa causa.

            A idéia de que só em se tratando de direitos individuais homogêneos indisponíveis é que haveria legitimidade do Ministério Público também não merece prestígio, já que não se pode confundir patrimonialidade com disponibilidade [71].

            Como já afirmamos, a partir do momento em que a lesão a direitos individuais homogêneos adquire dimensão social, supera-se a disponibilidade do direito numa óptica individualizada, em razão de um interesse maior da sociedade em ver essa lesão a direitos tutelada coletiva e genericamente. É como se houvesse uma suspensão da disponibilidade do direito durante a ação coletiva, voltando essa característica no momento da habilitação para a satisfação de um direito específico, a partir de uma condenação genérica.

            Nem se argumente que o disposto no art. 25, I, a, da Lei 8625/93, [72] haveria definitivamente limitado a atuação do Ministério Público apenas aos direitos individuais homogêneos indisponíveis. Tal interpretação não é possível pelas seguintes razões: a) aplicação subsidiária [73] ou integradora da Lei do Ministério Público Federal (art. 6o, XII, da Lei Complementar 75/93 combinado com o art. 80 da Lei 8625/93), sendo que o processo coletivo deve formar um microssistema; b) a incompatibilidade dessa interpretação da lei com o disposto no art. 127 da CF; c) a equivocidade da linguagem legislativa. Devemos ler o dispositivo mencionado com a disjuntiva ou substituindo a conjuntiva e, assim como, por exemplo, devemos fazer com a nova redação do art. 515, §3o, do CPC e fazer o contrário na interpretação do art. 286, CPC; d) se fossemos ler esse dispositivo como determinante de uma simultaneidade entre a característica da indisponibilidade com a homogeneidade, o Ministério Público só poderia defender interesses de incapazes em ações coletivas, e não individualmente [74].

            Merece ser afastado também o argumento de somente em relações de consumo pode haver a defesa dos direitos individuais homogêneos, por só haver expressa referência a essa categoria no Código de Defesa do Consumidor, inclusive porque há outras leis que tratam de direitos individuais homogêneos, como as leis institucionais do Ministério Público, o Estatuto da criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. Como já destacamos, o Código de Defesa do Consumidor apenas rotulou uma categoria que já existia, de modo que mesmo que não houvesse sua disciplina expressa por meio de qualquer lei seria possível sua tutela coletiva para garantia do acesso à justiça.

            Na realidade, a defesa dos direitos individuais homogêneos é compatível com a Constituição independentemente de previsão expressa. Além disso, devemos lembrar que temos um sistema integrado de tutela coletiva, não havendo sentido em criar artificialmente categorias de direitos estanques, confinadas nos limites de um diploma legislativo específico. Lembre-se ainda do art. 21 da Lei da Ação Civil Pública e da expressa previsão genérica de defesa dos direitos individuais homogêneos pelas leis orgânicas do Ministério Público.

            Exatamente em razão dessa compatibilidade constitucional e de haver um sistema integrado do processo coletivo, é que não deve impressionar o fato de que a lei do Código de Defesa do Consumidor, ao acrescentar o inciso IV no art. 1o da Lei da Ação Civil Pública deliberadamente não incluiu os direitos individuais homogêneos, por ser vontade do legislador seu confinamento das relações de consumo [75]. Primeiro, não é o meio hermenêutico mais correto a vinculação à vontade do legislador, já tendo sido demonstrado que há possibilidade de defesa de quaisquer direitos individuais homogêneos a partir de uma interpretação teleológica e sistemática. Em segundo lugar, o fato de não ter havido inclusão expressa dos direitos individuais homogêneos não possui importância diante da abertura do art. 21 da Lei da Ação Civil Pública. Se raciocinarmos de modo diverso, então também deveremos entender que, em não tendo havido alteração expressa do art. 5o da Lei da Ação Civil Pública, o Distrito Federal só será legitimado para ajuizar Ação Civil Pública em relações de consumo, pois só no Código de Defesa do Consumidor lhe há referência expressa (art. 82, II), o que seria absurdo.

            Como destacou o Min. Sepúlveda Pertence, em seu preciso voto no Recurso Extraordinário nº 195.056-1-PR [76], a lei já confiou ao Ministério Público a incumbência da defesa coletiva de direitos individuais homogêneos, como p. ex., os dos credores de instituição financeira em liquidação extrajudicial e nunca houve questionamento de inconstitucionalidade, exatamente porque "da própria Constituição é possível derivar outras hipóteses" de direitos individuais homogêneos.

            A partir do momento em que encaramos a defesa judicial dos direitos transindividuais como integrante do direito fundamental do acesso à justiça, verificamos que esse posicionamento restritivo não pode persistir, devendo ser lembrado que "a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que melhor eficácia lhe dê". [77]

            Qualquer limitação material posterior (como, p. ex., em matéria tributária e previdenciária) também é indevida, em razão do princípio da vedação do retrocesso (ou do não retrocesso social) [78]. Se a Constituição garante uma tutela jurisdicional adequada e prevê o sistema de tutela coletiva, não pode uma norma infraconstitucional frustrar esse compromisso constitucional com a efetividade. Lembre-se que o texto constitucional possui cláusula aberta quando se refere à tutela jurisdicional coletiva (art. 129, III e IX). Além disso, o art. 1o da Lei da Ação Civil Pública também possui cláusula aberta para a tutela de quaisquer direitos transindividuais, concretizando-se, assim, o direito fundamental de acesso à adequada tutela jurisdicional, não podendo uma norma posterior retroceder tal garantia e proibir que determinados temas possam ser discutidos em processo coletivo.

            Como bem lembra Jesús González Pérez, o direito à tutela jurisdicional significa a possibilidade de formular qualquer tipo de pretensão, qualquer que seja seu fundamento e o objeto sobre o qual verse. [79] Quando se proíbe que determinados direitos sejam tutelados coletivamente, em uma espécie de censura processual, impede-se uma adequada tutela jurisdicional, ofendendo-se um direito fundamental.

            Excluir do processo coletivo a tutela de determinados direitos é negar acesso à justiça e, nessa medida, o parágrafo único do art. 1o da Lei da Ação Civil Pública é inconstitucional. É verdade que cada titular poderá pleitear seus direitos em processos individuais, mas a Constituição prevê a tutela coletiva como meio mais amplo e eficaz de acesso à justiça, de modo que a vedação da tutela coletiva significa impedimento de prestar uma tutela jurisdicional mais adequada, o que fulmina de inconstitucionalidade a referida norma [80].

            Os posicionamentos contrários à legitimação do Ministério Público se prendem a uma visão pontual do fenômeno, como se o direito pudesse ser interpretado apenas parcialmente. Entretanto, "não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum" [81]. Por isso, e mais os argumentos que expusemos nas páginas anteriores, não merecem adesão as restrições impostas pela doutrina e pela jurisprudência.

            Passemos agora a descrever o panorama doutrinário mais consentâneo com nosso pensamento.

            Gregório Assagra de Almeida entende que sempre haverá interesse social na defesa dos direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público, afirmando que "sempre que houver a afirmação de direito pertinente aos interesses ou direitos individuais homogêneos, o Ministério Público poderá atuar, com o ajuizamento da respectiva ação coletiva. O que ele defende não é o interesse de cada vítima ou de seus sucessores, mas o interesse globalmente considerado que, no caso, é o interesse social, justificado para evitar a proliferação de demandas individuais, a dispersão das vítimas titulares dos direitos e o desequilíbrio jurídico decorrente da possibilidade de decisões jurisdicionais contraditórias sobre o mesmo assunto". [82] Essa também é a opinião de Nelson Nery Junior [83] e Humberto Dalla Bernardina de Pinho [84].

            Teori Albino Zavaski, em dois importantes trabalhos sobre o tema [85], possui posição mais moderada, concluindo que há interesses individuais que, considerados em seu conjunto, passam a ter significado ampliado, de resultado maior que a simples soma das posições individuais, e cuja lesão compromete valores comunitários privilegiados pelo ordenamento jurídico, e tais interesses individuais, visualizados nesta dimensão coletiva, constituem interesses sociais para cuja defesa se legitima o Ministério Público. Segundo este autor, a identificação destes interesses sociais compete tanto ao legislador como ao Ministério Público, caso a caso, mediante o preenchimento valorativo do conceito de interesses sociais. empresta expressa adesão a este entendimento. Em linhas gerais, aderem a este posicionamento, exemplificativamente, os seguintes autores: Geisa de Assis Rodrigues [86], Alexandre Freitas Câmara [87], Marcos Antonio Maselli de Pinheiro Gouvêa. [88]- [89], José Roberto dos Santos Bedaque [90], Kazuo Watanabe, Hugo Nigro Mazzili [91], Rodolfo de Camargo Mancuso [92], Ricardo de Barros Leonel [93], Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart [94].

            Apesar de os autores que defendem a ampla legitimidade do Ministério Público basearem-se em consistentes argumentos e visualizarem corretamente o fenômeno da tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, pensamos que o texto constitucional exige a nota do interesse social ou da indisponibilidade. Não nos parece que o interesse social seja intrínseco a qualquer demanda coletiva, de modo que deve ser demonstrada sua presença nas ações que veiculem pretensões decorrentes de direitos individuais homogêneos. Estamos, portanto, de pleno acordo com as considerações dos autores por último citados e também entendemos que a legitimidade do Ministério Público se verifica a partir do interesse social previsto no art. 127 da Constituição. [96]

            6.2. Panorama jurisprudencial [97]- [98]:

            O exame da jurisprudência assume especial relevo no tema da defesa dos direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público, em razão da diversidade das decisões e da importância do tema.

            No Superior Tribunal de Justiça, inicialmente houve um entendimento de que o Ministério Público estaria legitimado para a propositura de ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos [99]. Entretanto, lamentavelmente esse entendimento durou poucos meses. O mesmo Ministro logo depois modificou seu pensamento, no julgamento do REsp nº 57465-PR, publicado no DJ de 19/06/95, p. 18643, e a tese de que o Ministério Público não estaria legitimado para defender direitos individuais homogêneos relacionados a contribuintes, basicamente porque não são consumidores, passou a ser preponderante [100].

            Já esclarecemos que entendemos equivocada a restrição imposta pela idéia de que somente os direitos individuais homogêneos dos consumidores podem ser tutelados. Não há nada que impeça a defesa dos contribuintes. [101]

            Recentemente, a primeira turma do Superior Tribunal de Justiça modificou a orientação anterior e voltou a entender que o Ministério Público pode ajuizar ação civil pública para a defesa dos direitos dos contribuintes, passando a abordar a matéria com propriedade e na linha teórica defendida neste trabalho, lamentando-se apenas a limitação temporal [102] imposta nos julgamentos [103].

            A infeliz e autoritária [104] medida provisória nº 1984, que acrescentou o parágrafo único ao art. 1o da Lei da Ação Civil Pública, como já expusemos, não tem o condão de impedir a defesa dos direitos dos contribuintes por ser inconstitucional [105], já que desarrazoada e violadora da isonomia, ao excluir injustificadamente determinadas matérias da tutela coletiva. Lembre-se uma vez mais do princípio da vedação do retrocesso. Há uma indevida – inconstitucional – limitação do direito fundamental do acesso à justiça [106]- [107].

            O Superior Tribunal de Justiça, em outros julgamentos, não vem restringindo a defesa dos direitos individuais homogêneos apenas às relações de consumo. Na síntese realizada por João Batista de Almeida [108], o Superior Tribunal de Justiça acolheu a tese de existência de relevância social nas seguintes hipóteses: taxa de iluminação pública, aumento abusivo de mensalidades escolares, reajuste de 147% para os aposentados, nulidade de cláusula abusiva, trabalhadores submetidos a condições insalubres em minas, decretação de nulidade de concurso público, planos de saúde, correção monetária de prestação para a aquisição de imóveis, proteção do direito ao salário mínimo para servidores municipais, entre outros. Não reconheceu relevância social nos seguintes temas: aquisição de lotes financiados pela Cohab, IPTU, vale-transporte, taxa de iluminação pública entre outros.

            A primeira turma do Superior Tribunal de Justiça, apesar da diversidade de tendências encontrada no Tribunal durante os anos, parece definitivamente haver identificado a correta interpretação que se deve dar para o tema da legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos. [109] Entretanto, ainda não se pode dizer que a jurisprudência de todo o Superior Tribunal de Justiça tenha uma tendência uniforme.

            O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, nas poucas vezes em que examinou a matéria, conferiu relevância social apenas ao tema de cobrança abusiva de mensalidades escolares – tanto que editou a súmula de sua jurisprudência dominante n° 643: o Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares - não reconhecendo essa característica no exame de matéria tributária (IPTU e taxa de iluminação pública).

            Em matéria tributária, o Supremo Tribunal Federal realizou seu primeiro julgamento em 1999 e não reconheceu a legitimidade do Ministério Público para a defesa coletiva de direitos dos contribuintes [110]. As mesmas críticas formuladas quando do exame da jurisprudência restritiva do Superior Tribunal de Justiça podem aqui ser repetidas.

            Merece destaque o já citado voto do Min. Sepúlveda pertence no RExt. 195.056-1/PR. Após consignar que "o que reputo de maior relevo, no contexto do art. 127 [CF], não é o de incumbir a instituição [do Ministério Público] a defesa dos interesses indisponíveis, mas, sim, a dos interesses sociais", já que "a eventual disponibilidade pelo titular de seu direito individual, malgrado sua homogeneidade com o de outros sujeitos, não subtrai o interesse social acaso existente na sua defesa coletiva", e, apontando para o critério do interesse social segundo a Constituição, ressalva que no caso concreto não vislumbrava esse interesse social, embora a matéria tributária por si só impeça o ajuizamento da ação coletiva pelo Ministério Público.

            Pensamos que as ponderações do Min. Sepúlveda Pertence bem demonstram a dimensão dos limites da atuação do Ministério Público. São irrelevantes, diante do sistema constitucional, os aparentes limites impostos pelo legislador infraconstitucional e a disponibilidade do direito individual. Lamenta-se apenas que, no caso sob julgamento, o ministro tenha entendido que questões tributárias não possuem interesse social e tenha negado legitimidade ao Ministério Público [111].

            Vê-se, portanto, que grassa certa confusão na jurisprudência, mormente no que se refere à limitação da ação coletiva para a defesa dos direitos individuais homogêneos apenas se houver relação de consumo. Embora haja decisões favoráveis à ampla legitimidade do Ministério Público, predominam as decisões mais restritivas e o panorama jurisprudencial que se nos apresenta tende ao conservadorismo [112].

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Sobre o autor
Robson Renault Godinho

promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODINHO, Robson Renault. O Ministério Público e a tutela jurisdicional coletiva dos direitos dos idosos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 957, 15 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7974. Acesso em: 4 nov. 2024.

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