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Comentários sobre a Resolução do Senado Federal nº 71/2005

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17/02/2006 às 00:00
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III – A Resolução nº 71, de 26 de dezembro de 2005.

            III.1. Natureza do ato normativo suspensivo.

            No presente caso, estamos diante de um ato de co-participação na função judicial, conforme definição de Anna Cândido da Cunha Ferraz [10], que se aproxima muito, ainda, do conceito de norma interpretativa. Diríamos até mesmo sui generis, eis que singular no ordenamento jurídico nacional, tanto em relação à forma como ao conteúdo.

            Não há dúvida, porém, de que se trata de ato legislativo. O relatório da CCJ, ao tecer considerações preliminares sobre a natureza da atuação senatorial, teceu pertinentes comentários a esse respeito, que transcrevemos ipsis litteris:

            "Trata-se, assim, de ato de caráter normativo, com divergência na doutrina no sentido de ser ato legislativo ou quase legislativo, posto que afeta norma jurídica stricto sensu, suspendendo-lhe a eficácia.

            O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de recusar-lhe o caráter legislativo, à luz do entendimento consagrado pelo então Ministro LUIZ GALLOTTI, relator do Mandado de Segurança n.º 16.519-DF (Requerentes: Gali-Flor Construção Ltda. e outros. Requerido: Senado Federal. Publicado no DJ de 9-nov-1966. Julgado em 20-jun-1966.), segundo o qual, para ter natureza de ato legislativo, "teria que competir não só ao Senado mas também à Câmara, dependendo ainda de sanção do Presidente da República".

            Entendemos, contudo, tratar-se de uma atividade legislativa exclusiva, equivalente à revogação de normas inquinadas de inconstitucionalidade. Nesse sentido, pactuamos do entendimento do então Procurador-Geral da República ALCINO SALAZAR, em parecer lavrado quando do julgamento do Mandado de Segurança retromencionado, segundo o qual "sempre que se impõe, se revoga, se modifica ou se suspende uma regra, aí temos o ato legislativo, seja ele uma lei, um decreto ou uma deliberação."

            Além disso, a própria Constituição espalma qualquer dúvida a esse respeito, quando trata do processo legislativo:

            Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

             ......................................................................................................

            VII - resoluções.

            Tal como estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o processo legislativo abrange não só a elaboração de lei stricto sensu, mas também de emendas constitucionais, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

            As resoluções podem ser assim entendidas como atos exclusivos do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal que versem sobre competência privativa de cada órgão legislativo e que extrapolem o âmbito do simples ato administrativo.

            No caso do Senado Federal, as resoluções têm, por vezes, a característica a de conferir relevantes efeitos externos às matérias tratadas no exercício daquelas atribuições, conforme a finalidade atribuída pela Constituição, como é o caso das resoluções financeiras e das resoluções nomeantes.

            A Resolução nº 71, de 2005, pois, é sem dúvida ato legislativo, pelo que pactuamos do conceito do eminente senador Amir Lando ao defini-la como "ato legislativo exclusivo".

            III.2. Conteúdo, forma e estrutura.

            Antes, porém, de analisar a Resolução quanto à sua forma, cumpre-nos destacar que o processo legislativo das resoluções do Senado, em especial daquela materialmente direcionada a cumprir o inc. X, art. 52, da CF, não têm disciplina específica nas leis maiores, restando apenas a regulamentação – nem sempre completa – dos regimentos internos. A esse respeito, temos oportunas as palavras de José Afonso da Silva [11], que nos ensina:

            "Nada se diz sobre o processo de formação dos decretos legislativos e das resoluções. Aqueles são atos destinados a regular matérias de competência exclusiva do Congresso nacional (art. 49) que tenham efeito externos a ele; independem de sanção e veto. As resoluções legislativas são também atos destinados a regular matéria de competência do Congresso e de suas Casas, mas com efeitos interno; assim os regimentos internos são aprovados por resoluções. Contudo, são previstas algumas resoluções com efeito externo, como a de delegações legislativa e as do Senado sobre matéria financeira e tributária (arts. 68, § 2º, 52, IV a X, e 155, § 2º, V). Como a Constituição não dispôs sobre o processo de sua formação, isso ficou para os regimentos internos."

            Podemos, contudo, afirmar que, do ponto de vista formal, a resolução não apresenta vício legislativo, vez que respeitou os ditames da tríade normativa que a disciplina: a Constituição Federal, a Lei Complementar n.º 95/98 e o Regimento Interno do Senado Federal.

            Assim, uma vez respeitado o processo legislativo, cumpre analisar o conteúdo e a forma da resolução, a fim de respaldar sua constitucionalidade. Para tanto, pedimos vênia para diagramar as partes componentes de tal norma, para então extrair o conteúdo expressivo de cada uma.

            Uma norma – e a resolução do Senado enquadra-se nesse gênero – contém os seguintes elementos básicos: a ordem legislativa e a matéria legislada. Aquela compreende a parte preliminar e o fecho da lei. Essa última, o texto ou corpo da lei. Conforme disciplina a LC 95/98, art. 3º, o projeto de ato normativo deve ser estruturado em:

            a) parte preliminar, compreendendo epígrafe, ementa, preâmbulo, enunciado do objeto e indicação do âmbito de aplicação das disposições normativas;

            (b) parte normativa, compreendendo o texto legal de conteúdo substantivo relacionado à matéria regulada; e

            c) parte final, compreendendo as disposições transitórias e as necessárias à implementação das normas ou ainda a cláusula de vigência ou de revogação.

            A parte preliminar da Resolução, como se observa, menciona o nome da norma no local destinado à epígrafe (do grego epi + graphô, "sobre + escrever"). Ali estão a qualificação do ato na ordem jurídica, sua situação no tempo, sua numeração e sua denominação, devendo ser grafada em letras maiúsculas (art. 4º, LC 95/98):

            "RESOLUÇÃO Nº 71, DE 2005".

            Segue-se então à ementa (do latim, "idéia"), texto que sintetiza o seu conteúdo visando permitir, de modo imediato e conciso, o conhecimento da matéria legislada, onde se verifica a clara intenção de suspender a execução das já mencionadas expressões inconstitucionais:

            "Suspende, nos termos do inciso X do art. 52 da Constituição Federal, a execução, no art. 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979, da expressão "ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir", e, no inciso I do art. 3º do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, das expressões "reduzi-los" e "suspendê-los ou extingui-los"."

            Logo adiante, tem início o preâmbulo. Essa parte da norma contém a declaração do nome da autoridade e do cargo em que se acha investida, a atribuição constitucional em que se funda para promulgar a norma e a base legal do ato legislativo, com clara menção à ordem de execução ou mandado de cumprimento. É o endereço da prescrição de força coativa do ato, mas também abarca os fundamentos legais e/ou esclarecimentos acerca do ato legislado.

            "O Senado Federal, no uso de suas atribuições que lhe são conferidas pelo inciso X do art. 52 da Constituição Federal e tendo em vista o disposto em seu Regimento Interno, e nos estritos termos das decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal,

            Considerando a declaração de inconstitucionalidade de textos de diplomas legais, conforme decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nos autos dos Recursos Extraordinários nºs 180.828, 186.623, 250.288 e 186.359,

            Considerando as disposições expressas que conferem vigência ao estímulo fiscal conhecido como "crédito-prêmio de IPI", instituído pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 491, de 5 de março de 1969, em face dos arts. 1º e 3º do Decreto-Lei nº 1.248, de 29 de novembro de 1972; dos arts. 1º e 2º do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, assim como do art. 18 da Lei nº 7.739, de 16 de março de 1989; do § 1º e incisos II e III do art. 1º da Lei nº 8.402, de 8 de janeiro de 1992, e, ainda, dos arts. 176 e 177 do Decreto nº 4.544, de 26 de dezembro de 2002; e do art. 4º da Lei nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004,

            Considerando que o Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, declarou a inconstitucionalidade de termos legais com a ressalva final dos dispositivos legais em vigor, RESOLVE:"

            Nessa passagem do texto resolutivo, foi evidenciado o órgão competente para a prática do ato (Senado Federal), a sua base legal (competência e motivação – inc. X, art. 52, CF; matéria objeto da resolução – art. 1º do Decreto-Lei nº 491, de 5 de março de 1969, em face dos arts. 1º e 3º do Decreto-Lei nº 1.248, de 29 de novembro de 1972; dos arts. 1º e 2º do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, assim como do art. 18 da Lei nº 7.739, de 16 de março de 1989; do § 1º e incisos II e III do art. 1º da Lei nº 8.402, de 8 de janeiro de 1992, e, ainda, dos arts. 176 e 177 do Decreto nº 4.544, de 26 de dezembro de 2002; e do art. 4º da Lei nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004) e os esclarecimentos necessários à prática do ato ("tendo em vista o disposto em seu Regimento Interno, e nos estritos termos das decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal", "Considerando a declaração de inconstitucionalidade de textos de diplomas legais, conforme decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nos autos dos Recursos Extra-ordinários nºs 180.828, 186.623, 250.288 e 186.359", "Considerando que o Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, declarou a inconstitucionalidade de termos legais com a ressalva final dos dispositivos legais em vigor").

            A parte normativa da resolução está sintetizada no art. 1º, que determina a suspensão da execução dos textos inconstitucionais e, ao final, apresenta a ressalva de vigência do objeto legal remanescente:

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            "Art. 1º

É suspensa a execução, no art. 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979, da expressão "ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir", e, no inciso I do art. 3º do Decreto-Lei nº 1.894, de 10 de novembro de 1981, das expressões "reduzi-los" e "suspendê-los ou extingui-los", preservada a vigência do que remanesce do art. 1º do Decreto-Lei n.º 491, de 5 de março de 1969."

            Trata-se, como se pode observar, do ponto central do ato normativo. A ressalva inserida ao final desse artigo é, por si, o centro da polêmica que ora se pretende instaurar no ordenamento jurídico.

            Como já dito, a ressalva veio esclarecer que o crédito-prêmio continua vigente, e, para isso, tinha de ter redação expressa nesse sentido. Não se trata de imprecisão da redação normativa, nem redação desarticulada. Pelo contrário, é a síntese do estudo exegético do parecer da CCJ, pressuposto indispensável, condição sine qua non para edição da resolução de suspensão, como analisaremos mais adiante.

            Por fim, o artigo final apresenta o fecho da norma resolutiva, contendo a sua cláusula de vigência, para então ser seguido pela assinatura:

            "Art. 2º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

            Senado Federal, em 26 de dezembro de 2005

            Senador RENAN CALHEIROS

            Presidente do Senado Federal"

            Todos esses planos normativos que foram analisados acima estão disciplinados pela Lei Complementar nº 95/98 e foram estritamente observados, sob o aspecto jurídico de redação legislativa, estando, pois harmonizados à lei retromencionada.

            III.3. Oportunidade e discricionariedade para edição da resolução senatorial.

            Já têm sido discutidos na sociedade as razões e o momento de promulgação dessa "natipolêmica" resolução do Senado Federal, logo após pacificação pelo STJ da vigência do estímulo fiscal até 1983.

            Ocorre que, a par das "estranhezas" de alguns, melhor oportunidade não poderia ter surgido, senão pela promulgação da Resolução nº 71, de 2005, menos de dois meses após o insucesso do setor exportador na querela judicial com a Receita perante o STJ. Com efeito, quando do julgamento do Recurso Especial 541.239-DF, interposto pela Fazenda Nacional contra a empresa Selectas S/A Indústria e Comércio de Madeiras, uma vacilante e incompleta Primeira Seção [12] perfilhou, por cinco votos a três, a tese fazendária de que, com a inconstitucionalidade parcial da delegação ministerial nos DL 1.724/79 e 1.894/81, restaria em vigor o Decreto-Lei 1.658/79, que fixou a data fatal de vigência do estímulo fiscal em 30 de junho de 1983.

            Contrariando vozes duvidosas, o eminente relator salientou que o Senado Federal tem a faculdade de editar a referida resolução no momento que julgar adequado, segundo seus próprios e políticos critérios, tendo sempre em vista o interesse público e a relevância social. Pode, inclusive, recusar-se a editar a resolução senatorial, como já o fez o senador Amir Lando há mais de uma década, quando apresentou parecer pelo arquivamento do OFS 38, 1993 (parecer-CCJ n.º 395, de 2003).

            No caso presente, diante de tanta controvérsia, sem nem mesmo um consenso jurisprudencial do Tribunal guardião da legislação federal, o Senado Federal houve por bem posicionar-se perante a sociedade brasileira, expondo seu próprio e pertinente entendimento acerca da vigência do crédito-prêmio do IPI no sistema legislativo nacional. Com muita clareza e propriedade, o senador estampou no parecer a razão dessa medida inovadora:

            "O objetivo dessa cautela é o de evitar dúvida ou confusões por parte dos jurisdicionados quando da interpretação e aplicação das normas em apreço, obstando sobretudo a proliferação de litígios entre os interessados. As normas proscritas do sistema jurídico (por inconstitucionais) guardam correlação com o multicitado Decreto-Lei nº 491/69, que por elas não foi afetado, mantendo-se a vigência daquele diploma.

[...]"

            Ora, sendo o Senado Federal uma Casa eminentemente legislativa, não poderia ter sido outro o fator propulsor dessa iniciativa senão as motivações políticas que levaram o senador Amir Lando e a própria CCJ a apresentar e aprovar, à unanimidade, o parecer que deu origem ao texto resolutivo.

            A doutrina dominante entende ser a resolução senatorial um ato discricionário e, pois, facultativo. O parecer, inclusive, baseia-se na própria estrutura regimental do Senado para justificar essa conclusão:

            "De fato, como bem salientou o eminente Procurador-Geral da República, entendemos não se tratar de ato automático, seja pela evidente ausência de imposição – a Constituição somente confere essa atribuição privativa no inciso X do artigo 52, mas não volta a disciplinar a questão em momento algum do seu texto máximo – seja pela exegese da própria norma regimental desta Casa, que submete a questão à deliberação dos membros desta CCJ, exigindo aprovação por maioria simples. Ora, resta fincado o juízo político da matéria, posto que é regimentalmente possível a rejeição do projeto de resolução pelos próprios membros da Comissão competente, conforme critérios de conveniência e oportunidade que lhe são exclusivos e legítimos."

            De fato, fosse ato obrigatório, não poderia estar sujeito à deliberação dos senadores que compõem a CCJ, pois, conforme dispõe o Regimento daquela Casa legislativa, as proposições legislativas submeter-se-ão à apreciação dos órgãos competentes, ou seja, serão submetidas à votação e aprovação.

            Se, portanto, o relator apresentar relatório e voto favorável à edição da resolução suspensiva, é possível que a Comissão, investida de orientação política diversa, rejeite o relatório apresentado e não se decida pela apresentação de um novo texto. Sendo as motivações políticas e sociais fortes o suficiente, esse quadro é regimentalmente possível – daí firmado o juízo político que permeia as atividades do Senado.

            Portanto, não há qualquer "estranheza" no fato de que a CCJ somente aprovou a matéria após o fracasso no STJ.

            Pelo contrário, aquela Corte superior, na tentativa de "pacificar" a questão, na verdade promoveu e ampliou a insegurança jurídica que ronda o setor exportador nacional. Isso porque a orientação daquele Tribunal vinha sendo remansoso no sentido de reconhecer a vigência do crédito-prêmio de IPI. No entanto, "estranhamente" a Primeira Turma mudou seu entendimento, conduzida por argumentos frágeis em relação à hermenêutica jurídica realizada.

            Essa repentina mudança de posicionamento jurisprudencial fragilizou demasiado o setor, pois o valor envolvido atinge cifras e contratos internacionais bilionários e, tratando-se de negociações externas, a instabilidade jurídica nacional é vista como variável negativa para sua concreção.

            Assim, visando retomar o seu legítimo papel constitucional de preservar sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros Poderes [13], assim como resgatar sua função social de zelar pela Constituição e pelos interesses sociais majoritários, é que o Senado Federal aprovou a resolução senatorial. Nas palavras do Profº Ives Gandra da Silva Martins [14], "preservou-se, com a Resolução n. 71/05, a competência normativa do Congresso Nacional."

            Não sem respaldo constitucional. Não sem respaldo social.

            III.4. Natureza e significado da expressão preservadora.

            A todo momento o parecer da CCJ deixou claro em seu relatório: trata-se de pressuposto necessário de juízo positivo (do Senado) para dar eficácia erga omnes à legislação negativa (do Supremo).

            Com efeito, o Senado Federal, ao receber os Ofícios "S" do Supremo Tribunal Federal, deparou-se com uma situação de enorme relevância social, carecedora de efetivo esclarecimento normativo.

            Na qualidade de Casa legislativa, houve por bem exercitar a sua atribuição constitucional para conceder publicidade às decisões do STF, não sem antes analisar dois aspectos fundamentais: (i) conseqüências concretas das declarações de inconstitucionalidade entre os litigantes; e (ii) necessidade e utilidade da intervenção senatorial.

            Em relação ao primeiro ponto, conforme já discorremos acima, o STF reconheceu às empresas litigantes o direito à compensação do crédito-prêmio de IPI de forma que, implicitamente, a coisa julgada material ali formada reconheceu a vigência do estímulo fiscal, até por questões de harmonia e razoabilidade.

            A esse respeito, Gabriel Lacerda Troianelli [15], com agudez inquestionável, destrinçou os limites da decisão proferida no RE 180.828, o leading case apreciado pelo STF sobre crédito-prêmio de IPI:

            "A partir do momento em que a decisão do Supremo Tribunal Federal no

leading case sobre o crédito-prêmio de IPI – que foi o Recurso Extraordinário nº 180.828, base da Resolução nº 71/2005 – não afirmou expressamente a vigência do crédito-prêmio de IPI em período posterior a junho de 1983, é necessário recorrermos ao contexto em que se deu a decisão para descobrirmos o seu exato conteúdo.

            No caso, a simples leitura da petição inicial do processo que resultou no Recurso Extraordinário nº 180.828 já é suficiente para nos dar uma resposta segura e conclusiva, pois ela mostra que a lide refere-se a períodos posteriores a 30 de junho de 1983, uma vez que a petição inicial, datada de cinco de maio de 1986, tinha o seguinte pedido:

            "Requer seja declarada a existência do direito da A. de continuar auferindo os estímulos decorrentes da exportação de seus produtos ao exterior, nos termos do Decreto-Lei nº. 491/69, aplicando-se as alíquotas para este efeito consolidadas na Resolução do CIEX nº. 02/79, a partir de maio de 1985, sem a extinção do incentivo prevista na Portaria Ministerial nº. 176/84, mediante requerimento administrativo, na forma estabelecida na legislação do IPI, devidamente corrigidos monetariamente segundo os índices de variação das ORTNs e OTNs e acrescidos de juros moratórios e compensatórios, a contar da data em que os mesmos poderiam ter sido gozados."

            Dessa forma, não pode haver dúvida de que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº. 180.828-4/RS, e transitada em julgado, assegurou à parte a fruição dos créditos-prêmio gerados, de acordo com o pedido, a partir de maio de 1985.

            Assim, mesmo antes da Resolução nº 71/2005, não se poderia conceber que outros exportadores que igualmente pretendiam ver reconhecida a vigência do crédito-prêmio depois de maio de 1985, em vez de se beneficiarem da possibilidade de vitória trazida pelo leading case julgado pelo Supremo Tribunal Federal, fossem por ele prejudicados, de forma que só tivessem o crédito-prêmio reconhecido até junho de 1983.

            Nessa hipótese absurda, o exportador que, inconformado com a extinção do crédito-prêmio em abril de 1985, tivesse ajuizado ação contra a inconstitucionalidade da sua extinção e se sagrasse vencedor, seria punido pela sua vitória judicial, já que esta lhe concederia o direito ao crédito somente até 30 de junho de 1983, configurando uma litigatio in pejus."

            O ilustre tributarista recobre-se de razão ao infirmar essa opinião. Às empresas litigantes foi assegurado, por decisão judicial transitada em julgado, o direito de compensar os créditos de IPI com origem no DL 491/69. Assim, o Senado Federal veio ratificar essa conclusão judicial do Supremo, concedendo-lhe ampliativos efeitos jurídico-normativos.

            Em relação ao segundo ponto, temos que a ressalva constitui elemento necessário e anterior a partir do qual somente então o Senado Federal poderia exercer sua atribuição constitucional. Primeiramente, por mera questão de lógica jurídica: não se faria necessário suspender a execução de delegações inconstitucionais para manipular um estímulo fiscal inexistente. Em segundo lugar, em razão da profunda exegese acerca do resíduo legal disciplinador do estímulo fiscal – somente o juízo positivo de vigência do estímulo fiscal daria substrato para a suspensão da eficácia da delegação ministerial. Em terceiro lugar, fez-se imprescindível a explicitação normativa para espalmar as dúvidas acerca de sucessivas e implícitas revogações e inconstitucionalidades que, de certo, somente contribuem para incerteza jurídica e social.

            De toda forma, é certo que o significado da ressalva é o de conferir vigência ao estímulo fiscal.

            Além da clara redação que se apresenta, a resolução conta ainda com o seu preâmbulo, já analisado anteriormente, que, de forma ainda mais esclarecedora, afirma a vigência ao estímulo fiscal conhecido como "crédito-prêmio de IPI" face ao rol de normas legais que elenca, desde o DL 491/69 até a Lei Ordinária nº Lei nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004.

            Não bastasse isso, o parecer da CCJ evidencia a plena vigência do estímulo fiscal, como que de forma a cauterizar as dúvidas sobre o tema. Portanto, não sobejam dúvidas sobre o significado da expressão contida ao final do art. 1º.

            III.5. Alcance da ressalva contida no art. 1º, in fine.

            Fato curioso é a redação final dessa frase: "...preservada a vigência do que remanesce..." Tal como exposta, pode conduzir ao equivocado entendimento de que a resolução acometeu-se de imprecisa redação, pois, afinal, o que remanesceu das declarações de inconstitucionalidades nos respectivos DL atingidos foi a delegação ministerial para "aumentar", vez que "suspender", "extinguir" e "diminuir" não sobreviveram ao crivo do controle difuso do Supremo.

            Se nos detivermos somente ao texto puro e simples do corpo legislativo da Resolução, podemos chegar àquela errônea conclusão. Ocorre que, analisando outros aspectos, como o preâmbulo e o parecer da CCJ, somos indubitavelmente conduzidos à conclusão de que o senador Amir Lando de fato quis traduzir, no texto da resolução senatorial, a sobrevivência do estímulo fiscal face à vigência do art. 1º do DL 491/69 conferida pelo resíduo legal que o disciplina.

            Ao referir-se ao que "remanesce" do indigitado dispositivo legal, o senador fez menção a duas evoluções legislativas que o atingiram: (i) o art. 5º do DL 1.722/79, que expressamente revogou os §§ 1º e 2º do art. 1º do DL 491/69; e (ii) o art. 1º, caput, do DL 1.894/81, que tacitamente derrogou o caput do art. 1º do DL 491/69.

            De fato, os dois parágrafos tratavam da forma de utilização do incentivo fiscal. Entretanto, com a edição do DL 1.722/79, pela primeira vez delegava-se ao Poder Executivo o estabelecimento da forma, das condições e do prazo de utilização do crédito, vindo enfim o seu art. 5º a expressamente revogar os §§ do art. 1º do DL 491/69.

            Já o DL 1.894/81, muito embora tenha mantido a delegação de competência para o Ministro da Fazenda – o que foi considerado inconstitucional –, não fixou prazo para a vigência temporal do estímulo fiscal, a qual se tornou indeterminada, sendo a percepção do crédito-prêmio atribuída com exclusividade às empresas comerciais exportadoras, estendendo ainda o benefício a todos os produtos nacionais, sem qualquer discriminação:

            (DL 491/69)

            Art. 1º. As empresas fabricantes e exportadoras de produtos manufaturados gozarão, a título estimulo fiscal, créditos tributários sobre suas vendas para o exterior, como ressarcimento de tributos pagos internamente.

            (DL 1.894/81)

            Art 1° Às empresas que exportarem, contra pagamento em moeda estrangeira conversível, produtos de fabricação nacional, adquiridos no mercado interno, fica assegurado:

             .......................................................................................................

            II - o crédito de que trata o artigo 1° do Decreto-Lei n° 491, de 5 de março de 1969.

            Portanto, o que "remanesce" do art. 1º do DL 491/69, conforme consignado na resolução suspensiva, é a plena vigência do direito de gozo de créditos tributários incidentes sobre vendas para o exterior de quaisquer produtos de fabricação nacional, sem qualquer discriminação.

            Esse é o verdadeiro alcance da expressão consignada ao final do art. 1º da Resolução n.º 71/05.

            III.6. Obrigatoriedade de observância pelos Três Poderes.

            Outra questão que ora se formula é a seguinte: deverão os demais Poderes do Estado respeitar a Resolução? A resposta a essa pergunta encontra desde alicerces jusfilosóficos como também fundamentação constitucional.

            Trata-se, como já visto, de ato legislativo exclusivo, entre cujas características está a de externar com efeitos erga omnes o exercício de atribuição constitucional exclusiva do Senado Federal. Dessa forma, sendo espécie de norma jurídica e tendo eficácia contra todos, não se pode furtar a obedecê-la, sob pena de o infrator ferir a harmonia dos Poderes e inutilizar o objetivo social e institucional de cada um: a concreção do Bem Comum.

            A esse respeito, oportunas as palavras do Prof.º Clèmerson Merlin Clève [16]:

            "A Constituição brasileira, ao consagrar o princípio da separação de poderes, estabelece que eles não somente são independentes, uma vez que deliberam e agem, em esferas por ela determinadas, por autoridade própria, não se subordinando a nenhum outro, mas, também, são harmônicos, na medida em que se entendem, auxiliam-se, colaborando e se complementando ao visar a idêntico escopo: a satisfação dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e dos direitos fundamentais. Sendo, no entanto, que a colaboração não se dá mediante a redução ou supressão de competências, prerrogativas, tampouco por meio da inércia no seu exercício. Bem pelo contrário, atrela-se, a harmonia entre eles, à estrita, fiel e permanente observância da independência e da competência constitucionalmente conferida a cada um."

            De fato, estamos diante de uma resolução do Senado que tem força coativa própria e excepcional. Trata-se de ato normativo exclusivo que vem atingir o sistema legislativo nacional, extirpando-lhe a eficácia de textos inconstitucionais através da suspensão de sua execução.

            Tal é a eficácia e a coercitividade do ato normativo que nenhum indivíduo ou órgão sob a tutela do Estado pode mais agir com base nos textos legais cuja execução encontra-se suspensa.

            Ora, se a resolução encontra esse poder que lhe foi concedido pela própria Constituição, temos que todo o seu texto deve ser observado, não somente a parte suspensiva, mas também a parte preservadora. Isso porque, conforme já dissemos, um é pressuposto obrigatório do outro, sem o qual não se poderia ter agido daquela forma.

            Portanto, devem os demais Poderes observarem a Resolução nº 71/05, tendo em vista seu valor legal e eficácia erga omnes. Acaso se questione a constitucionalidade da resolução, essa discussão deverá ser conduzida no foro adequado, cujo órgão judiciário competente (STF) somente poderá manifestar-se se provocado. Além disso, somente após o trânsito em julgado de uma eventual decisão declaratória positiva ou negativa é que a Resolução poderá ser ratificada ou cassada.

            Corroboram esse entendimento diversos juristas. Entre esses, destacamos os ensinamentos do Prof.º Ives Gandra da Silva Martins [17]:

            "Em outras palavras, a partir da resolução 71/05 fica definitivamente estabelecido que o crédito prêmio sempre esteve em vigor, não podendo mais prevalecer a interpretação do Superior Tribunal de Justiça, que apresenta inequívoco conflito com a Resolução n. 71/05, assumindo, o Superior Tribunal de Justiça a função que não tem, de legislador positivo. A Resolução n. 71/05 é, portanto, constitucional e as decisões daquele Tribunal perdem eficácia, podendo ou ser revistas pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, ou pelo Supremo Tribunal Federal, mas, à nitidez, não mais prevalecendo sua sinalização jurisprudencial. Ou a Resolução n. 71/05 é inconstitucional – que não é – e só o Pretório Excelso poderá declarar sua inconstitucionalidade, com eficácia "erga omnes", ou é constitucional e tem plena validade, sendo que, pelo gozo de presunção de legalidade, até eventual e improvável declaração de inconstitucionalidade, tem plena vigência, validade e eficácia.

            (...)

            Se não for considerada inconstitucional, a Resolução, – que não é, a meu ver, como demonstrei no corpo do presente parecer – todos os Poderes estão obrigados a respeitá-la"

            A seu turno, outro grande especialista no tema, o tributarista Gabriel Lacerda Troianelli, ao concluir sua análise acerca da Resolução senatorial em interessante palestra realizada recentemente, asseverou taxativamente:

            "Conclui-se, portanto, que, a partir da Resolução nº 71/2005, não poderá mais órgão algum do Poder Judiciário, nem mesmo o Superior Tribunal de Justiça, legitimamente decidir no sentido da extinção do crédito-prêmio em junho de 1983, pois estaria, assim, a conflitar com o precedente do Supremo Tribunal Federal, cuja observância tornou-se obrigatória por força da mencionada resolução."

            Assim, conforme amplamente demonstrado, a Resolução n.º 71/05 deve ser observada por todos, transferindo-se eventual discussão acerca do crédito-prêmio de IPI à competência do Supremo Tribunal Federal, que, quando instado, deverá manifestar-se ratificando a validade da resolução senatorial.


III – Conclusão

            O assunto é polêmico. Há décadas as empresas exportadoras e a União travam disputas judiciais e extrajudiciais sobre a vigência do crédito-prêmio de IPI. Não bastasse isso, o Senado Federal utilizou sua legítima e constitucional atribuição para conferir publicidade à decisão do Supremo em controle concreto de constitucionalidade. Entretanto, inovou em matéria legislativa, ao consignar no texto da resolução suspensiva a preservação de vigência do objeto normativo atingido indiretamente pela suspensão de eficácia das normas viciadas.

            E assim agiu não por mero capricho, mas com a seriedade e a legitimidade necessárias para elucidação da controvérsia jurídica que incidia sobre o resíduo legal disciplinador do estímulo fiscal. Agiu com base tanto em argumentos jurídicos como políticos, sociais e econômicos. Mas agiu corretamente. Disso não restam dúvidas.

            A Resolução nº 71/05 torna-se, portanto, mais um subsídio de que poderão valer-se as empresas exportadoras na defesa do seu interesse. Como o próprio STJ não conseguiu ainda pacificar definitivamente a matéria, apesar da decisão (ainda não transitada em julgado) da Primeira Seção, eventuais mudanças na composição das Turmas e, pois, da própria Seção poderão provocar também reflexos no entendimento da questão, revertendo, quem sabe em um futuro próximo, o atual e provisório quadro negativo em favor do setor exportador nacional.

            Ao senador Amir Lando, bem assim a todo o Senado Federal, representado na pessoa de seu atual Presidente, senador Renan Calheiros, compete-nos direcionar nossos cumprimentos, parabenizando-os pela oportuna iniciativa, que, conforme se espera, reacenderá os debates sobre a vigência desse "dionisíaco" estímulo fiscal – aqui apenas uma pequena referência ao controvertido deus grego, ao mesmo tempo amado e odiado por todos, jamais compreendido na plenitude de suas virtudes.


Notas

            01

Art. 178. Declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade, na forma prevista nos arts. 176 e 177, far-se-á comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 42, VII, da Constituição. (Atual dispositivo: art. 52, inc. X)

            02

In: Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 37.

            03

Nas palavras de Chaïm Perelman, um legislador sensato "não pode regulamentar uma mesma situação de duas maneiras incompatíveis".

            04

TRF 1ª Região, AC 96.01.54413-5/DF; apelação cível, Rel. Juiz Tourinho Neto, publicada no DJ 01/03/2000, p.19.

            05

Tipo de argumento segundo o qual se supõe que "o legislador é sensato e que jamais poderia ter admitido uma interpretação da lei que conduzisse a conseqüências ilógicas ou iníquas" (op. cit.);

            06

Op. cit. p. 80.

            07

In: Parecer doutrinário de 9.jan.2006.

            08

Op. cit. p. 5.

            09

Op. cit. p. 6.

            10

Apud FREIRE, Natália de Miranda. Técnica e processo legislativo: comentários à Lei Complementar n. 95/98. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 115.

            11

In: Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 524.

            12

Dois ministros não ofertaram votos: o saudoso Min. Franciulli Neto, que estava ausente por licença médica em razão do câncer que lhe tirou a vida e a Min. Eliana Calmon, que presidiu a sessão.

            13

CF, art. 49, inc. XI.

            14

"Efeitos da Resolução n. 71/05 do Senado Federal sobre o crédito-prêmio do Decreto-Lei n. 491/69 – vigência, eficácia e validade do referido Decreto-Lei por tempo indeterminado – parecer." p. 57.

            15

"Crédito-Prêmio de IPI – Os Efeitos da Resolução nº 71/2005 do Senado Federal". p. 24.

            16

"Resolução 71/2005 do Senado Federal e crédito-prêmio de ipi". p. 2

            17

Op. cit. pp. 53-54.
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Sobre o autor
Fabrício da Mota Alves

Advogado e consultor jurídico, sócio do escritório Degrazia & Advogados Associados, associado à Banca Consultoria Empresarial, Professor de Direito Constitucional e Coordenador do curso de Pós-Graduação lato sensu em Dir. Constitucional Aplicado do Instituto Posead/UGF/FGF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Fabrício Mota. Comentários sobre a Resolução do Senado Federal nº 71/2005. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 959, 17 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7979. Acesso em: 27 abr. 2024.

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