I – O CONCEITO DE ORÇAMENTO
Costuma-se dizer que orçamento é o processo e o conjunto integrado de documentos pelos quais se elabora, se expressa, se aprova, se executa e se avalia os planos e programas de obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa de receita e fixação de despesas de cada exercício financeiro.
O orçamento, além de ser peça pública, deve ser apresentado em linguagem clara e compreensível a todas as pessoas e suas estimativas devem ser tão exatas quanto possível, de forma a garantir à peça orçamentária um mínimo de consistência.
Fala-se na natureza jurídica do orçamento.
A primeira corrente nasceu do jurista alemão Hoennel, que entende que o orçamento é sempre uma lei, na medida em que emana de um órgão legiferante, isto é, o Poder Legislativo. Por tal razão, afirma Hoennel que tudo aquilo que é revestido sob a forma de lei constitui-se em preceito jurídico, pois a forma de lei traz em si mesma o conteúdo jurídico. Nesse aspecto, qualquer lei traria inserta um comando normativo. Esta tese sofreu críticas porque classificava as normas jurídicas segundo a origem, não levando em conta o conteúdo jurídico.
A segunda corrente veio a partir de Paul Laband como resistência à anterior, entendendo que o aspecto formal não poderia, por si só, fazer do orçamento uma lei, tomando esta palavra em seu sentido material. Nesse sentido, afirma que a utilização da forma legal em nada altera o conteúdo do orçamento, não suprindo a ausência do preceito jurídico. Assim, entende que o orçamento apresenta extrinsecamente a forma de uma lei, mas seu conteúdo é de mero ato administrativo. Logo, o orçamento seria, então, apenas lei em sentido formal, materialmente não constituindo regra de direito.
A terceira corrente é liderada por Léon Duguit, que identifica, na peça orçamentária, uma mescla de lei em sentido formal e material, considerando o orçamento, em relação às despesas e às receitas originárias, um mero ato administrativo e, em relação à receita tributária, lei em sentido material, já que a arrecadação tributária dependeria de autorização orçamentária. Pelo que se observa, Duguit analisou ordenamentos jurídicos em que a autorização para a cobrança de tributos obedece ao princípio da anualidade tributária, que exige a prévia inclusão de autorização no orçamento como condição à cobrança de tributo.
A quarta corrente, por sua vez, originou-se de Gaston Jèze criador do conceito do ato-condição, defendendo a tese que o orçamento não é lei em sentido material em nenhuma de suas partes, embora tenha o aspecto formal e a aparência de lei. Afirma que tanto em relação às despesas quanto no que concerne às receitas, seria o orçamento apenas lei formal, mas com o conteúdo de mero ato-condição, sendo a lei orçamentária, em qualquer caso, o implemento de uma condição para a cobrança e para o gasto.
Como modelo autorizativo, tem-se o orçamento como lei formal, daí as ideias trazidas por Ricardo Lobo Torres (Curso de direito financeiro e tributário, 2011):
"Em suma, e inserindo-nos na discussão, basta a afirmação de que se cuida de lei em sentido formal, que estabelece a previsão de receitas e despesas, consolidando posição ideológica governamental, que lhe imprime caráter programático. Ao lado de ser lei, é o orçamento plano de governo, mas que deve possuir previsões efetivas de ingressos públicos e previsões reais de despesa, equilibradas com aqueles".
Mas o orçamento é uma peça que é formalmente instrumentalizada por meio de lei, mas, que, materialmente, se traduz em ato politico-administrativo. Tem-se a posição do Supremo Tribunal Federal já delineada:
II - A IDEIA DE UM ORÇAMENTO IMPOSITIVO
A legislação e a execução prática do orçamento da União, no Brasil, consideram a despesa fixada na lei orçamentária como uma “autorização para gastar”, e não como uma “obrigação de gastar”. Isso abre espaço para que o Poder Executivo não realize algumas despesas previstas no orçamento. Trata-se do chamado “orçamento autorizativo”, no qual parte das despesas pode ser “contingenciada”.
A ideia de “orçamento impositivo” é mudar essa prática, tornando obrigatória a execução de todo o orçamento nos termos em que ele foi aprovado pelo Congresso Nacional.
“Orçamento impositivo” quer dizer que o gestor público é obrigado a executar a despesa que lhe foi confiada pelo Legislativo. Que apenas alguma coisa muito excepcional poderia liberá-lo desse dever.
O Congresso aprovou a Emenda Constitucional 86, que criou o instituto do orçamento impositivo peculiar, pois em vez de aprovar uma norma que realmente obrigasse o Poder Executivo a cumprir as leis orçamentárias, foi aprovada uma emenda constitucional que obriga o Poder executivo a cumprir as emendas parlamentares, que se caracterizam como uma pequena parte do orçamento, e vinculada a interesses eleitorais dos próprios parlamentares.
Fala-se que hoje o orçamento não é mais autorizativo, mas impositivo.
A matéria foi discutida em PEC cujo objetivo não foi tornar obrigatório a execução de toda a despesa do orçamento.
A Emenda 86, promulgada em 17 de março de 2015, basicamente altera e insere alguns parágrafos e incisos nos artigos 165 e 166, referentes à vinculação de recursos para a execução de emendas parlamentares individuais, e altera o artigo 198 da Constituição Federal para estabelecer 15% de vinculação de recursos da União para os programas e ações de saúde.
Com as Emendas Constitucionais 100/ 2019 e 102/2019, tornou-se literalmente obrigatória a execução plena do Orçamento, e não apenas as provenientes de emendas parlamentares individuais ou de bancada. O novo § 10 do art. 165 impõe à Administração, sem se limitar às emendas, o dever de executar obrigatoriamente as programações orçamentárias, para garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade. Em seguida, o § 11 estabelece as exceções ao Orçamento impositivo, a fim de assegurar o equilíbrio fiscal.
O Orçamento público impositivo é um instrumento democrático e fundamental para o desenvolvimento da nação brasileira, e a execução orçamentária em sua plenitude, ressalvadas as limitações legais, financeiras ou técnicas, é um imperativo para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Do contrário, teríamos um orçamento que seria mera “obra de ficção”.
No que se refere à vinculação criada para financiar as emendas parlamentares individuais, as alterações são as seguintes:
1) Foi estabelecida uma vinculação de receitas para gastos com emendas parlamentares individuais no percentual de até 1,2% da receita corrente líquida prevista no Projeto de Lei Orçamentária enviado pela União (o que, considerados os valores de 2014, se aproximaria de R$ 8 bilhões), sendo que metade desse percentual deverá ser destinado a ações e serviços públicos de saúde (artigo 166, parágrafo 9o), inclusive para custeio, sendo vedado seu uso para pagamento de despesas com pessoal ou encargos sociais (artigo 166, parágrafo 10). Este valor destinado à saúde será considerado no montante anual que a União obrigatoriamente deve despender (artigo 166, parágrafo 10).
2) Este percentual de 1,2% é de obrigatória execução financeira e orçamentária, consoante vier a ser estabelecido através de uma lei complementar a ser editada que determinará a execução equitativa da programação orçamentária (artigo 166, parágrafo 11), entendido o conceito de “execução equitativa” como “a execução das programações de caráter obrigatório que atenda de forma igualitária e impessoal às emendas apresentadas, independentemente da autoria” (artigo 166, parágrafo 18). Nesse percentual devem ser considerados os “restos a pagar” até o limite de 0,6% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior (artigo 166, parágrafo 16).
3) A obrigatoriedade de execução orçamentária cessa quando ocorrer impedimento de ordem técnica (artigo 166, parágrafo 12), entendido como aquele que impeça a realização do empenho da despesa. Este impedimento deverá ser formalmente comunicado ao Poder Legislativo no prazo de 120 dias da promulgação da lei orçamentária pelos Poderes Executivo ou Judiciário, pelo Ministério Público ou Defensoria Pública (artigo 166, parágrafo 14, I). O texto menciona que até mesmo o Poder Legislativo deverá comunicar esse fato ao Poder Legislativo, o que é algo bizarro.
Sendo insuperável o impedimento apontado, o Poder Legislativo, em 30 dias, indicará ao Poder Executivo o remanejamento da programação orçamentária daquela verba (artigo 166, parágrafo 14, II), o qual deverá encaminhar esta reprogramação como projeto de lei em até 30 dias, ou até a data de 30 de setembro (artigo 166, parágrafo 14, III).
Quando os recursos desta vinculação para financiamento das emendas parlamentares individuais forem destinados a Estados, Distrito Federal ou Municípios, sua transferência não dependerá da adimplência do ente federativo destinatário dos recursos e também não integrará a base de cálculo da receita corrente líquida para fins de aplicação dos limites de despesa de pessoal de que trata o caput do artigo 169, o que é regulado pelos artigos 19 e 20 da Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 166, parágrafo 16).
Esta vinculação de 1,2% poderá ser contingenciada, na forma do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, caso haja ameaça do descumprimento da meta de superavit primário estabelecido no anexo de metas fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias, o que demonstra que até mesmo os interesses eleitorais cessam quando entra em questão o pagamento dos credores públicos (artigo 166, parágrafo 17).
O percentual de 15% estabelecido pela EC 86 será alcançado de forma gradual, sendo 13,2% em 2016; 13,7% em 2017; 14,1% em 2018; 14,5% em 2019 e apenas em 2020 será aplicado o percentual de 15% da receita corrente líquida em ações e serviços de saúde de forma plena (artigo 2º, da EC 86). No cômputo desse montante foram incluídos os valores arrecadados de royalties do petróleo e a parcela das emendas parlamentares destinadas à ações e serviços de saúde.
A referida Emenda Constitucional 86 diz respeito à vinculação de recursos da União para os programas e ações de saúde. Foi estabelecido que a União deverá aplicar montante não inferior a 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro (artigo 198, parágrafo 2o, I).
Este preceito cria uma mecânica normativa vinculando um percentual da receita pública ao financiamento da saúde, sendo que a sistemática anterior, revogada pela EC 86, transferia a uma lei complementar esta fórmula, que obedecia a um cálculo incremental, sem percentual estabelecido, e com um “efeito catraca” para resguardar eventuais recuos do PIB.
Trata-se, portanto, de uma Emenda Constitucional que vincula recursos do orçamento da União para os gastos que vierem a ser estabelecidos pelos parlamentares para atendimento de suas bases eleitorais. Ou seja: submete o relacionamento entre o Congresso e o Executivo ao sistema de barganha.
Essa Emenda 86 se soma a outra envolvendo o teto de gastos. Trata-se da Emenda Constitucional 95/2016, que limita por 20 anos os gastos públicos.
De acordo com o texto, a partir de 2018, os gastos federais só poderiam aumentar de acordo com a inflação acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Algumas despesas não vão ficar sujeitas ao teto. É o caso das transferências de recursos da União para estados e municípios. Também escapam gastos para realização de eleições e verbas para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Profissionais da Educação Básica (Fundeb).
III - AS DESPESAS EM EDUCAÇÃO E SAÚDE COMO GARANTIAS INSTITUCIONAIS
Saúde e educação também terão tratamento diferenciado. Esses dois pontos vêm gerando embates entre governistas e oposição desde que a PEC foi anunciada pelo presidente Michel Temer. Para 2017, a saúde teria 15% da Receita Corrente Líquida, que é o somatório arrecadado pelo governo, deduzido das transferências obrigatórias previstas na Constituição.
A educação, por sua vez, ficaria com 18% da arrecadação de impostos. A partir de 2018, as duas áreas passariam a seguir o critério da inflação (IPCA).
A discussão não para aí, como descreveu o jornal O Globo, em sua edição de 26 de março do corrente ano:
“O Congresso lançou mão de uma estratégia típica da “velha política”: desengavetou uma proposta de 2015 — uma emenda constitucional (PEC)— para tornar o Orçamento ainda mais impositivo (mais rígido), o que vai contra uma das principais bandeiras de Guedes, que é desvincular e desindexar todas as despesas. Em um trâmite acelerado, o texto foi aprovado em duas votações no plenário da Câmara ontem à noite, como apoio até do partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL. Na primeira votação, foram 448 votos a favor e três contra. Na segunda, 453 deputados foram a favor; seis, contra, e houve uma abstenção.
Com a proposta, cada Estado ganha ao menos R$ 125 milhões com emendas impositivas, que têm execução obrigatória. A rigidez orçamentária aumenta de R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões, dizem fontes. Ainda é preciso passar pelo Senado.”
Em matéria de direitos sociais, como educação e saúde, proíbe-se o retrocesso.
As despesas obrigatórias, com limites mínimos para educação e saúde pública, não podem ser modificadas uma vez que envolvem garantias institucionais.
A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza.
Temos uma garantia contra o Estado e não através do Estado.
Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmitt.
Ora, se assim é a garantia institucional na medida em que assegura a permanência da instituição, embaraçando a eventual supressão ou mutilação, preservando um mínimo de essencialidade, um cerne que não deve ser atingido ou violado, não se pode conceber o perecimento desse ente protegido. J.H. Meirelles Teixeira ( Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Forense Universitária, 1ª edição, 1991, pág. 696) prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos.
Tais direitos se materializam quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato.
São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt:
a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida;
b) a proteção jurídico-constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins;
c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele;
d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição;
É um embate entre governo, com sua proposta de política neoliberal e não vinculação de despesas, e um Congresso que parece estar em caminho oposto.