O poder de tributar é decorrente do poder de império do Estado, sendo uma manifestação de sua soberania. No Brasil, a Constituição delimitou a competência tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, circunscrevendo a esfera de atuação de cada uma dessas entidades jurídico-políticas, no que concerne à instituição e conseqüente cobrança dos tributos. Para identificar claramente os limites demarcatórios da competência tributária, em diversas situações o constituinte estabeleceu expressamente o impedimento do legislador ordinário instituir tributo sobre determinadas pessoas, bens e situações, o que se denomina imunidade.
A conceituação de imunidade tributária e a sua justificativa são os pilares centrais desta pesquisa porque ensejarão a compreensão da aplicabilidade e alcance dos direitos previstos no artigo 5º, XXXIV, da Constituição.
Sacha Calmon Navarro Coelho a define como, "uma heterolimitação ao poder de tributar. A vontade que proíbe é a do constituinte. A imunidade habita exclusivamente no edifício constitucional". [44]
Para Hugo de Brito Machado é "uma proibição ao legislador, que exclui do âmbito no qual ele pode atuar, criando tributo, sobre certas pessoas, ou certos fatos. Assim, a imunidade é anterior à criação do tributo. É anterior à definição de quem deve pagar, e dos fatos sobre os quais pode ser cobrado". [45]
Por seu turno, Yoshiaki Ichihara explica que "são normas da Constituição Federal, expressas e determinadas, que delimitam negativamente, descrevendo os contornos às normas atributivas e dentro do campo das competências tributárias, estabelecendo e criando uma área de incompetência, dirigidas às pessoas jurídicas de direito público destinatárias". [46]
À vista do exposto, deduz-se que as imunidades são prescrições normativas previstas na Constituição e que estabelecem a incompetência dos entes públicos (União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios) para legislarem sobre determinadas situações, com o intuito de exigir tributo. Trata-se de instituto utilizado pelo constituinte para subtrair uma parte do campo tributável, impedindo no seu nascedouro o surgimento da obrigação tributária. Portanto, se pelo princípio da legalidade tributária é permitido ao legislador ordinário editar lei sobre determinado tributo, a existência de norma imunizante o impede de elencar a situação como potencial fato tributável. Destarte, a Constituição, ao conceder a competência tributária aos entes estatais simultaneamente a reduziu em parte, não sendo possível, na área delimitada pela imunidade, haver lei instituindo tributo, por conseqüência não pode haver obrigação tributária.
Outra questão que suscita divergência diz respeito às imunidades tributárias albergarem apenas os impostos ou se alcançam também as demais espécies de tributos.
Aqueles que pregoam a aplicação deste instituto apenas aos impostos o fazem com base em dois pressupostos básicos: a) que o texto constitucional veiculou no artigo 150, VI, apenas esta espécie de tributos; [47] b) que os impostos foram concebidos para o atendimento das despesas gerais do Estado, diferentemente das taxas e contribuições de melhoria que se destinam a uma prestação individualizada.
Filiado aos defensores de que a mesma vincula-se apenas aos impostos, Ives Gandra da Silva Martins aduz que "há uma razão para que assim seja, posto que as demais espécies são vinculadas a determinadas atividades. As taxas têm ou uma faceta contraprestacional de serviços públicos e divisíveis ou outra de exercício do poder de polícia". [48]
Seguindo outra vertente, José Eduardo Soares de Melo, citado por Ioshiaki Ichihara, enfatiza que não se restringem exclusivamente aos impostos, por dedução do que dispõe o artigo 150, VI da Constituição, mas alcança também as taxas (art. 5º, XXXIV, LXXVI e LXXVII) e as contribuições sociais (art. 195, §7º). [49]
É também o pensamento perfilhado por Paulo de Barros Carvalho ao asseverar que a redução é descabida, restando demonstrado através de diversas normas constitucionais portadoras de imunidade, como por exemplo, para taxas (art. 5º, XXXIV, a e b) e contribuições sociais (art. 195, §7º). Destaca que se de fato o constituinte tracejou de forma extremamente minuciosa e demorada as imunidades relativas aos impostos, subsistem, contudo, alguns comandos normativos que demonstram a sua ocorrência noutras espécies de tributos. [50]
Muito apropriadamente, Roque Antonio Carrazza estabeleceu uma classificação que comporta duas acepções: uma ampla em que a expressão ‘imunidade tributária’ alcança quaisquer tributos e outra restrita, aplicável apenas aos impostos, [51] o que leva a concluir que no seu entendimento a Constituição não reduziu a sua abrangência.
Diversos autores que comungavam a tese da inaplicabilidade das imunidades às demais espécies de tributos, a exemplo de Hugo de Brigo Machado, [52] hoje firmaram pensamento contrário, e o fazem segundo a concepção de que qualquer óbice na utilização deste comando constitucional dificultaria o alcance de certos objetivos considerados relevantes para o Estado.
Por aí se vê que não há impedimento algum a que abriguem, além de situações vinculadas a impostos, outras relacionadas às demais espécies de tributos. O fato de uma espécie tributária, a exemplo da taxa, destinar-se à remuneração de atividades estatais direcionadas individualmente a cada particular não afasta a possibilidade do constituinte preceituar imunidade a fatos ou pessoas por motivo de relevância social. E isto ocorre em diversas situações na Constituição, além das já mencionadas, como no artigo 5º, LXXIII e LXXIV e no artigo 226, §1º.
Por derradeiro, comparando as lições acerca das imunidades e do princípio da capacidade contributiva, é possível concluir que as situações imunizadas não podem sofrer qualquer interferência daquele princípio. O que é imune está fora do campo de competência tributária, isto é, não poderá haver potenciais situações a tributar. Se não comporta tributação é incoerente pensar-se na capacidade contributiva, porque sequer existirão contribuintes. Enquanto o princípio da capacidade contributiva é dirigido ao legislador ordinário, para que o observe na edição de lei que trata da exigência de tributo, a imunidade o proíbe expressamente de atuar na área por ela delimitada.
Outro fato relevante para a compreensão do tema e que ainda é matéria controversa, diz respeito às razões que fundamentam as imunidades tributárias, variando entre aqueles que as justificam sob a ótica jurídica e os que as vislumbram como poderoso instrumento extrafiscal que objetiva o bem-estar social, a proteção dos direitos e liberdades do cidadão, dentre outros valores de substancial importância para a manutenção do Estado.
Para Yoshiaki Ichihara as imunidades tributárias não se fundam em valores ideológicos, sociais, econômicos ou não jurídicos, cabendo ao operador do direito interpretá-las com os argumentos jurídicos, mediante os instrumentos, as regras e as diretrizes fornecidas pela ciência do direito. [53]
Ao se contrapor, Bernardo Ribeiro de Moraes esclarece que "ao lado da busca de recursos públicos para o Estado (finalidade fiscal), a Constituição assegura certos valores sociais e preceitos básicos do regime político (finalidade extrafiscal)". [54] Conclui que, "a imunidade tributária, portanto, vem a ser uma disposição de ordem constitucional no sentido de vedar, às entidades tributantes, a instituição de impostos em relação a determinadas pessoas, bens, coisas ou situações com vista ao resguardo de princípios, interesses ou valores, tidos como fundamentais pelo Estado". [55]
José Eduardo Soares de Melo, citado por Yoshiaki Ichihara, preleciona que "o objetivo da imunidade é a preservação de valores considerados como de superior interesse nacional, tais como a manutenção das entidades federadas, o exercício das atividades religiosas, da democracia, das instituições educacionais, assistenciais e de filantropia, e o acesso às informações". [56]
Nessa linha de interpretação, José Augusto Delgado destaca a posição do Supremo Tribunal Federal, que, em várias oportunidades, tem considerado a imunidade como possuidora de elementos configurantes de "salvaguardas fundamentais de princípios, liberdades religiosas, de manifestação de pensamento, pluralismo político do regime, a liberdade sindical, a solidariedade social, o direito à educação e assim por diante". [57] Acrescenta ainda que "há, portanto, uma razão principiológica de maior alcance presente em qualquer espécie de imunidade que se vincula ao valor que visa a proteger". [58]
Discorrendo sobre o tema, Hugo de Brito Machado comenta que elas "tem por fim a realização de um valor prestigiado pelo constituinte, de sorte que o elemento teleológico é sempre o caminho para a efetiva realização dos valores supremos que o constituinte prestigiou". [59]
Destarte, embora as imunidades retirem a tributação sobre pessoas, bens ou situações que imunizam, norteiam principalmente fins superiores que transcendem aos econômicos, como os relacionados aos interesses sociais, valores éticos e culturais que o Estado pretende proteger ou incentivar. Não têm o condão de atingir apenas as capacidades econômicas e financeiras, mas a salvaguarda de ideais mais elevados, calcados em fundamentos não afetos apenas ao direito tributário.
É que apesar das imunidades estarem relacionadas ao direito tributário, não podem ser avaliadas somente sob este prisma, porque o direito tributário tem seu campo de atuação tracejado pela competência tributária, que como se viu, as situações imunizadas não fazem parte. Deste modo, não é coerente buscar-lhe os fundamentos exclusivamente nesta área. É de se destacar que mesmo em relação às demais desonerações tributárias que são tratadas como um favor ou uma renúncia fiscal, o fundamento por diversas vezes transcende ao econômico. É o caso, por exemplo, da isenção de ICMS e IPI para deficientes físicos que adquirirem veículo automotor em que o fim colimado é oportunizar melhor comodidade a estas pessoas através da redução do preço de aquisição.
No tocante à imunidade de taxa para o direito de petição e obtenção de certidão, o propósito almejado é a facilitação dos meios de acesso aos poderes públicos, como forma de garantir o exercício da cidadania. De fato, a gratuidade destes serviços, reduz os obstáculos que o cidadão encontra ao exigir as providências necessárias para que possa exercitar os seus direitos. Por isso, qualifica-se como importante prerrogativa de caráter democrático e garantidora dos direitos fundamentais do cidadão. Neste contexto, qualquer tentativa de restringir o seu conteúdo na Constituição, ofende na essência os valores que lhe dão sustentação.
2.3 Alcance das normas imunitórias
Ao se pesquisar o alcance das normas que preceituam imunidades, faz-se no sentido de entender se, através da exegese, o intérprete do texto constitucional deve fazê-lo de forma a atingir um significado restritivo ou ampliativo.
A esse respeito, o Professor Ives Gandra Martins, em parecer publicado esclarece que "à evidência, a imunidade não pode ser interpretada de forma restritiva, como é o caso das isenções (art. 111 do CTN), risco de, contra a intentio legis, ser alocada à área de competência impositiva situação intencionalmente colocada fora de sua alçada". [60]
Para o autor, "a relevância é de tal ordem que a jurisprudência tem entendido ser impossível a adoção de interpretação restritiva a seus comandos legais, sendo obrigatoriamente, a exegese de seus dispositivos ampla". [61]
Seguindo a mesma linha, Rogério Vidal Gandra da Silva Martins assim se manifesta:
Percebe-se, assim, que, em todas as imunidades elencadas pelo constituinte, há um claro interesse de assegurar direitos ou incentivar atividades necessárias e vitais à sociedade.
Por serem referidos direitos e atividades de altíssima relevância, têm os Tribunais entendido que, aos comandos constitucionais instituidores de imunidade tributária, somente pode se aplicar a interpretação extensiva, uma vez que, dado ao fato de o Estado estar sempre necessitando de recursos, tendo em vista seu permanente déficit operacional, se se adotasse uma interpretação restritiva dos comandos do art. 150, VI, abrir-se-ia a possibilidade de o Poder Tributante, em suas constantes necessidades fiscais, atingir as atividades e direitos garantidos pelo Texto Supremo, sob a alegação de que as normas instituidoras de imunidade tributária devem ser interpretadas restritivamente. [62]
Contrariando aparentemente estes posicionamentos, Yoshiaki Ichihara, ao tratar do alcance dos direitos contidos no artigo 5º, XXXIV, que preceitua a imunidade para o direito de petição e obtenção de certidões em repartições públicas, discorda que a mesma se aplica indistintamente e exemplifica:
Numa realidade econômica e levando em conta, especialmente, a situação do Poder Público com déficit financeiro crônico, dizer que o homem mais rico do Brasil ou uma grande empresa nacional ou multinacional, apenas para exemplificar, está imune às taxas relacionadas com a petição ou à obtenção de certidões para defesa ou esclarecimento de situações seria um contra-senso e ilógico. [63]
Acrescenta, ainda, que incluir todas as pessoas como beneficiárias desta imunidade fere o princípio da isonomia, por tratar-se igualmente situações desiguais, apesar de concordar que haveria necessidade de uma redação mais explícita e esclarecedora, inserindo-se à redação original a expressão "aos que comprovarem a necessidade". [64]
Para melhor entender a amplitude exegética a que devem ser submetidas às imunidades que tratam de taxas e face à reduzida discussão jurídica em relação a estas, traz-se a lume o pensamento doutrinário acerca da imunidade de impostos preceituada no artigo 150, VI, "d", como subsídio para o tema. Neste dispositivo, a Constituição alberga uma imunidade objetiva para livros, jornais e periódicos, sem nenhuma ressalva sobre o conteúdo ou a natureza dos mesmos, como por exemplo em relação àqueles portadores de matérias ou figuras consideradas pornográficas ou perniciosas por ofenderem a moral e os bons costumes.
Ao se manifestar sobre a sua aplicação aos periódicos, Ricardo Lobo Torres assevera que "o seu conceito é amplo e abrange até mesmo as revistas pornográficas, tendo em vista que a acusação de pornografia sempre serviu de base à opressão da livre manifestação do pensamento e às discriminações no campo da literatura". [65]
Perfilhando a mesma opinião, Pinto Ferreira defende que "a cultura deve desenvolver-se em sua plenitude, com inteira liberdade, sem censura ou licença estatal (CF, art. 5º, IX), não podendo conviver com mecanismos inibitórios, imaginados pelos senhores do poder e da falsa moralidade". [66]
Para Aires Fernandino Barreto "os termos em que vazada a proibição constitucional de instituição de impostos sobre o livro, o jornal e os periódicos não deixam margem à dúvida: essa imunidade não pode sofrer restrições, circunscrições, condições ou ressalvas hermenêuticas. Ampla, irrestrita e incondicionada, há de merecer exegese lata e aberta". [67]
Em suma, com supedâneo nesta imunidade, extraem-se as conclusões necessárias para entender o seu alcance e que podem ser estendidas às demais espécies de tributos, o que possibilita uma melhor avaliação da prescrição contida no artigo 5º, XXXIV, relativo às taxas.
Infere-se que o hermeneuta, ao interpretar as prescrições normativas que tratam de imunidades, não pode pretender restringir o alcance de seus postulados, para os quais o constituinte estabeleceu significado amplo. Embora com ressalvas, Ricardo Lobo Torres destaca que, quando se trata da "compreensão das imunidades e dos direitos fundamentais predomina o princípio do in dúbio pro libertate. Se o intérprete tem dúvida a respeito do significado do texto, deve decidir em favor da solução que melhor garanta a liberdade". [68]
No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado observa que "a interpretação da norma de imunidade há de ser feita de sorte a realizar o princípio nela subjacente. O alcance da norma há de ser semelhante ao do princípio. Não é razoável admitir-se que, com a interpretação restritiva da norma, reste frustrado o princípio". [69]
Em oportuna lição, Marco Aurélio Greco, esclarece que a interpretação das normas que prescrevem imunidades não pode resultar nem numa conclusão que implique em se tornar maior do que o próprio poder que está sendo limitado, nem pode dar à norma constitucional que a prevê um sentido tão restrito que iniba a proteção ao valor subjacente. [70]
De fato, não se trata de alargar ou estreitar o significado das palavras da Constituição que prescrevem normas imunitórias, mas de interpretá-las, buscando a sua exata acepção, e somente nos casos em que há dúvida, o sentido há de ser lato, de forma que o valor extraído seja o mais favorável possível ao detentor do direito, desde que condizente com o seu fundamento e validade.
Com assento nestas premissas, firma-se opinião contrária à proposição de Ioshiaki Ichihara, já apresentada, de que a imunidade prevista no art. 5º, XXXIV, da Constituição deve ser interpretada restritivamente, por aplicar-se exclusivamente às pessoas que comprovarem a necessidade, em face da impossibilidade de arcarem com o seu ônus. [71] Não é concebível a retirada de direitos expressamente previstos na Constituição, malogrando os princípios que os alicerçam, com fundamento em interpretação restritiva, pois assim o fazendo, não se avilta apenas o mandamento expresso, mas também o princípio que lhe dá suporte.