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A imunidade de taxa para a obtenção de certidão e o exercício do direito de petição

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20/02/2006 às 00:00
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3. A imunidade prevista no artigo 5º, XXXIV

            3.1 Direito de Petição e obtenção de Certidão sem pagamento de taxa

            A Constituição Federal, ao organizar e estruturar o Estado, procurou delimitar claramente o seu campo de atuação, através da determinação expressa dos direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, "caput"). Para atingir seus objetivos, reduziu inclusive o campo de tributação, dispensando taxas para determinadas situações. Destarte, a sua exigência para os fatos em exame resultaria em inequívoca colisão com o mandamento constitucional (art. 5º, XXXIV), ao violar explicitamente um dos direitos e garantias fundamentais, com sensíveis prejuízos ao pleno exercício da cidadania, já que o direito de petição e o direito a obtenção de certidões, de forma graciosa, tem por escopo desembaraçar os atos da vida civil de forma a colocá-los ao alcance de todos.

            Mas, para fazer jus aos direitos discriminados no artigo 5º, XXXIV, devem ser observados alguns requisitos.

            Assim, para o fornecimento de certidões, deverão ser declinadas as razões do pedido, para que o mesmo possa ser acolhido pelo Poder Público.

            Pinto Ferreira esclarece que a jurisprudência tem-se manifestado amplamente para bem situar que o direito de certidão se reveste de certas formalidades, dentre elas a sua finalidade. A simples alegação de que a certidão se destina a fins de direito, sem indicar a finalidade específica a que se destina, autoriza a recusa da certidão pelo Poder Público. [72]

            Vê-se que é necessário configurar-se materialmente a exigência constitucional para que o requerente fique ao amparo do benefício, e isso só poderá ocorrer se restar provado que a postulação da certidão atende os requisitos relativos a sua finalidade, quais sejam, defesa de direitos ou esclarecimento de situações de interesse pessoal.

            Por sua vez, em relação à petição, a regra é a sua apreciação, cabendo excepcionalmente o seu indeferimento preliminar, devidamente fundamentado, "se a matéria já foi decidida em última instância pelos Tribunais, pelo fato de que o direito de petição não tem o condão de suscitar a reapreciação da matéria na esfera administrativa; ou, diante de pedido manifestamente ilegal". [73]

            Por fim, em breves palavras, apresenta-se o pensamento da doutrina acerca das expressões, "defesa de direitos" e "ilegalidade ou abuso de poder".

            Para Artur Cortez Bonifácio, a "defesa de direitos" pode ser postulada em favor de interesses particulares ou coletivos, compreendendo-se também os interesses difusos, coletivos propriamente ditos e individuais homogêneos, o que resulta numa ampla interação do cidadão, individualmente considerado ou como integrante da sociedade. [74]

            A defesa de direitos engloba, assim, todas as situações que suscitam a possibilidade de manifestação dos particulares, sob a forma de reclamações, contestações, requerimentos, sugestões, pedidos de informações e formas congêneres, em qualquer dos poderes públicos.

            No que se refere à "ilegalidade ou abuso de poder", ela ocorre quando o ato praticado está em desacordo com a ordem jurídica, seja por uma conduta comissiva ou omissiva que, quando perpetrada ou consentida por autoridade pública, ganha os contornos de abuso. [75]

            3.2 Os destinatários da imunidade

            A questão que se busca aqui elucidar é se o direito de petição e fornecimento de certidão, previstos no artigo 5º, XXXIV, alcançam também as pessoas jurídicas, ainda que não haja manifestação expressa a estas. Para entender o alcance que o dispositivo pretende conferir, no que tange aos seus destinatários, faz-se necessário aprofundar a interpretação do seu caput, visando aclarar-lhe os contornos um tanto vagos, o que, como já se inferiu, é resultado da linguagem concisa que a Constituição apresenta, mas que em nada lhe prejudica o texto.

            Deste modo, é imperativo conhecer-se o sentido pretendido pelo constituinte, ao fixar no preceito em exame que são assegurados "aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País", os direitos que enumerou.

            Neste sentido, embora uma interpretação literal do seu "caput" induza à equivocada crença de que faz unicamente referência às pessoas naturais, sem compreender as pessoas jurídicas, não se pode olvidar que a interpretação dos dispositivos atinentes aos direitos individuais e coletivos previstos na Constituição deve ser realizada de forma a não aniquilar ou restringir o alcance de uma ou mais prescrições nela contida.

            Celso Ribeiro Bastos, ao tratar dos destinatários dos direitos individuais, entende que não é possível deslindar o seu sentido pela simples interpretação literal das palavras, pois assim o fazendo, não se estará atingindo a vontade do constituinte, e conclui:

            A despeito da fórmula ampla que adotou, ainda assim cremos que ela não pode ser entendida na sua literalidade, sob pena de ficarmos em muitas hipóteses aquém do que pretendeu o constituinte. Senão vejamos: se por acaso um estrangeiro em trânsito pelo País, portanto não residente, fosse tolhido em sua liberdade de locomoção, chegar-se-ia ao ponto de denegar-lhe o habeas corpus, sob o fundamento de que carece de residência no Brasil para dele se beneficiar? Por acaso ainda, recusar-se-ia a devida proteção à propriedade de um estrangeiro que porventura nem residisse no País? Seria esta uma razão para poder confiscar-lhe a propriedade sem indenização? [76]

            Ao referir-se às pessoas jurídicas, afirma o autor que "é de pequeno alcance, a nosso ver, a discussão em torno do ponto de saber se estes direitos são deferidos às pessoas físicas, ou também às jurídicas. Mais uma vez, aqui, quer-nos parecer que o texto disse menos do que pretendia". [77] Ratificando esta linha de raciocínio, Pinto Ferreira afirma que, "o regime jurídico das liberdades públicas protege tanto as pessoas naturais como as pessoas jurídicas, pois têm direito à existência, à segurança, à propriedade, à proteção tributária e aos remédios constitucionais". [78]

            Por sua vez, Ricardo Lobo Torres leciona que "já foi contestado, no direito americano, em virtude de as emendas constitucionais se referirem à pessoa (person), a possibilidade de se estenderem os direitos individuais às empresas. Na Alemanha a Constituição a admite expressamente. Predomina hoje, portanto a idéia de que os direitos humanos, inclusive na via fiscal, protegem as pessoas jurídicas". [79]

            Do exposto, conclui-se que somente através de uma interpretação sistemática, analisando o conjunto de situações envolvidas com a norma, e não apenas o caso isoladamente, é que possibilitará alcançar-se a intenção do mandamento constitucional. Percebe-se que a participação das pessoas jurídicas, como beneficiárias dos direitos previstos no artigo 5º, coaduna-se perfeitamente com o ordenamento jurídico, evitando figura anômala, visto que, do contrário, em inúmeras situações aquelas estariam ao desabrigo de amparo legal, como por exemplo, o direito ao mandado de segurança e o direito de propriedade. Em outras, direitos expressamente dirigidos às pessoas jurídicas lhes seriam retirados, como o previsto no inciso XXIX, que assegura privilégio aos autores de inventos industriais, a proteção às criações industriais, aos nomes de empresas, à propriedade das marcas e outros signos distintivos.

            No tocante aos deveres, também resultariam anormalidades, como por exemplo, a de que o inciso XXIII, o qual afirma que a propriedade atenderá a sua função social, não se aplicaria às propriedades de pessoas jurídicas, que ficariam dispensadas de atender este requisito.


Considerações finais

            1.Atingido o fim proposto que se objetivava alcançar com a pesquisa, sintetiza-se a abordagem através das seguintes formulações:

            2.O Estado, através de seu poder de império e fundado na Constituição, delimitou claramente o campo de abrangência tributário dos entes públicos, estabelecendo tributos sobre determinados bens, fatos e pessoas como forma de obter os recursos necessários ao financiamento dos serviços públicos.

            3.Há situações, entretanto, que em face da prevalência de valores considerados de superior interesse nacional, a Constituição dispensou a sua exigência, instituindo imunidades, a exemplo da prevista para as taxas no fornecimento de certidão ou para o exercício do direito de petição.

            4.A taxa prevista no artigo 5º, XXXIV é tributo, pois os serviços ali constados ensejariam a cobrança individualizada de cada contribuinte pelos poderes públicos, se não houvesse uma prescrição imunizante a retirá-la do campo de competência tributária.

            5.As certidões são concebidas como cópias exatas de escritos constantes de autos, livros, arquivos, banco de dados ou similares. A petição é instituto amplo, que objetiva possibilitar aos particulares manifestar-se junto aos poderes públicos, para defesa de direitos, contra ilegalidade ou abuso de poder.

            6.A imunidade de taxas para o exercício do direito de petição e obtenção de certidões alcança todos os cidadãos independentemente da situação financeira ou econômica, visto que o princípio da capacidade contributiva não se aplica a elas. As taxas vinculam-se ao custo do serviço e não a capacidade econômica do contribuinte.

            7.As situações contempladas por imunidade não podem sofrer qualquer interferência do princípio da capacidade contributiva, visto que ele só pode produzir efeitos onde há potenciais fatos tributáveis. Onde há imunidade não há tributo. Desta forma, é incoerente pensar-se na capacidade contributiva, porque sequer há contribuintes.

            8.O propósito da imunidade prevista no artigo 5º, XXXIV, transcende aos objetivos arrecadatórios por qualificar-se como importante prerrogativa de caráter democrático e garantidora dos direitos fundamentais. A sua inobservância ofende na essência os valores que lhe dão sustentação.

            9.As imunidades não podem ser interpretadas restritivamente sob pena de se retirar do cidadão direito que o constituinte lhe outorgou. Assim, não é possível pretender-se que as situações imunizadas, previstas no artigo 5º, XXXIV, alcancem apenas os reconhecidamente pobres, porque esta não foi a intenção do mandamento constitucional.

            10.As imunidades contempladas neste dispositivo aplicam-se tantos às pessoas físicas como as jurídicas, pois estas também têm direito à existência, à segurança, à propriedade e aos demais direitos e deveres que a Constituição prescreve.


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Sobre o autor
Joacir Sevegnani

Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina. Professor de Direito Tributário no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - UNIDAVI. Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVEGNANI, Joacir. A imunidade de taxa para a obtenção de certidão e o exercício do direito de petição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 962, 20 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7994. Acesso em: 19 abr. 2024.

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