2. O MINISTÉRIO PÚBLICO NO BRASIL E O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE NA AÇÃO PENAL PÚBLICA
Antes de adentrarmos acerca dos temas inerentes ao Ministério Público que se fazem necessários na análise feita pelo presente trabalho, cabe-se ressaltar informações acerca de sua história e como tal órgão conquistou a enorme importância que possui nos dias atuais.
2.1. A HISTÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASILEIRO
Ao tratarmos acerca do Ministério Público, temos de compreender que as primeiras menções a este instituto datam das Ordenações Manuelinas do ano de 1521 e das Ordenações Filipinas do ano de 1603.
Neste primeiro momento, existiam as figuras do promotor de justiça para fiscalizar a lei e promover a acusação criminal, enquanto o procurador era subdividido entre procurador da coroa, e procurador da fazenda (MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO, 2019).
No decorrer do tempo, o referido órgão fora tratado por algumas de nossas Constituições Federais, bem como não mencionado por outras, até que finalmente na Constituição Federal de 1988 fora tratado com mais afinco.
Na Constituição Federal de 1988, o Ministério Público brasileiro fora definido como instituição permanente, com primordial função jurisdicional ao Estado, onde lhe foram atribuídas a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis bem como a titularidade nas ações penais púbicas (SILVA, 2014, p. 605).
Deste modo, hoje o Ministério Público brasileiro se faz um órgão totalmente independente, não subordinado a nenhum dos três poderes, onde cada membro do Ministério Público, quer seja em âmbito federal quanto estadual possui autonomia para seguirem suas convicções dentro da lei.
Suas funções são indelegáveis, e sua instituição não pode ser extinta, garantindo assim amplos poderes para os membros atuarem com ampla liberdade funcional em suas atribuições.
O Ministério Público atualmente abrange o Ministério Público da União, que compreendem ser o Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar, Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios bem como o Ministério Público na esfera estadual.
Assim, após abordarmos os aspectos históricos do Ministério Público no Brasil, passaremos no a outro ponto fundamental para caminharmos acerca da tratativa do tema deste presente trabalho, ou seja, a atuação específica do Ministério Público na seara criminal, mais precisamente diante das ações penais públicas.
2.2. A TITULARIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AÇÕES PENAIS PÚBLICAS
O Ministério Público segundo o art. 129, inciso I da Constituição Federal de 1988 é o órgão legitimado a promover privativamente as ações penais públicas na forma da lei.
Tal legitimação decorre de o Ministério Público ser um órgão que possui suas atribuições resumidas na defesa da ordem jurídica, defesa do regime democrático, defesa dos interesses sociais e defesa dos interesses individuais indisponíveis (PADILHA, 2018).
Estas atribuições foram conferidas ao órgão com a Constituição Federal de 1988, cuja qual também tornou o Ministério Público um órgão independente, ou seja, não subordinado a nenhum dos três poderes, tendo liberdade de agir e com isso poder exercer seu papel livremente (CANOTILHO et al., 2018).
Desta maneira, ao ser-lhe incumbido da titularidade das ações penais de natureza pública, passou este a ter o dever de zelar pela defesa dos interesses sociais, agindo assim em nome da sociedade ao requerer a punição estatal ao que infringe a lei.
Assim, se faz necessária uma breve elucidação acerca da ação penal pública, cuja qual encontra-se prevista no artigo 100 do Código Penal, que antevê que as ações penais em regra serão públicas, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.
Deste modo, a ação penal pública se inicia com a petição inicial do Ministério Público, chamada de denúncia, cuja qual conterá conforme previsto no artigo 41 do Código de Processo Penal a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias; a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo; a classificação do crime bem como quando necessário, o rol das testemunhas.
O conhecimento do fato criminoso e de sua autoria, cujos quais ensejarão o oferecimento da denúncia, se darão através dos autos de Inquérito Policial - IP, relatórios de Comissões Parlamentares de Inquérito – CPI, investigações realizadas no âmbito da Promotoria de Justiça – PIC-Mp. (AVENA, 2018).
Esta será remetida ao Juiz, onde o mesmo ao analisar a denúncia oferecida pelo parquet, poderá rejeitá-la ou recebê-la, uma vez oferecida a denúncia passa a se caracterizar a indisponibilidade por parte do Ministério Público sobre a ação penal iniciada, não podendo mais o mesmo desistir da persecução promovida, devendo caso entenda cabível, pedir a absolvição do acusado no momento oportuno, ou em caso de convencimento acerca dos fatos prezar pela condenação do acusado (LOPES JR., 2016).
Posteriormente a esta breve abordagem acerca da função do parquet nas ações penais públicas, especialmente no âmbito do oferecimento da denúncia e início da persecução penal, se faz necessária uma abordagem mais específica em relação ao princípio da obrigatoriedade do Ministério Público, para tratarmos acerca do tema referente ao presente trabalho.
2.3. O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE A QUE SE VINCULA O MINISTÉRIO PÚBLICO
Lopes Jr (2018), compreende que o princípio da obrigatoriedade rege a ação penal pública, no sentido que o Ministério Público tem o dever de oferecer a denúncia sempre que estiverem presentes as condições da ação, ou seja, a prática de fato aparentemente criminoso, punibilidade concreta e justa causa.
Caso não estejam presentes as condições da ação, deverá o mesmo prezar pelo arquivamento dos autos, cujo qual será analisado e decidido pelo Juiz.
O princípio da obrigatoriedade, tido como fundamental acerca da atuação do Ministério Público nas ações penais públicas, ao contrário do que se espera, não possui um artigo que o consagre, mas tão somente é retirado da interpretação do artigo 24 do Código de Processo Penal, definindo assim, ao menos teoricamente, a não vigência dos princípios da conveniência e da oportunidade, onde o Ministério Público poderia agir com certa discricionariedade (PACELLI, 2018).
A corrente doutrinária em sua maioria, conforme veremos a seguir, compreende por ser a obrigatoriedade um princípio indispensável ao Ministério Públicos nas ações penais de natureza pública, senão ora vejamos o que menciona Aury Lopes Jr (2018) em sua obra: A obrigatoriedade (não consagrada expressamente, mas extraída da leitura do art. 24. e do seu caráter imperativo) encontra sua antítese nos princípios da oportunidade e conveniência (não adotados no Brasil na ação de iniciativa pública), em que caberia ao Ministério Público ponderar e decidir a partir de critérios de política criminal com ampla discricionariedade.
Em nosso sistema, isso não existe e, estando presentes os requisitos legais para o exercício da ação penal, deverá o Ministério Público oferecer a denúncia.
Já Nucci (2016), compreende que o princípio da obrigatoriedade se faz presente em nosso direito processual penal e que a mesmo se consagra pelo fato de “não ter o órgão acusatório, nem tampouco o encarregado da investigação, a faculdade de investigar e buscar a punição do autor da infração penal, mas o dever de fazê-lo.”.
Na mesma linha de raciocínio se encontra Renato Brasileiro de Lima (2017) ao afirmar em sua obra que “aos órgãos persecutórios criminais não se reserva qualquer critério político ou de utilidade social para decidir se atuarão ou não.”.
Já nas palavras de Ferreira e Neto (2018, p. 30), os motivos utilizados pelos doutrinadores que defendem ser a obrigatoriedade um princípio presente em nosso ordenamento “voltam-se tão somente a atribuir a titularidade da ação penal pública, em caráter exclusivo, ao Ministério Público.
Não se observa, a rigor, a existência de caráter cogente apto a afastar o espaço decisório de seu titular.”.
Tal entendimento também compartilha Suxberger (2018, p. 42) ao definir que: Ao se afirmar que, normativamente, os órgãos de persecução penal, em particular o Ministério Público, não dispõem de um espaço decisório na formalização da decisão em favor do exercício da ação penal em juízo, tem-se em contrapartida uma negação da funcionalidade do exercício da titularidade da ação penal.
Tal princípio, de acordo com seus defensores, visa obstar um tratamento desigual entre pessoas que cometeram um mesmo crime, quer seja por condição social, racial ou intelectual, de forma que o Ministério Público se restará obrigado a oferecer a denúncia com isonomia, ao não discriminar suas decisões pelos motivos aqui mencionados.
Mas ao velar-se por esta isonomia que o princípio da obrigatoriedade vêm a assegurar ao processo penal, denota-se que através da mesma se passa a ignorar a funcionalidade, a realidade prática, a contribuição das políticas públicas e as limitações de funcionamento do sistema de justiça, constituindo, dessa forma, um verdadeiro dogma no direito pátrio (FERREIRA; NETO, 2018).
Sendo assim, podemos compreender que de acordo com Suxberger (2018, p. 38. apud Silva,1999, p.421) que o princípio da obrigatoriedade surgiu com o intuito de ser a realização da igualdade e da justiça pela generalidade, pela busca da agilização das condições socialmente desiguais, onde a atividade estatal, sujeita-se à lei, cuja qual é compreendida como expressão da vontade geral.
Observa-se que este princípio está inerente a uma necessidade retributiva estatal presente na época da criação do Código de Processo Penal em 1941, mas as necessidades evoluíram em conjunto com o desenvolvimento humano, onde atualmente, tal princípio não se faz mais tão fundamental e justo diante das várias formas de solução de conflitos já existentes e que possuem casos com maior possibilidade de sucesso frente ao meio retributivo onde o princípio da obrigatoriedade vige.(SICA, 2007).
Apesar do majoritário entendimento jurisprudencial e doutrinário acerca de que o princípio da obrigatoriedade é fundamental para a persecução penal em crimes de ações de natureza pública, poderemos enxergar no próximo capítulo alguns casos que o mesmo fora mitigado, sem prejudicar a atuação ministerial, tão somente reforçando a independência prevista constitucionalmente.
Desta forma, atualmente percebe-se uma certa sensação de resistência em muitos dos membros do Ministério Público em utilizarem-se dos princípios da Justiça Restaurativa, de forma que os mesmos acabam por fundamentar tal óbice a uma aplicação dos princípios restaurativos devido ao princípio da obrigatoriedade a que são vinculados.
Esta percepção fora claramente percebida por Andrade (2017, p. 154), onde este relata que se restou claro durante as pesquisas de campo realizadas que os órgãos se utilizam de tal premissa a fim de justificar um temor dos mesmos em perderem o monopólio da justiça institucionalizada tradicional, onde na Justiça Restaurativa por não haver monopólio, os poderes são distribuídos as partes.
Portanto se faz necessário aos membros resistentes do Ministério Público segundo Andrade (2017) “[...] superar um modelo de poder “sobre o outro” para construir um modelo de “poder com o outro.”, e com isso evitar-se os efeitos instigadores de conflitos entre as partes presentes no processo penal.
Á vista disso, podemos compreender que apesar de muitos promotores de justiça adotarem práticas restaurativas, uma parcela deste grupo se encontra resistente a tal instituição, quer seja por ter um ponto de vista mais rígido, quer seja por temer que com ela suas funções sejam diminuídas, afetando seu status ou até mesmo por um apego institucional, argumentações que já se demonstraram totalmente descabidas (FERREIRA; NETO, 2018).
Fundamental e evidente se faz a necessidade de um controle sobre os atos no âmbito da aplicação de procedimentos restaurativos por parte do Ministério Público a fim de não ensejarem estes em tratamentos privilegiados ou lenientes por parte do promotor de justiça e nem que os mesmos se desobriguem a aplicação dos princípios restaurativos, trazendo ao mesmo tempo uma maior segurança para utilizarem-se dos referidos procedimentos.
Antes de passarmos para a parte final deste presente trabalho, é indispensável mencionarmos acerca do crime de prevaricação, cujo qual o promotor de justiça incorreria ao não observar o princípio da obrigatoriedade, que se encontra previsto no artigo 319 do Código Penal e que também se utilizam os órgãos ministeriais a fim de justificar a decisão pela não aplicação da Justiça Restaurativa (CAPEZ, 2018).
A prevaricação é um dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral que consiste em retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
A pena prevista é de detenção, de três meses a um ano, e multa.
Após abordarmos nos dois primeiros capítulos os pontos cruciais e conflitantes para o desenvolvimento do tema principal deste trabalho, bem como a importância desta mudança de dogma ministerial em não aplicar princípios restaurativos pelos motivos tratados supra, passaremos a partir de agora a tratar acerca de uma forma de se coadunar ambos princípios e ampliar a aplicação da Justiça Restaurativa.
3. POSSÍVEIS FORMAS DE SE COADUNAR O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE COM OS IDEAIS E VALORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Inicialmente, cabe-nos ressaltar que uma plena aplicação da Justiça Restaurativa se faz necessária diante da evidente ineficiência do sistema penal retributivo atual, onde o desejo estatal pela vingança e retribuição ao ofensor avulta-se sobre os reais interesses e necessidades da vítima, a qual fora pessoalmente afetada pelo delito e que sofrera, bem como os da sociedade.
Desta forma, se torna imprescindível encontrar formas a fim de se coadunar o princípio da obrigatoriedade com os reais valores da Justiça Restaurativa a fim de cessar a arguição de que o dogma da obrigatoriedade impede sua ampla aplicação no ordenamento jurídico pátrio, e com isso utilizar-se de formas mais eficazes para a solução dos conflitos atuais, assunto que será tratado no decorrer do presente capítulo.
3.1. JUSTIÇA RESTAURATIVA: ANÁLISE A PARTIR DO NEOCONSTITUCIONALISMO
Previamente, para uma melhor compreensão do tema que será desenvolvido neste capítulo, cabe se ressaltar a respeito do conceito de neoconstitucionalismo, que será o ponto de vista utilizado para solucionar o conflito presente e que segundo as palavras de Mendes e Branco (2017) é o “resultado de reflexões propiciadas pelo desenvolvimento da História e pelo empenho em aperfeiçoar os meios de controle do poder, em prol do aprimoramento dos suportes da convivência social e política.”.
Deste modo, observa-se que não há uma mutação física na Constituição Federal, e sim uma evolução em sua interpretação, cuja qual acompanha o desenvolvimento da sociedade de acordo com as reais necessidades trazidas com este, passando-se assim de uma interpretação rígida e estrita para uma interpretação principiológica.
Assim, ao enxergarmos o sistema punitivo atual no ponto de vista neoconstitucionalista, podemos compreender que diante da evolução da sociedade, resta-se cada vez mais evidente que formas contemporâneas de soluções de conflitos, neste caso em especial com o foco voltado a seara penal, devam ser utilizadas e não se limitando tão somente às clássicas regras atribuídas em um período totalmente díspar ao que vivemos atualmente.
Dito isto, a aplicação dos procedimentos da Justiça Restaurativa se fazem necessários a fim de tornar os procedimentos as quais a mesma são aplicáveis de uma forma mais célere, mais humana, atendendo aos interesses da vítima, da sociedade, e porque não do ofensor, que poderá visualizar sua atitude de uma forma diferente à uma simples reclusão.
3.2. DA FORÇA NORMATIVA CONSTANTE NAS RESOLUÇÕES DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA-CNJ
A resolução nº 225 do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, mencionada anteriormente refere-se a inovações em aspectos penais e processuais penais, a fim de implementar um meio novo de solução de conflitos, a fim de dar celeridade aos processos penais e humanizar os tratamentos ineficazes que atualmente se utilizam.
Cabe ressaltar que o referido conselho fora introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, e é uma espécie de controle externo do poder judiciário (STRECK; SARLET; CLÈVE, 2005).
Tal premissa tem gerado muitas dúvidas acerca da capacidade do Conselho Nacional de Justiça-CNJ expedir resoluções que tratem por exemplo do tema referente ao presente trabalho, adentrando acerca de direito penal e processual penal, mas de acordo com o artigo 103-B, §4º, inciso I da Constituição Federal, tal capacidade se encontra totalmente válida, senão vejamos: art. 103-B, § 4º - Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I - Zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;(grifo nosso) Assim, compreende-se que o Conselho Nacional de Justiça-CNJ possui a competência constitucional para expedir resoluções para assuntos no âmbito de sua competência.
Tal entendimento foi motivo para impetração de uma ação direta de constitucionalidade-ADC de nº 12/DF, onde fora reconhecido que um ato expedido pelo Conselho Nacional de Justiça-CNJ detém a mesma força normativa das leis não havendo assim que se falar em ato meramente regulamentar, mas em ato normativo primário, já que, assim como aquelas, extrai seu fundamento diretamente da Constituição.(DOS SANTOS, 2017 apud CASTRO; SANTOS, 2011).
Castro e Santos, 2011, compreendem que essa decisão do Supremo Tribunal Federal:
[...] abriu um precedente para a atuação do Conselho Nacional de Justiça, bem como representa uma inovação no ordenamento jurídico, pois, acabou por elevar uma Resolução expedida pelo órgão ao mesmo patamar de lei.
Podemos compreender então que o Supremo Tribunal Federal conferiu as resoluções expedidas pelo Conselho Nacional de Justiça-CNJ patamares idênticos ao de uma lei, e assim, a Resolução nº 225 do Conselho Nacional de Justiça se faz totalmente aplicável ao ordenamento penal e processual penal, ante a capacidade de tratar sobre estes assuntos ter sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal-STF.
Após compreendermos que se faz necessária uma mudança de paradigma dos métodos processuais penais e penais em uso atualmente e que se encontram visivelmente ineficientes e desumanos, perceberemos a seguir que o princípio da obrigatoriedade, que é tido por muitos como um óbice a ampla aplicação da Justiça Restaurativa, já fora mitigado em diversos casos, todos visando uma maior celeridade processual e uma modernização processual penal e até o presente momento estão sendo aplicados.
3.3. MITIGAÇÕES AO PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE JÁ PRESENTES EM NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
Tendo em vista as objeções alegadas para uma não aplicação plena da Justiça Restaurativa em nosso ordenamento, poderemos notar no decorrer deste tópico que diversas espécies de mitigações a este princípio já ocorreram em nosso ordenamento, e nem por isso foram obstadas em sua aplicação.
Abordaremos a seguir algumas delas, a fim de demonstrar sinteticamente os seus aspectos cujos os quais também mitigam o princípio referido, a começar pelo instituto da transação penal previsto no artigo 76 da Lei nº 9.099/1995.
A transação penal basicamente é o fato do Ministério Público diante das infrações sujeitas ao Juizado Especial Criminal, quando presentes os requisitos legais, deixar de propor a ação penal e oferecer ao autor do fato a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, ou seja, penas alternativas a prisão, onde após cumpridas as imposições ministeriais, se encerrará o procedimento (AVENA, 2018).
Desta maneira a transação penal consubstancia-se basicamente em um acordo celebrado entre o representante do Ministério Público e o autor do fato, onde o promotor propõe ao autor uma pena alternativa que não seja privativa de liberdade, dispensando com isso a instauração de um processo (CAPEZ, 2018).
Após a aceitação do acordo proposto, o mesmo deverá ser homologado pelo juiz, quando estiver atendendo os requisitos legais, sendo que quando cumpridos os requisitos do acordo formulado, ensejará na extinção da punibilidade, do contrário em caso de descumprimento, acarretará no oferecimento da denúncia ou queixa.
Capez (2018) define que a transação penal é Amparada pelo princípio da oportunidade ou discricionariedade, consiste na faculdade de o órgão acusatório dispor da ação penal, isto é, de não promovê-la sob certas condições, atenuando o princípio da obrigatoriedade, que, assim, deixa de ter valor absoluto (grifo nosso).
Deste modo, podemos enxergar uma visível mitigação ao princípio da obrigatoriedade, onde o Ministério Público passa a ter uma certa discricionariedade em propor ou não a ação penal.
Essa espécie de mitigação fora introduzida no ordenamento jurídico e possui ampla aplicabilidade desde então, se mostrando ser uma alternativa ao processo penal comum carcerário, possuindo um caráter mais célere, de certo ponto humanista ao não submeter o autor de um crime ou contravenção as mazelas do cárcere quando a mesma seja cabível.
Posteriormente, podemos encontrar no instituto da colaboração premiada, que é prevista no art. 159. do CP, com a redação dada pela Lei nº 8.072/90 (art. 7º); na Lei nº 12.850/13 (art. 4º e seguintes); na Lei nº 9.080/95, que alterou o art. 25. da Lei nº 7.492/86 e art. 16. da Lei nº 8.137/90; na Lei nº 9.613/98 (art. 1º, § 5º), que cuida dos crimes de lavagem de bens, dinheiro e valores; na Lei nº 9.807/99, que trata do Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas (arts. 13. e 14); e na Lei nº 11.343/06 (art. 41), em relação aos crimes de tráfico de drogas.
Tal instituto basicamente se consubstancia a um benefício concedido ao criminoso que denunciar os demais envolvidos no crime que lhe fora imputado, facilitando assim as investigações, cuja informação será valorada pelo juiz e acarretará, quando válida, desde uma redução da pena imposta ou até mesmo uma isenção da mesma (AVENA, 2018).
Este acordo ocorrerá na presença do acusado juntamente com o seu advogado, bem como o representante do Ministério Público, de modo com que o acusado deverá trazer elementos suficientes para incriminação dos corréus, localização da vítima ou restituição de produto criminoso, para que sejam concedidos os benefícios supramencionados.
Desta maneira, o Ministério Público ao negociar com o autor delator, onde o este abrirá mão de alguns direitos seus em troca de alguns benefícios que lhe serão proporcionados pelo órgão acusatório, se faz este ato outra mitigação ao princípio da obrigatoriedade, pois ensejará em uma acusação diferente de indivíduos que praticaram do mesmo crime e com o mesmo grau de culpabilidade (AVENA, 2018).
Cabe-se mencionar ainda acerca de outro instituto utilizado atualmente e que também se verifica a ocorrência de idêntica mitigação ao princípio da obrigatoriedade, cujo qual é tratado no Capítulo VII da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público-CNMP, denominado de acordo de não persecução penal, que assim se define:
Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática [...]
Assim, será feita a proposta ao acusado, e este aceitando o acordo será este remetido ao juiz, que, decidindo por ser o acordo cabível e as condições adequadas e suficientes remeterá novamente o mesmo ao Ministério Público para que este possa implementá-lo.
Após cumpridos todos os requisitos estabelecidos no acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, conforme o disposto no artigo 18, §11 da resolução supracitada (CNMP, 2017).
Claro que aqui nos limitamos somente em tratar dos elementos mais pertinentes a fim de ressaltar as mitigações ocorridas a fim de demonstrar que estas já ocorrem há certo tempo, sem adentrarmos em todos os requisitos ensejadores a tal proposta, que não se fazem importantes neste presente trabalho.
Outro aspecto interessante e importante de se tratar neste presente trabalho se faz no sentido de que as técnicas restaurativas são amplamente aplicadas no âmbito da justiça juvenil brasileira, cuja qual poderemos verificar que possui um caráter baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, sendo este mais humanitário, social e o qual permite uma discricionariedade por parte dos membros do Ministério Público.
Tal premissa se faz visível ao se analisarmos o artigo 126 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, o qual garante poder decisório ao representante do Ministério Público ao estudar o caso, senão vejamos: art. 126.
Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional (BRASIL, 1990).
Então, o representante do Ministério Público atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional, poderá ter a discricionariedade de conceder a remissão ao infrator, que nas palavras de Nucci (2018), possui a característica de perdão extrajudicial, visto impedir o advento do processo, cuja finalidade seria apurar o ato infracional, fixando-se a medida socioeducativa pertinente, quando fosse o caso.
Este perdão, no âmbito dos atos infracionais cometidos por menores, não acarretará em nenhuma contrapartida por parte do beneficiário pela permissão que lhe fora concedida.
Ademais, como previsto no artigo 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, a remissão não implica necessariamente no reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, ou seja, é muito benéfica ao infrator e é concedida pela possibilidade de discricionariedade atribuída pelo estatuto ao representante do Ministério Público.
Assim, percebe-se que no âmbito dos atos infracionais graças a esta discricionariedade conferida ao parquet, que pode conceder a remissão ao analisar o caso, se encontra mais suscetível a aplicação dos princípios restaurativos.
Também através da teoria da proteção integral, pode o órgão acusador utilizar-se de medidas restaurativas frente ao procedimento judicial de menores, por possuírem tal premissa jurídica para os aplicarem.
Tal medida torna o procedimento mais adequado, humano, social, e realmente interessado em uma reinserção do jovem na sociedade, eliminando possíveis chances de reincidência por parte do mesmo, bem como uma estigmatização do infrator.
Desta feita, denota-se que o princípio da obrigatoriedade tão suscitado pelos membros do Ministério Público como uma intempérie a aplicação da Justiça Restaurativa nas ações penas públicas vê-se não tão intocável por ideais neoconstitucionalistas, pois podemos notar alguns exemplos aqui tratados de que tal princípio fora mitigado sim e nem por isso o procedimento deixou de ser utilizado.