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A aquisição de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica

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10/03/2006 às 00:00

Resumo:


  • O estudo aborda a aquisição de direitos pelos fetos anencéfalos, analisando requisitos, categorias de direitos, definições de morte e critérios legais para a aferição da personalidade civil.

  • Destaca-se a relevância do tema devido à alta incidência de gravidezes de fetos anencéfalos no Brasil, sendo essencial esclarecer a situação jurídica desses indivíduos.

  • São discutidas teorias sobre a aquisição de direitos pelo nascituro, a definição de personalidade civil, os requisitos para a aquisição de direitos desde a concepção e a importância da morte encefálica como critério para a cessação da personalidade civil.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. DA ANENCEFALIA

2.1. Conceito e características

A anencefalia é uma má-formação congênita resultante de defeito de fechamento do tubo neural. Esta estrutura fetal é a precursora do Sistema Nervoso Central 47, vale dizer, é a partir da formação do tubo neural que o Sistema Nervoso Central irá se formar. Assim, defeitos no tubo neural implicarão, certamente, em problemas futuros no Sistema Nervoso Central 48.

Este defeito de fechamento ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, já que é neste período em que o tecido formado pelas células fetais, que se apresentava até então em uma forma plana, começam a formar um tecido que se invagina, forma pregas, e começa a fechar-se completamente, formando uma estrutura tubular.

Para que melhor se entenda o processo de formação do tubo neural, é interessante que se proceda à transcrição da explicação do fenômeno realizada por um médico:

Hacia fines de la 3ª semana del desarrollo, el embrión tiene la forma de un disco aplanado. En la zona media de su cara dorsal se origina la placa neural, conjunto celular que en el periodo al que aludimos, da comiezo a un proceso de plegamiento, de invaginación, que continua con una progresiva elevación de sus bordes hasta juntarse, transformándose en un canal que en sucesivas etapas va cerrándose hasta constituir un tubo totalmente cerrado de orientación longitudinal con respecto a los diámetros del embrión. Una semana después, el tubo neural presenta una región caudal más estrecha que da origen a la médula espinal y tres vesículas cerebrales, más dilatadas, de posición anterior, que dan lugar a la formación del encéfalo o cerebro.

Desde la 4ª semana en adelante, si alguno de estos grupos celulares es dañado por un agente patológico, pueden producirse dos efectos opuestos: o matan al embrión o, de sobrevivir, el daño tenderá a ser definitivo, entre ellos, impedir el cierre total del tubo neural sitio y factor anátomo-topográfico desencadenante del proceso de anencefalia 49.

Assim, percebe-se que, no caso do anencéfalo, o tubo neural não se fecha completamente. O processo de fechamento do tubo neural se dá de forma incompleta e o indivíduo passa a ser portador do defeito da anencefalia.

Note-se que o problema com o fechamento do tubo neural não ocasiona somente a anencefalia. Esta somente ocorrerá se o defeito atingir a extremidade distal do tubo neural. Se, ao contrário, o defeito ocorrer na extensão do tubo neural dará origem à espinha bífida, má-formação na qual o feto tem a espinha exposta ao líquido amniótico ou separada deste por uma camada de pele 50.

A ocorrência da anencefalia não pode ser ligada a uma causa específica: é um defeito multifatorial. Especialistas a ligam, principalmente, às deficiências de vitaminas do complexo B, especialmente o ácido fólico. Tanto que prescrevem a ingestão, através de alimentos e suplementos vitamínicos, desta substância nos três meses anteriores ao início da gestação e nos três meses posteriores à concepção. Outrossim, no Brasil, foi determinado o enriquecimento da farinha com o ácido fólico, a fim de prevenir o aparecimento de defeitos do tubo neural.

Dentre os outros fatores desencadeantes dos defeitos do tubo neural em geral e, especificamente da anencefalia, é possível citar o álcool (que também pode gerar problemas psicológicos no feto), o tabagismo, o uso de antiepiléticos e outras drogas (lícitas ou não), alterações cromossômicas (genéticas), histórico familiar e exposição a altas temperaturas. No entanto, este rol não é taxativo 51 e não é possível precisar qual a contribuição exata de cada uma destas causas para que o tubo neural não seja corretamente cerrado.

Este defeito provoca que o cérebro do feto não seja formado, não possuindo o anencéfalo nenhum tecido cerebral ou, se possui-lo, este tecido é amorfo e encontra-se solto no líquido amniótico. Não há, portanto, a formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral 52.

Quanto ao tronco cerebral, este pode ou não apresentar defeitos, sendo mais comum que os apresente. No entanto, esta não é uma característica essencial. Disso se depreende que o feto anencefálico, em caso de o defeito não ter atingido o tronco cerebral, pode ser capaz de respirar sem a ajuda de aparelhos.

Assim, o que se observa é que, em realidade, a anencefalia não se refere à lesão de todo o encéfalo, mas somente de uma de suas partes – mesmo que a maior e mais importante delas – o cérebro.

Disso resulta que as funções superiores do Sistema Nervoso Central, como "consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade 53", restam inexistentes em um feto portador de anencefalia, restando apenas funções inferiores, que controlam a respiração e as funções vasomotoras.

Quanto à extensão da lesão ao cérebro, os médicos costumam classificar a anencefalia em holocrania ou holocefalia e merocrania ou meroanencefalia. Na primeira não há qualquer tipo de tecido nervoso cerebral no feto; na segunda, há um tecido cerebral remanescente, o que não implica em dizer que a má-formação esteja afastada ou que seja real a possibilidade de vida extra-uterina 54.

No entanto, tal classificação se mostra desnecessária, sendo pertinente apenas para estudos médicos, pelo que nela não nos deteremos.

O diagnóstico da anencefalia pode ser feito já a partir do terceiro mês de gestação (entre a décima segunda e a décima quinta semanas), através da realização de ultra-sonografias. Isso porque o feto portador de anencefalia apresenta uma característica única e inconfundível: não possui os ossos do crânio (a partir da parte superior da sobrancelha não há osso algum), razão pela qual sua cabeça não possui o formato arredondado. É por este motivo que comumente o feto portador desta anomalia é chamado de feto-rã. No local (e apenas em alguns casos) há somente o couro cabeludo cobrindo a porção não fechada por ossos.

Visualmente, além da abertura que existe em sua cabeça, o anencéfalo possui os olhos saltados em suas órbitas, justamente porque estas não ficaram bem formadas em razão da inexistência dos ossos do crânio. Outrossim, seu pescoço é mais curto do que o pescoço de um feto normal.

Além do exame visual é possível a realização de exame biológico, através da análise dos níveis de alfa-fetoproteína no soro materno e no líquido amniótico. Estes níveis, da décima primeira até a décima sexta semana de gravidez, encontram-se sempre aumentados em gestações de anencefálicos.

Desta forma, o diagnóstico da anencefalia é inequívoco e não existem possibilidades de erro.

Quanto aos números, é difícil precisar a incidência de casos de anencefalia. Acredita-se que a proporção de anencéfalos seja de seis décimos para cada mil nascidos vivos (clinicamente) e de dois a cada mil gestações 55. Destes números fica claro que muitos dos fetos morrem (clinicamente) antes mesmo do nascimento.

A dificuldade em precisar o número de gestações de anencéfalos se deve, em primeiro lugar, ao fato de que muitos fetos morrem (clinicamente) ainda no útero materno e estas mães nem sempre levam este fato ao conhecimento dos médicos ou de um hospital. Em segundo lugar, as genitoras de fetos anencefálicos que expõe o problema à sociedade são (normalmente) as que necessitam de tratamento pela rede pública de saúde, já que as mães que possuem condições econômicas são assistidas por médicos particulares e, em grande parte, praticam com estes profissionais a interrupção da gestação.

Assim, os números podem chegar a ser maiores do que os que as estatísticas apontam. Mas, mesmo assim, já é possível perceber que o problema não é tão incomum quanto se imagina.

A gestação de um feto portador deste defeito congênito não é tranqüila para a genitora. Isso porque os efeitos psicológicos que uma gestação deste tipo provoca são intensos e devastadores para os sentimentos maternos e da família em geral. Imagine-se a situação psicológica da mãe que faz planos para seu filho, adquire móveis e enxoval, planeja seu nome e imagina as características físicas e psicológicas que terá após o nascimento e que, de repente, sem prévio aviso, se descobre grávida de um feto que não possui qualquer tipo de chance de sobrevida extra-uterina, mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer ainda antes de a gestação chegar a cabo. Inegável que os efeitos psicológicos sobre esta mulher são terríveis e inimagináveis.

Além destas conseqüências, a gestação de um anencéfalo pode trazer maiores riscos à saúde da genitora 56. Dentre eles é possível a enumeração, a título de exemplificação, do prolongamento da gestação além do período normal 57, do aumento da pressão arterial 58 e do aumento do líquido amniótico 59, sendo que este último problema ocasionaria dificuldades de respiração e de funcionamento do coração da gestante, podendo levá-la ao óbito 60.

Ainda, com relação às características desta má-formação, importante definir que a anencefalia não se confunde com deficiência. A anencefalia é uma má-formação fetal que inviabiliza, na totalidade dos casos, a vida extra-uterina, sendo que quase a metade dos fetos portadores deste problema congênito falecem ainda no útero materno 61.

A deficiência, por seu turno, pode ser definida como lesões, limitações das atividades ou restrições de participação 62. Pode decorrer da idade do indivíduo, de acidentes ou ser congênita. A deficiência não é incompatível com a vida, tanto que o Brasil, segundo o Censo realizado em 2000, teria mais de quatorze pontos percentuais de sua população portadora de algum tipo de deficiência 63.

2.2. O status do anencéfalo e a aquisição de direitos

A doutrina manifesta-se muito pouco acerca do status do feto anencefálico e da possibilidade ou não que ele possui de adquirir direitos. Fala-se mais com relação ao direito à vida, alguns lhe negando esse direito e outros lhe assegurando totalmente ou somente até determinado período, sempre procurando a solução a respeito da possibilidade ou não de punição da gestante e dos médicos em caso de aborto. A discussão cinge-se, então, à esfera penal e diz com apenas um dos tantos direitos que podem ser concedidos a um nascituro.

Mas a discussão levada a efeito no âmbito penal não é de todo inócua para o Direito Civil. Pelo contrário, é possível utilizar as discussões e os posicionamentos que existem nessa área do Direito e aplicá-los aqui, ampliando os conceitos para que abranjam a todos os direitos civis com os quais o nascituro pode ser contemplado.

Dentro deste quadro de análise é possível a individualização de duas correntes. A primeira delas concede ao anencéfalo todos os direitos civis aos quais um feto normal tem acesso. A segunda, entende que os anencéfalos não podem ser sujeitos de direito, baseando, no entanto, este entendimento em diferentes pontos de vista.

Passa-se à análise dos fundamentos e das conseqüências civis de cada uma delas.

A primeira corrente entende que o feto portador de anencefalia seria titular de direitos de humanidade desde a concepção e, em caso de respiração após o parto, adquiriria os direitos de relação. Assim, a anencefalia em nada alteraria a qualidade do feto portador desta má-formação (um ser humano igual a qualquer outro, sendo irrelevante dita má-formação) e nem tampouco as conseqüências de seu nascimento, em caso deste ocorrer com vida 64.

Esta posição defende que o aborto do feto anencefálico seria punível, já que o feto, desde a concepção, tornou-se titular de direitos de humanidade. Entende, ainda, que a legalização do aborto nestes casos abriria precedentes para o aborto eugenésico 65, o que não poderia ser tolerado.

Esta corrente é principalmente defendida por religiosos e encontra respaldo nas discussões levadas a termo pela Igreja Católica através da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, razão pela qual um dos argumentos suscitados é a existência de mandamento bíblico que proíbe a matança de qualquer ente humano ("não matarás").

A condição em que se encontra o ser humano não importa: se ele está doente, se está em fim de vida, se gostamos dele, se sua existência nos faz sofrer, tudo isso é secundário em relação ao direito primário a vida. Fetos e bebês anencéfalos são seres vivos, são seres humanos: e esta convicção tem inquestionável base científica. Portanto, devem ser respeitados como seres humanos 66.

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Este entendimento preleciona ser inaplicável aos fetos portadores de anencefalia o conceito de morte encefálica. Afirmam seus defensores que "o feto anencéfalo manifesta sinais vitais no ventre materno e morre algum tempo depois" 67 do parto. Estes sinais vitais, portanto, excluiriam o diagnóstico de morte encefálica.

O fato citado de que o anencéfalo apresenta sinais vitais é correto, já que em alguns casos o tronco cerebral, que é responsável pelas funções vitais do organismo humano, não é lesado pela anencefalia, ou é lesado somente parcialmente, mantendo, principalmente, a função da respiração. No entanto, tal não é uma característica absoluta.

Ainda, o argumento utilizado pelo promotor Victor Santos Queiroz, defensor desta corrente, é o de que o diagnóstico de morte encefálica pressupõe a existência de vida e que o feto, efetivamente, nasceria vivo, em razão da respiração. Adquiriria, assim, todos os direitos de humanidade e todos os direitos de relação. Em conseqüência disso, qualquer tipo de atentado contra o feto seria um atentado contra a vida e, portanto, um aborto, pois que violado o mais importante direito do feto 68.

No entanto, o promotor parece não levar em consideração a existência de dois tipos de morte (que já foram objeto de exposição neste trabalho) e o fato de que a morte encefálica exclui a necessidade de declaração da morte biológica. Assim, mesmo que biologicamente vivo, o indivíduo já está morto encefalicamente para todos os fins de direito.

Desta forma, mostra-se frágil o argumento utilizado pelo promotor de que, simplesmente em razão da declaração do Conselho Federal de Medicina, de que o feto anencefálico morre clinicamente, ainda na primeira semana de vida, o diagnóstico de morte encefálica deveria ser excluído.

Aqueles que entendem que o feto anencefálico não pode ser declarado titular de direitos baseiam-se em dois pontos: na inexistência de vida humana e na ocorrência de morte. A partir de agora, se procederá à análise de cada uma destas doutrinas.

A corrente que entende que o anencéfalo não possui vida humana baseia seu posicionamento no Direito Romano, que negava humanidade àqueles cuja forma não fosse correspondente à forma humana. O Direito Romano entendia que estes seres eram resultado da cópula entre uma mulher e um ser irracional, do que resultava um ser inumano ou híbrido 69. Com o avanço da ciência, entretanto, verificou-se que esta hipótese é impossível, já que o coito de mulher com um irracional é improfícuo.

Para corroborar o entendimento romano, os defensores desta corrente utilizam como argumento o fato de os dicionários da língua portuguesa definirem anencefalia como uma monstruosidade. Sendo um monstro, seria lógico afirmar que o feto anencefálico não poderia ser pessoa.

Este entendimento preleciona que a existência ou não de um ser humano é determinada pela cabeça: qualquer ser que não possuir uma cabeça igual à cabeça dos demais seres humanos não pode ser considerado um humano, pois destoa do padrão da espécie.

O vocábulo cabeça, acima citado, possui duas significações. A primeira delas é a de cabeça como parte do corpo humano. Efetivamente, ao olhar para um feto anencefálico se percebe que ele não possui uma cabeça igual à dos demais seres humanos, já que não é arredondada, mas apresenta uma profunda depressão na parte superior.

A segunda acepção pode ser entendida como ausência de racionalidade. De fato, um feto anencefálico não pode relacionar-se consigo e nem com os outros seres, não pode pensar, sentir ou exercer qualquer função que seja típica de um ser humano e que o diferencie dos demais seres irracionais com os quais convive: ele não possui razão. Isso porque a porção cerebral responsável pela realização destas funções de relação e de racionalidade é inexistente nestes fetos. Essa parte é justamente o córtex cerebral, a parte mais externa do cérebro 70.

Que é este ser vivo anencefálico? Parece honesto afirmar que não é um ser da espécie animal pois as características básicas do animal são sentir dor e prazer, impossível num feto anencefálico. Também é difícil classificá-lo como um ser da espécie humana, cuja característica essencial é a possibilidade de pensar, perguntar e tomar decisões. Poderia ser classificado como realidade vegetativa? É coerente deduzir que se trata de realidade inespecífica. Pode ser entendido como ato falho da natureza, que previa produzir um ser humano, mas gerou uma realidade indecifrável: um erro.

Então, impõe-se uma conclusão fundamental: no feto anencefálico não temos uma pessoa 71.

Esta posição é defendida pelo médico legista argentino Juan Carlos Coronel e pelo doutrinador brasileiro Roosevelt Arraes. Inclusive, Arraes chega ao extremo de chamá-lo de "ser vivo disponível", comparando-o a coisa e entendendo que dele possa dispor a genitora como melhor lhe aprouver. À mesma conclusão chega a psicóloga Vera Iaconelli, afirmando que "não há bebê", razão pela qual não ocorreria aborto, baseando seu posicionamento na tese de que a inexistência de cérebro tornaria o feto anencefálico um ser não humano 72.

Não sendo considerado humano, o feto anencefálico não teria direito à proteção estatal, não adquiriria direitos de humanidade e, muito menos, direitos de relacionamento. O feto anencefálico não seria, portanto, titular de direitos, mas sim objeto de direitos. Arraes, no entanto, faz uma ressalva de que os direitos de humanidade 73 somente lhe seriam negados após o diagnóstico da má-formação congênita.

No entendimento jurídico, no entanto, esta posição apresenta contradições e não pode ser aplicada. Em primeiro lugar porque, como já dito anteriormente, é ente humano todo aquele ser que provém da união de gametas humanos, do homem e da mulher, todo aquele ser cuja origem é um zigoto humano. Este ser tem origem idêntica à de qualquer outro ser humano e não se assemelha a nenhum outro exemplar de alguma espécie de ser irracional animado, pelo que não pode pertencer a qualquer outra categoria de seres.

Outrossim, mostra-se conflitante o fato de que um ser seja considerado pessoa pelo Direito e, a partir da verificação de certa hipótese, deixe de sê-lo e perca (ao que parece, de forma retroativa), assim, todos os direitos que antes lhe eram garantidos justamente por pertencer à raça humana. Ainda, ressalte-se que este posicionamento leva em conta não o momento da ocorrência da má-formação, mas sim o momento de seu diagnóstico, para fixar o termo final dos direitos de humanidade. Nestes termos, chegar-se-ia à hipótese absurda de que, após a existência da má-formação e antes de seu diagnóstico, poder-se-ia falar em aborto do feto portador de anencefalia, mas, tão logo feito o diagnóstico, a conduta, sobre o mesmo feto portador de anencefalia fosse considerada lícita, por representar a livre disposição materna sobre seu próprio corpo e sobre uma coisa que lhe pertence.

Tal hipótese carece de racionalidade.

No sentido de que é o momento da concepção que torna um ser um ente humano ou não, e não qualquer modificação ulterior, tem-se o entendimento do médico Ernesto Beruti:

Al estar privado de calota craneana, hemisférios cerebrales y corteza cerebral no lo relega a la categoria o família de los sub-humanos "… ninguna patologia ulterior a la concepción transforma a la persona em um producto sub-humano …" (Suprema Corte de Justicia de la Nación) 74.

Dentre os que defendem a não concessão ou a concessão parcial (sendo titulares apenas por determinado período) de direitos aos anencéfalos, os favoráveis à idéia de que o feto anencefálico está morto estão em maior vantagem numérica.

O entendimento de que seriam entes mortos é demonstrado com clareza por Samantha Buglione:

(…) para se ter direito à vida é preciso estar vivo; somente é possível proteger a vida havendo vida (…). Um feto anencefálico é um feto vivo? O direito, através da Lei de Transplantes, na qual define que morte é morte cerebral, diz que não. O que temos no caso do feto anencefálico é um organismo que vive. Da mesma forma que um coração que está sendo transplantado vive. Então a pergunta: o direito à vida também existe para fetos que jurídica e tecnicamente estão mortos? Fora do útero um feto nestas condições vive tanto quanto alguém em morte cerebral vive sem os aparelhos 75.

Este entendimento tem ganhado força nos últimos anos no Brasil, principalmente em razão do ajuizamento, em 2004, perante o Supremo Tribunal Federal, de uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF.

A ação pretende que o Supremo Tribunal Federal manifeste-se no sentido de não ser punível a conduta da mãe e da equipe médica em caso de antecipação do parto de um anencéfalo. Entendem, inclusive, que nestas hipóteses não haveria aborto, mas sim uma antecipação terapêutica do parto 76, já que o feto anencefálico não estaria vivo.

A liminar, no processo, foi deferida pelo Ministro Marco Aurélio de Melo. No entanto, após quatro meses, foi revogada pela Corte Superior. Vale ressaltar, por oportuno que na liminar não foram analisadas questões relativas ao mérito, mas, apenas, foi ressaltado que estaria inocorrente o periculum in mora e, assim, careceria a liminar dos requisitos para ser concedida 77. O Direito brasileiro, desta forma, ainda não tem posição esposada pelas instâncias superiores com relação à matéria 78.

Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, professor aposentado da cadeira de Direito Penal, manifestou-se no sentido de que, de fato, não haveria aborto, pois que inexistente tipicidade em razão da falta de objeto jurídico, da falta de sujeito passivo próprio e da falta de objeto material. E arremata: "o fato não é mais do que um quase-crime, na modalidade de crime impossível" (sem grifos no original) 79.

De fato, quando são rememoradas as lições de Direito Penal, aprendidas logo nas primeiras cadeiras do Curso de Direito, percebe-se que foi ensinado que seria crime impossível matar um ser humano, que já estivesse morto, em razão de outra circunstância (nexo causal). Da mesma forma, não seria praticado aborto se o feto já estivesse morto. Nestes casos, ressalte-se, sempre foi levado em conta somente o conceito de morte clínica ou biológica.

Esta lição pode ser aplicada de forma análoga ao caso do feto anencefálico, pois que a vida nele não mais existiria, em razão da inexistência de atividade cerebral. Assim, impunível o atentado contra o ser dentro do ventre materno, mesmo que seu sangue ainda estivesse fluindo, pois que a vida já lhe teria abandonado 80.

No entanto, os defensores desta teoria divergem quanto ao fundamento da morte. Alguns defendem que o feto estaria morto por poder a ele ser aplicado o conceito de morte encefálica. Outros, no entanto, entendem que a situação é análoga à da morte encefálica, mas que seria conceitualmente equivocada a afirmação de que o feto anencefálico seria um morto encefálico.

Os que se filiam à corrente da existência da morte encefálica usam como argumento principal o fato de que o Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução n° 1.752, de 13 de setembro de 2004 81, afirmou que os anencéfalos seriam "natimortos cerebrais". Em verdade, ao que parece, o Conselho Federal de Medicina, embora entenda que os anencéfalos já estão mortos dentro do útero materno, sendo desnecessária a declaração de morte clínica, não os classifica como mortos encefálicos. Sobre o assunto, no entanto, o mesmo será tratado quando for relatado o posicionamento da equiparação das situações de morte encefálica e do anencéfalo.

Ao que tudo indica, no entanto, esta posição resta equivocada, embora seus efeitos não sofram qualquer variação.

Com efeito, está com a razão a doutrina defendida pela Igreja Católica e pelos mais conservadores de que o conceito de morte encefálica não possa ser estendido a fetos portadores de anencefalia.

Ora, para que um ser seja declarado morto encefálico é necessário que alguns requisitos sejam observados. Dentre eles, o feto deve ter nascido e completado, no mínimo, sete dias de vida extra-uterina. Ora, no caso do anencéfalo, o cumprimento deste requisito é impossível na quase totalidade dos casos. Isso porque mais da metade morre clinicamente ainda dentro do útero materno e os que sobrevivem ao parto morrem clinicamente logo após este evento, não suportando mais do que alguns minutos fora do ventre materno 82.

Outrossim, mesmo que se desconsiderasse esse fato, ainda assim não seria possível tal declaração ainda no ventre materno, a fim de se dizer que os direitos não teriam remanescido, pois que dentro do útero não é possível a realização dos exames necessários e determinados pela Resolução do Conselho Federal de Medicina.

Ora, inviável a realização no feto (ou seja, intra-útero) de testes de apnéia e de verificação da atividade supra-espinhal – testes estes indispensáveis à declaração de morte encefálica – e dos testes de ausência de atividade elétrica cerebral, de atividade metabólica cerebral ou de perfusão sanguínea cerebral – testes de caráter complementar, mas que precisam ser realizados antes da declaração final de morte encefálica.

Ainda, o anencéfalo apresenta, em alguns casos – principalmente naqueles em que nasce com vida clínica – lesões totais apenas no cérebro, sendo que o cerebelo e, principalmente, o tronco cerebral, funcionam normalmente ou, ao menos, mantém um mínimo de atividade. Ora, para a declaração de morte encefálica é necessário que todo o encéfalo fique irreversivelmente lesionado, e não somente a sua parte principal – o cérebro.

Outrossim, importante ressaltar que para a declaração de morte encefálica é indispensável à ausência de capacidade de respiração sem o auxílio de respiradores mecânicos, o que ratifica a necessidade de lesão total de todo o encéfalo. No entanto, em alguns casos, dependentes do grau de lesão do tronco cerebral pela anencefalia, os fetos portadores desta anomalia são capazes de respirar sem o auxílio de qualquer tipo de aparelho.

Por derradeiro, interessante perceber que a morte encefálica pressupõe a existência anterior de uma vida encefálica, pois que com os exames a serem realizados se perquiri a cessação das funções que antes eram realizadas de forma automática pelo encéfalo e que, em virtude de uma causa conhecida, deixaram de ser realizadas definitiva e irremediavelmente pelo encéfalo.

Diante do que foi dito acima, é possível perceber que um anencéfalo não pode ser declarado morto encefálico.

No entanto, sua situação mostra-se análoga à de qualquer indivíduo com morte encefálica, se mostrando dispensável a realização dos exames determinados pelo Conselho Federal de Medicina para que se saiba que o anencéfalo não possui atividade supra-espinhal.

(…) a ordem jurídica brasileira estabelece que a morte de alguém é quando existe a chamada morte encefálica. Ora, se a ordem jurídica está admitindo que com a morte encefálica pode haver transplante, é porque não há mais vida. O que se dizer de um feto que nem chegou a ter o encéfalo? Pior ainda. Se não chegou a ter o encéfalo, então como é que se pode imputar a vida deste feto? 83

Ora, os reflexos que o anencéfalo pode vir a apresentar 84 são decorrentes de atividade infra-espinhal, já que os nervos do corpo são perfeitos e corretamente ligados ao cerebelo (que, lembre-se, pode não sofrer danos decorrentes da anencefalia). Assim, percebe-se que os reflexos apresentados pelo anencéfalo são os reflexos infra-espinhais que são descritos pelo item E I do anexo da Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina 85.

No entanto, este feto não pode decodificar, identificar os estímulos que recebe e os reflexos que apresenta, já que seu cérebro – o responsável por esta função – simplesmente inexiste em sua caixa craniana 86.

Além disso, é possível comparar as situações, uma vez que a anencefalia, da mesma forma que a morte encefálica, é resultante de um processo irreversível 87, de causa conhecida e que retira de seu portador qualquer chance de sobrevida – todos estes requisitos indispensáveis para a declaração de morte encefálica.

Na verdade, os exames que a Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina determina que obrigatoriamente sejam realizados para que possa ser uma pessoa declarada morta encefálica são indispensáveis somente para demonstrar a irreversibilidade do dano encefálico. No caso do anencéfalo, no entanto, não é preciso a realização de qualquer tipo de exame complementar à ultrassonografia, que detecta ocorrência da anomalia. O cérebro não existe, não pode realizar qualquer tipo de função e não há qualquer possibilidade de que venha a exercer suas funções corretamente 88.

Desta forma, parece que convém denominar o anencéfalo de morto cerebral, e não de morto encefálico, já que não possui, necessariamente, a totalidade de seu encéfalo comprometido pela má-formação. Deve-se, assim, utilizar a nomenclatura adotada pelo Conselho Federal de Medicina na Resolução 1.752/04 (natimorto cerebral), mesmo que nesta o Conselho a tenha utilizado inadequadamente e como sinônima de morte encefálica 89.

No entanto, esta expressão deve ser utilizada em razão da necessidade de rigorismo técnico no momento da utilização de termos técnicos e para a sua correta interpretação. Isso porque, quer se utilize uma ou outra expressão, embora as causas e os diagnósticos sejam distintos, os efeitos serão rigorosamente os mesmos: a conceituação do anencéfalo como um ser morto e incapaz de receber a proteção do Estado da mesma forma da proteção dispensada a um feto vivo.

Assim, mesmo que venha a sobreviver clinicamente dentro do útero materno e venha a respirar logo após o parto, o feto anencefálico está morto, não em razão de morte encefálica, mas por estar em situação análoga a dos mortos encefálicos – por ser um morto cerebral –, já que o anencéfalo, mesmo não podendo ser objeto dos exames determinados pela legislação aplicável à morte encefálica, possui atividades cerebrais com as mesmas características das atividades apresentadas pelo morto encefálico: nulas.

A afirmação de ser o feto anencefálico um feto morto não implica em dizer-se que este feto não possui direitos.

Em verdade, o feto anencefálico adquire direitos de humanidade no momento da concepção e os perde justamente quando o tubo neural sofre a má-formação e não se fecha completamente. Vale dizer: há a perda dos direitos de humanidade adquiridos com a concepção no momento que a má-formação que acarreta a morte do indivíduo ocorre. Isso se dá entre o vigésimo quarto e vigésimo quinto dia após a concepção.

Disso resulta que os direitos de humanidade são gozados pelo feto anencefálico por um período muito curto, como curta é a sua existência. Depois da falha de fechamento do tubo neural não há mais nada que possa ser feito pela Medicina para corrigir o defeito e não há possibilidade alguma de criação posterior de tecido cerebral, dos hemisférios cerebrais e do córtex.

Assim, nenhum direito pode ser adquirido pelo anencéfalo depois deste evento. E isto independe de ter ocorrido, ou não, nascimento deste feto e, em caso de nascimento, de ter ocorrido respiração, troca de gases com o meio ambiente. O feto anencefálico já está, ao tempo do nascimento, cerebralmente morto, em condição análoga à do morto encefálico, pois que o evento que ocasionou a morte e a ausência de parte do encéfalo já ocorreu e é irreversível.

Disso resulta que este feto, se não morrer clinicamente antes do parto e se vier a respirar após este evento, não irá adquirir nenhum tipo de direito de relacionamento, ou seja, não irá adquirir patrimônio nem ser titular de obrigações.

Assim, não poderá, ainda no interior do ventre materno, ao contrário do que ocorre com os fetos normais, ser instituído legatário ou herdeiro, pois que tais instituições pressupõem a existência de um indivíduo com potencial de vida, sendo nula quando feitas em favor de mortos. E esta é, precisamente, a situação dos fetos anencefálicos. O feto anencefálico não tem potencial de vida: a vida já o abandonou e, exceto por intermédio de um milagre, não irá retornar ao seu corpo.

Não se trata de afirmação no sentido de que o feto, após a ocorrência da má-formação, passe o anencéfalo a ser coisa, objeto de direitos. Na realidade, ele deixou de ser um ente humano, perdeu a personalidade que possuía em razão do evento morte, nos termos do art. 6° do Código Civil.

A partir do momento em que ocorre a má-formação o anencéfalo deixa de ser protegido pelo Direito como um ente vivo, mas continua merecendo a proteção estatal, agora não mais como feto ou bebê vivo, mas como morto, tendo direito à imagem, ao cadáver, ao nome, à sepultura, etc.

Mesmo havendo sido extinta a personalidade jurídica da pessoa natural pela sua morte (…), o sistema jurídico se ocupa em regular algumas hipóteses, que se caracterizam como proteções diretas ou indiretas de quem não é mais ou nunca chegou a ser sujeito de direito, porque não adquiriu personalidade (natimorto) ou já a perdeu (morto, pessoa jurídica extinta). São meios de proteção direta de quem não tem personalidade jurídica, v.g., dar nome e sepultura ao natimorto. São meios de proteção indireta, por exemplo, o uso do nome do falecido, a publicação de seus segredos 90.

Deve a doutrina civilista, portanto, rever o posicionamento que considera vivo todo aquele que respira fora do útero materno: o anencéfalo é uma exceção a esta regra.

Do que acima foi dito resulta uma conseqüência muito importante. O feto portador de anencefalia não deve ser registrado como um feto nascido vivo, tornando necessário o registro de nascimento e o registro de óbito 91. O feto anencefálico deve, isto sim, ser registrado no livro de natimortos 92, mesmo que venha a respirar após o parto. Deve ele ser objeto de apenas um único Registro Público.

Ora, os Registros Públicos são necessários para a concessão de direitos de relação ao indivíduo, para que se saiba com clareza o momento em que foi adquirida a personalidade plena do ser humano.

É inegável que os direitos da personalidade, que incluem os direitos de humanidade e os direitos de relação, são adquiridos independentemente de formalidades legais, bastando a simples presença dos requisitos elencados pela legislação. No entanto, sem a certidão de nascimento, a um indivíduo, mesmo adulto, não serão reconhecidos esses direitos. Vale dizer, portanto, que a certidão de nascimento foi a forma que o Estado encontrou para exteriorizar que um indivíduo cumpriu, no momento do parto, os requisitos indispensáveis para a aquisição dos direitos de relação.

Disso resulta que, enquanto for efetuado duplo registro do anencéfalo, ele vai continuar a ser identificado como um feto vivo, recebendo todos os direitos de relação. E isto se dará contra legem, já que o anencéfalo nunca possuirá esta capacidade plena, pois que já nasce morto (cerebralmente), ainda que venha a respirar após o parto.

Deve, assim, a Lei dos Registros Públicos 93 ser interpretada de forma a absorver a modificação dos conceitos de morte e não mais ser permitida a registração do anencéfalo como feto nascido vivo 94.

Ressalta-se, por oportuno, e para que não se incorra em erro, que o motivo pelo qual se entende que os direitos de humanidade devam ser desprezados com relação ao anencéfalo decorre não do fato de que a vida extra-uterina lhe é inviável, não havendo porque, p. ex., seu direito à vida ser protegido 95. A viabilidade fetal, como já foi tratado neste trabalho, é um requisito que foi abandonado pelo sistema jurídico brasileiro e não pode ser utilizado pelo Direito, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana, este último que assiste ao anencéfalo desde a concepção.

Este entendimento, na realidade, é resultante da situação de que o feto portador de anencefalia é um feto morto, com diagnóstico de morte cerebral, sendo sua situação comparada à do morto encefálico.

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Sobre o autor
Marília Andrade dos Santos

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marília Andrade. A aquisição de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 982, 10 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8007. Acesso em: 23 dez. 2024.

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