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Aspectos dogmáticos da(s) teoria(s) da imputação objetiva

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01/03/2006 às 00:00
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4 INTRODUÇÃO À(S) TEORIA(S) DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA

O grande progresso trazido pelo finalismo na década de 30 limitou-se ao tipo subjetivo já que muitas questões referentes ao tipo objetivo ainda não haviam sido solucionadas.

Como já vimos no primeiro capítulo dessa pesquisa, a contraposição ao pensamento finalista de Hans Welzel é expressa hoje através de várias vertentes como a da(s) teoria(s) da imputação objetiva.

Nos referimos aqui às teorias da imputação objetiva do resultado, pois, seus dois maiores expoentes, Claus Roxin e Günther Jakobs, pensam de maneira um pouco diferenciada (as idéias dos autores serão analisadas em capítulos próprios).

Essa não-uniformidade é alvo de algumas críticas: José Henrique Pierangelli afirma que não há falar em uma teoria da imputação e sim em um movimento. [69] Luiz Flávio Gomes assevera que a imputação objetiva "não é propriamente uma teoria, senão um conjunto de princípios elaborado para cumprir a função de delimitar e corrigir o nexo de causalidade". [70] Bernardo Feijóo Sánchez vai mais longe ao dizer que, "salvo valiosíssimas e escassas contribuições, a teoria da imputação objetiva, em seu atual grau de desenvolvimento, não vai além de um conglomerado desconexo de princípios e critérios que se contradizem entre si, carecendo de um elo condutor que lhes outorgue uma lógica interna". [71]

A concepção dominante do tipo já não corresponde a uma teoria subjetivista ou finalista do injusto pessoal, mas se canaliza através da referência à teoria da imputação objetiva, ainda que não se tenha alcançado um acordo definitivo sobre como deve ficar constituída uma teoria do injusto pessoal, desenvolvida a partir dos pressupostos desta teoria teleológica-valorativa. [72]

De qualquer forma, é importante frisar que "a teoria da imputação objetiva confere ao tipo objetivo uma importância muito maior da que ele até então tinha, tanto na concepção causal como na final", [73] com a compatibilidade do posicionamento do dolo no tipo subjetivo (talvez seja por isso que Damásio de Jesus conclui, em sua obra sobre o assunto, que a Imputação Objetiva e o Finalismo podem conviver em harmonia).

A teoria causal da ação conduzia a um regressus ad infinitum, olhos postos na teoria da conditio sine qua non, e é exatamente nessa seara que a teoria da imputação objetiva procura trabalhar. "A dogmática penal atual reconhece a necessidade de a teoria da relação causal ser restringida por uma correção limitadora, evitando os males do versari in re illicita imputatur omnia, quae sequuntur ex delicto." [74]

Além disso, enquanto os finalistas consideram a ação de matar como o direcionamento voluntarioso do curso causal no sentido da morte e, dessa maneira, não consideram o homicídio culposo uma ação de matar, a concepção funcionalista prevê que "toda causação objetivamente imputável de uma morte será uma ação de matar" [75] mesmo quando não houver dolo. Essa concepção gera, segundo Claus Roxin, um "deslocamento do centro de gravidade para o tipo objetivo".

Antes de nos aprofundarmos no estudo das teorias propostas por Claus Roxin e Günther Jakobs far-se-á uma análise criteriosa da evolução do conceito de imputação.

4.1 ASPECTOS HISTÓRICOS

4.1.1 Platão e Aristóteles

Apesar da Imputação Objetiva ser apontada como um renascimento de conceitos neokantianos, [76] Platão e Aristóteles também contribuíram para essa moderna construção doutrinária.

Platão foi o primeiro a falar que era a lei que definia a imputabilidade do ato moral e que o sujeito era responsável por suas próprias ações, bem como às conseqüências que dela decorrem. Até então, o conceito de imputação era ligado à simples ação dos deuses. Nas palavras do próprio Platão, em sua obra A República, "a virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. O Deus é isento de culpa". [77]

Aristóteles aprimorou os estudos de Platão dizendo que:

[...] só se pode atribuir a responsabilidade por uma ação a quem voluntariamente fez uso de sua "liberdade natural" (livre determinação de agir), com ou sem ânimo de praticar determinado delito, sem adequar seu comportamento ao juridicamente exigível. Tão somente os atos que estão sob domínio da vontade são suscetíveis de imputação [...] [78]

O conceito de imputação concebido por Aristóteles é ontológico, mas também apresenta alguns traços valorativos.

4.1.2 Samuel Pufendorf

Samuel Pufendorf, filósofo do direito natural, reelaborou a doutrina de Aristóteles e afirmou que só podem ser imputados ao homem os resultados que dependam da vontade humana ou que por ela sejam domináveis. Logo, ele "não entedia como actio humana qualquer movimento proveniente de um homem, mas só aquele que é dirigido pelas específicas capacidades humanas, ou seja, o intelecto e a vontade". [79]

Segundo Hans Welzel, citado por Luiz Régis Prado, "Pufendorf foi certamente o primeiro a introduzir na ciência do Direito Penal o fundamental conceito de imputação (imputatio), tratando-o sistematicamente". [80] Assim também pensa Armin Kauffman quando afirma que Pufendorf oferece ao Direito Penal, com a concepção de imputação, uma idéia que serve de fundamento básico para a construção de sua parte geral.

A base de sua teoria da imputação dividia-se em duas acepções: imputativitas e imputatio, sendo a primeira uma relação entre ação livre e agente, isto é, a ação só será imputada ao homem quando causada por ele com consciência e vontade. A expressão imputatio seria a operação judicial para comprovar a ocorrência dos elementos que compõem as imputativitas, isto é, um juízo de valoração ex post.

4.1.3 Georg Hegel

Parte da doutrina diz que a(s) moderna(s) teoria(s) da imputação objetiva sedimenta(m)-se no início do século XIX com Georg Hegel, através da elaboração do princípio de que um fato só pode ser imputado como responsabilidade da vontade. [81]

Segundo o doutrinador, a imputação volta a ser uma característica interna da ação que nada mais era senão uma vontade livre realizada por um sujeito imputável.

Conceito baseado na concepção de Pufendorf, seu erro residia no fato de identificar a ação do direito penal com a ação (‘livre’) culpável conforme ensinamento de Hans Welzel. Neste contexto sua idéia é questionada pela doutrina em relação à aplicabilidade nos delitos culposos os quais o resultado não é aplacado pela vontade do sujeito. [82]

4.1.4 Karl Larenz

Foi da filosofia jurídica de Georg Hegel, porém com algumas diferenças, que Karl Larenz, no ano de 1927, extraiu sua concepção de imputação objetiva. O doutrinador expressou suas idéias através da divulgação de sua tese "A teoria de imputação de Hegel e o conceito de imputação objetiva". [83]

Sobre a questão, Luiz Régis Prado assevera que "O próprio Larenz afirmava que seu conceito de fato coincidia com o conceito de ação de Hegel, o que não é verdade. Hegel concebia a ação como um complexo subjetivo (vontade) e objetivo (fato); já Larenz extirpa da ação sua estrutura material (momento subjetivo), de modo que seus critérios normativos de restrição da causalidade não restringiriam a imputativitas – como fazia Hegel -, mas sim a imputatio, no sentido de Pufendorf". [84]

Para Georg Hegel um acontecimento "só poderia ser submetido à valoração jurídica se fosse exteriorização da vontade subjetiva ou da moral" [85] do agente. Assim, os fatos que não são abarcados como obra do sujeito consideram-se produtos do acaso. Ora, como visto anteriormente, essa teoria era inaplicável aos delitos culposos.

E é nesse ponto que Karl Larenz diverge de seu mestre, Georg Hegel, tomando em sentido objetivo os conceitos de finalidade e imputação. Ele cria uma possibilidade de previsão ao afirmar que "a objetividade do conceito de imputação permite que este englobe, além dos fatos conhecidos e queridos (fatos dolosos), aqueles que poderiam ter sido abarcados pela vontade do sujeito (fatos culposos)". [86]

Para Karl Larenz:

A "imputação nada mais é do que a tentativa de delimitação entre fatos próprios do agente e acontecimentos puramente acidentais e é chamada de objetiva porque essa possibilidade de previsão não é aferida com base na capacidade e conhecimentos do autor concreto, mas de acordo com um critério geral e objetivo, o do ‘homem-inteligente-prudente’". [87]

A expressão "Imputação Objetiva" foi adotada pela doutrina moderna. Por outro lado, a concepção majoritária atual da(s) teoria(s) da imputação objetiva abandona as iniciais fundamentações de Karl Larenz e baseia-se em considerações teleológico-normativas derivadas do fim que se atribui ao Direito Penal e às normas penais. [88] "Esta teoria se converte num juízo teleológico, enquanto as características individuais do autor se encontram na culpabilidade." [89]

4.1.5 Richard Honig

Richard Honig, apontado como um dos precursores da linha de pensamento da moderna teoria da imputação objetiva, difere de Karl Larenz por não mais enfatizar a imputação do comportamento e sim do resultado.

"Honig trouxe para o Direito Penal a imputação objetiva, com base na persecução objetiva da finalidade, excluindo os cursos causais determinados pela causalidade e estabelecendo um juízo de imputação autônomo, no qual o resultado é o reflexo de um fim." [90]

O autor argumenta que têm relevância para o ordenamento jurídico aqueles "resultados que possam ser ‘pensados finalmente’ em virtude de sua alcançabilidade ou evitabilidade". [91] A exclusão dos fatos determinados pela causalidade foi a base do pensamento de Richard Honig.

Por ser a causalidade muito ampla, a conduta humana só terá importância para o Direito Penal quando houver uma finalidade objetiva ligada a essa causalidade. "São, portanto, imputáveis aqueles resultados que podem ser finalmente vislumbrados." [92]

Richard Honig apresenta o clássico exemplo do sobrinho que pretende receber a herança do tio rico e faz com que o mesmo dirija-se, em um dia de chuva, a uma floresta onde costumam cair muitos raios. [93]

Embora haja a vontade do sobrinho de receber a herança, não é possível imputar o resultado morte a ele, pois o mesmo não tem o controle causal sobre o resultado. Não se examina a consciência e vontade de um agente em particular e sim do que poderia ser compreendido conscientemente pela vontade humana em geral. Por isso trata-se de uma imputação objetiva. [94]

Os atuais defensores da Imputação Objetiva coincidem com Richard Honig apenas por considerar que a relação entre conduta e resultado não se acaba com a causalidade. [95]

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4.2 CONCEITO DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA

Como visto no capítulo anterior, o problema causal ainda é um centro de discussão dentro do Direito Penal e as teorias do nexo de causalidade apresentadas não satisfazem o objetivo de identificar os fatos relevantes para o Direito. "Há a necessidade da teoria da relação causal ser restringida por uma correção limitador, evitando os males do ‘versari in re illicita imputatur omnia, quae sequuntur ex delicto’." [96]

A partir dos argumentos apresentados por Richard Honig, Claus Roxin afirmou que "imputável é somente o resultado que se pode conceber como orientado de acordo com a finalidade". [97]

Já foi apontado anteriormente que não há uma uniformização quanto ao conceito de Imputação Objetiva, porém, pode-se ressaltar que "só haverá imputação objetiva quando for possível imputar um resultado a uma pessoa se a ação desta criou um risco juridicamente desaprovado que está refletido no resultado típico". [98]

Para Damásio de Jesus, "imputação objetiva significa atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico." [99] É necessário que haja outro nexo, além da relação de causalidade, para a atribuição de um resultado a uma pessoa, qual seja, a realização de um risco proibido pela norma.

Imputação objetiva não se confunde com responsabilidade penal objetiva que determina ao autor do fato sua responsabilidade, ainda que não haja atuado com dolo nem culpa. Também não pode ser confundida com a imputabilidade penal (capacidade do autor diante de seu caráter de querer e compreender o fato delinqüente). [100]

4.2.1 Aplicação da Imputação Objetiva

É pacífico o posicionamento da atual doutrina alemã acerca da aplicação da Imputação Objetiva a todos os tipos da parte especial e leis especiais, "incluindo culposos e dolosos, bem como os omissivos". [101] A tendência inicial era de aplicação somente aos crimes de resultado excluindo os de mera atividade e os omissivos. [102]

Damásio de Jesus, Fernando Galvão e Luís Greco são alguns exemplos de doutrinadores nacionais que acolhem a idéia que a imputação objetiva aplica-se a qualquer crime e não só aos crimes materiais. Reyes Alvarado aduz que "a teoria da imputação objetiva, como determinadora do injusto do comportamento, é aplicável a todos os tipos da parte especial, isto é, tanto aos delitos de resultado como aos que encerram perigo, igualmente aos ilícitos dolosos e culposos". [103] Na visão desses autores a teoria incide em crimes tentados e consumados, materiais, formais e de mera conduta, comissivos e omissivos.

É certo que grande parte dos casos problemáticos que se pretendeu resolver com essa teoria dizem respeito aos delitos culposos e que o desenvolvimento da noção da criação do risco juridicamente relevante não autorizado se assemelha à observância ao dever objetivo de cuidado, mas nos fatos dolosos a criação da situação de risco é tão evidente que os esforços doutrinários se concentraram nas dificuldades apresentadas para a determinação da situação de risco não intencional. [104]

Segundo a doutrina há vários casos específicos de interesse na aplicação dos critérios de imputação objetiva. Podemos exemplificar duas dessas situações peculiares, quais sejam, a aplicação aos crimes impossíveis e a violência desportiva. [105]

O preceito legal do primeiro caso é o art. 17 do Código Penal Nacional.

Art. 17. Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime. [106]

A teoria da imputação objetiva elucida a atipicidade dos casos ao afirmar que não há criação de um risco juridicamente desaprovado. Além disso, no crime impossível, como não há a criação do risco não há falar em realização desse risco e por isso não há tipicidade. Como veremos especificamente, segundo Claus Roxin, a ação deve oferecer um risco ao bem jurídico para ser juridicamente relevante para o Direito Penal.

O preceito legal do segundo caso está no art. 23, III, do Código Penal e encontra-se acobertada por uma excludente de antijuridicidade, qual seja, o exercício regular de direito.

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. [107]

Para a teoria da imputação objetiva a discussão encontra-se no âmbito do tipo já que se trata de um risco permitido. Desde que obedecidas as regras do esporte, estar-se-á realizando um risco permitido. A doutrina tradicional exclui a antijuridicidade do fato e a teoria da imputação objetiva exclui a tipicidade.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Aspectos dogmáticos da(s) teoria(s) da imputação objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 973, 1 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8021. Acesso em: 26 abr. 2024.

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