6. Liberdade de expressão vs. Direito Patrimonial
Com relação ao evidente conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à integridade patrimonial, acreditamos que a prudência deve orientar qualquer análise e esta deverá ser efetuada de acordo com realidade social da comunidade.
Por exemplo, ainda que se pretenda incentivar o respeito pelos patrimônios públicos e privados, há momentos em que a sociedade não encontra meios não lesivos para certas manifestações. Estas podem ocorrer pela forte comoção ou, ainda, por impossibilidade de se utilizar outros meios. Melhor exemplo não há senão o de citar o período da ditadura militar enfrentado pelo nosso país, onde até mesmo os meios de comunicação ficaram gravemente comprometidos. Assim, naquela época, é compreensível que se utilizasse determinados artifícios para fazer valer a voz da parcela da população que estava descontente.
Contudo, hoje, parece-nos inadmissível compactuar com tais atos. Vivemos em um momento histórico em que várias são as possibilidades de comunicação, sem que haja a necessidade de agredir o patrimônio de alguém para chamar a atenção ou, então, para tornar públicas determinadas idéias. Como exemplo, poderíamos citar diversas bandas musicais que, através de suas letras, fazem seu protesto e lutam por uma realidade diferente. A facilidade de comunicação por meio eletrônico também faz com que pessoas em diferentes regiões do país compartilhem suas experiências e ideais em tempo real, utilizando a internet e com um custo quase nulo. Isso sem mencionar que as publicações literárias e jornalísticas têm sido possíveis até mesmo para pequenas comunidades (ex: jornais de bairro). Enfim, existem meios não lesivos e até mesmo mais eficazes de expressão ou protesto que o artifício de lançar mensagens e desenhos em fachadas e muros. A prática da pichação e grafitagem como forma de liberdade de expressão não encontra fundamento algum na sociedade atual.
7. Conclusão
Diante desses fatos, não podemos admitir, por amor à lógica jurídica, que a questão deva ser encarada como um delito contra o ordenamento urbano. Não que estejamos ignorando a existência de um reflexo negativo sob o ponto de vista ambiental, de fato há um sério dano ao meio ambiente, especialmente no que se refere à poluição visual. Contudo, cremos que se trata apenas de um reflexo, não podendo o delito ser tratado consoante essa perspectiva.
Ainda que latente essa afronta ao ordenamento urbano, os atuais dispositivos abordam a situação de maneira completamente desproporcional e ineficaz, sob o ponto de vista jurídico. Isso, sem mencionar o fato de estarem sendo desconsiderados institutos basilares do direito, como a prerrogativa da livre disponibilidade patrimonial. Tais Fatores desencadeariam situações onde o agente ou partícipe, mesmo sendo legítimo proprietário, responderia criminalmente por ter grafitado a fachada de seu imóvel.
Por outro lado, a experiência nos mostra que a utilização do artifício de agravação das penas no intuito de reprimir determinadas condutas tem se mostrado uma técnica ineficiente. Como exemplo, resguardadas as devidas proporções, podemos citar a "hedionda lei dos crimes hediondos", alvo de ferrenhas críticas por parte de toda a doutrina penal.
Devemos ter em mente que a pichação e a grafitagem são condutas completamente distintas, apesar de terem recebido idêntico tratamento pelo legislador brasileiro, fato igualmente desproporcional. Por outro lado, também não podemos dizer que se tratam de condutas que devam ser encaradas como uma simples forma de expressão, uma vez a realidade político-social de nossa época permite que o mesmo efeito seja obtido sem ofensa a direitos de terceiros, ou da própria coletividade.
Diante dessas questões aqui analisadas, portanto, acreditamos ser mais adequado tratar o problema sob a óptica do crime de dano ao patrimônio alheio, deixando ao particular a opção de incriminar ou não a conduta dos agentes (excetuando-se logicamente as condutas em detrimento do patrimônio público). Até porque, se analisarmos friamente a questão, ainda que seja extremamente desconfortável o convívio com uma série de inscrições e símbolos nas fachadas das edificações urbanas, muitas vezes ininteligíveis para a grande maioria dos cidadãos, o dano não nos atinge de uma forma direta. Ao transeunte é facultada a escolha de trajetos mais aprazíveis ou, em alguns casos, ignorar as mensagens. Porém, para aquele que tem sua propriedade pichada, a depreciação patrimonial bem como os custos para sua recuperação são sentidos de forma direta. Se os órgãos públicos pretendem participar de uma forma mais ativa e resolver a questão, não será trazendo para si a legitimidade para a ação penal, tampouco o agravamento da pena dessas condutas, mas sim realizando e motivando campanhas de conscientização e educação/cidadania.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Decreto-Lei N.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940.
BRASIL. Lei Ordinária N.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
Lara, Arthur Hunold. Grafite – Arte Urbana em Movimento. Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1996.
SYRKIS, Alfredo. Os Carbonários – Memórias da Guerrilha Perdida. São Paulo: Editora Global, 1980.
Notas
1 Grafitagem. www.dji.com.br/dicionario/grafitagem.htm Acesso em 31/01/2005.
2 "Amsterdã, Londres, Berlim e Paris foram o centro dessa contra-cultura, que acabou por influenciar as artes e a música em todo o mundo e passou a ser cada vez mais identificada com a cultura punk" Lara, Arthur Hunold. Grafite – Arte Urbana em Movimento. Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1996, p. 13.
3 Idem, p. 15.
4 Cf. SYRKIS, Alfredo. Os Carbonários – Memórias da Guerrilha Perdida. São Paulo: Editora Global, 1980.
5 Ferreira, Aurelio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
6 Art. 65 da Lei N.º 9.605/98 – Pichar, grafitar, ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:
7 Termo muito utilizado na jurisprudência.