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A Lei nº 11.106/2005 e a ação de iniciativa pública secundária

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1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO ASSUNTO

O Código Penal foi instituído pelo Decreto-Lei nº 2.848, de 7.12.1940, com 361 artigos. Em 11.7.1984, foi publicada nova Parte Geral do CP, instituindo-se aí a Lei nº 7.209, o que deu nova redação aos seus primeiros 120 artigos.

Já se tentou modificar todo CP, mas sem sucesso. Desse modo, a parte especial já se encontrava obsoleta, mormente em relação aos crimes contra o costumes, uma vez que a evolução social tornou extremamente diferentes os costumes nos últimos anos. Corolário, foi a alteração do Título VI, da Parte Especial do CP. Essa modificação foi proposta pela Deputada Federal Iara Bernardi, por meio do Projeto de Lei nº 117, datado de 19.2.2003, depositado na mesma data.

O projeto original era tímido, eis que visava apenas à modificação dos arts. 216 e 231 do CP, fundamentado na idéia de que o "Código Penal em vigor não contempla mecanismos, esteriótipos, preconceitos e discriminação em relação às mulheres". [01] Porém, algumas emendas foram apresentas, sendo mais ousada a de origem do Deputado Luiz Antônio Fleury.

A redação final do projeto foi apresentada por meio do substitutivo do Senado Federal, o que constituiu o texto final aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado sem qualquer veto pelo Presidente da República.


2. ALTERAÇÕES ADVINDAS DA LEI Nº 11.106/2005

O art. 1º da Lei nº 11.106/2.005 alterou o Título VI da PE/CP da seguinte maneira:

- modificou o art. 148, acrescentando às formas qualificadas: a) inciso I – o companheiro foi equiparado ao cônjuge; b) instituiu o inciso IV, pelo fato da vítima ser criança ou adolescente; c) transformou o rapto violento em forma qualificada de seqüestro (inciso V);

- alterou o art. 215, retirando da vítima o adjetivo "honesta", bastando agora que a vítima seja mulher;

- modificou a vítima do art. 216, não exigindo mais a "mulher honesta" para o crime de atentado ao pudor mediante fraude, mas "alguém". Por conseqüência alterou-se o parágrafo único do artigo nupercitado, qualificando-se o crime pela prática de crime "se a vítima é menor...";

- transformou as causas de aumento da pena do art. 226, no seguinte: a) o aumento de 1/4 decorre do concurso de pessoas (inciso I); b) o inciso II, inseriu o cônjuge e o companheiro; revogou o inciso III – "ser o agente casado";

- modificou a rubrica do Cap. V para "Do lenocínio e do tráfico de pessoas";

- inseriu o companheiro na forma qualificada do § 1º do art. 227;

O § 2º da nova lei trouxe o seguinte:

- o art. 231 se transformou de "tráfico de mulheres" em "tráfico internacional de pessoas" foi criado o crime do art. 231-A, que versa sobre o crime de "tráfico interno de pessoas";

O § 3º da nova lei deixou clara a alteração do Cap. V do Título VI da PE para "DO LENOCÍNIO E DO TRÁFICO DE PESSOAS", enquanto o art. 4º dispôs que a lei não teria vacatio legis, vigorando a partir da publicação (29.3.2005).

Em face do seu art. 5º foram revogados os seguintes artigos:

- 107 inciso VII – não há mais extinção da punibilidade pelo casamento da vítima com o agente;

- 107, inciso VIII – não mais se extingue a punibilidade pelo casamento da vítima com terceiro;

- 217 – não se pode falar mais em crime de sedução;

- todo Cap. III do Tít. VI da PE/CP, ou seja, só subsiste o rapto violento, que se transformou em espécie de seqüestro qualificado;

- ratificou a revogação do art. 226, inciso III, e § 3º do art. 231;

- 240 – o adúltério não mais constitui crime.

As modificações são substanciais, mormente do ponto de vista teórico, até porque muitos dispositivos, em face do desuetudo, transformaram-se em letras mortas na lei. De qualquer modo, alguns aspectos merecem consideração.


3. CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOVO TEXTO

Não é razoável, diante das modificações e de tantas revogações, a manutenção do art. 218 do CP sem qualquer alteração. Ele tem péssima redação, já criticada por Magalhães Noronha em 1974, uma vez que é típico levar adolescente maior de 14 anos de idade a presenciar ato libidinoso, mas é atípico se a vítima não tiver alcançado tal idade. [02]

A lei não tem a melhor redação. Ela equipara o "companheiro" ao cônjuge, enquanto a legislação civil mais técnica prefere tratar como união familiar a "convivência". Uma união civil de "companheiros" pode até constituir um fato jurídico relevante, mas a família exige mais, exige a convivência durável. Desse modo, como a causa de aumento do art. 226 do CP visa à proteção da família, dever-se-ia ter empregado a palavra "convivente".

Recentemente, um prefeito da cidade de Goiás, Estado de Goiás, provocou o casamento de cinco vítimas suas, a fim de elidir a punibilidade criminal, isso porque seus crimes foram praticados mediante violência presumida. [03] Daí a razoabilidade de se pretender evitar a extinção da punibilidade pelo casamento da vítima com o terceiro. Porém, a lei não caminhou bem ao impedir a extinção a punibilidade pelo casamento da vítima com o próprio agente, mormente em se tratando de crimes praticados mediante violência presumida.

No tocante ao fato da nova lei tentar empreender maior isonomia entre homem e mulher, é salutar, uma vez que não é compatível com a Constituição Federal a proteção injustificada de um sexo. De outro modo, o adjetivo "honesta" não apresentava maiores inconvenientes, uma vez que os dispositivos legais que a ele se referiam eram aplicados segundo o costume do lugar do fato.


4. A AÇÃO NOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES

Defendo a seguinte classificação das ações: objetiva e subjetiva, sendo que a primeira é feita segundo a regra da congruência, dividindo-se em de conhecimento (condenatória, constitutiva, declaratória e mandamental), cautelar e executória, enquanto a subjetiva se divide em ação de iniciativa pública (incondicionada, condicionada e secundária) e de iniciativa privada (exclusiva e subsidiária da pública). [04]

Ação de iniciativa exclusivamente privada personalíssima é excepcional e, com a revogação do art. 240 do CP ficou adstrita apenas ao seu art. 236. Com efeito, essa espécie de iniciativa de ação decorre do brocardo popular "briga de marido e mulher, não se mete a colher". Conseqüentemente, somente o cônjuge ofendido pode propor a ação por referido crime.

Com a revogação do Cap. III do Tít. VI da PE/CP, só restaram os dois primeiros capítulos. Estes, em face do art. 225, caput, têm ação de iniciativa privada. A iniciativa será secundária (subsidiária da privada) nas hipóteses do § 1º do artigo nupercitado, quais sejam: a) a vítima, ou seu representante legal, não pode arcar com as despesas do processo; b) o agente detiver alguma autoridade sobre a vítima.

O estupro e o atentado violento ao pudor que forem praticados nas formas qualificadas (resultantes em lesão grave ou morte) serão de ação de iniciativa pública incondicionada, isso porque serão conjugados com o art. 223 do CP e este se encontra no próprio Cap. IV do Tít. VI, não se submetendo à regra do art. 225, caput.


5. VALIDADE DA SÚMULA Nº 388 DO STF

A súmula nº 388 dispunha que o casamento da vítima com terceiro que não fosse o ofensor, fazia cessar a qualidade de seu representante legal, só podendo continuar a ação se houvesse manifestação da vítima, observados os prazos de perempção e decadência, conforme o caso.

Em face do art. 5º do CC, a menoridade cessa aos 18 anos. No entanto, cessa a incapacidade para os atos da vida civil para os menores pelo casamento. Consectário lógico é a cessação da qualidade de representante legal de quem esteja litigando como autor em ação criminal de iniciativa privada exclusiva em que nela figure como vítima pessoa menor.

Não sendo mais representante legal da vítima, não pode o querelante prosseguir na ação outrora iniciada. Assim, a vítima deve suceder o querelante de outrora, isso no prazo legal. O problema é que não tendo 18 anos, a vítima terá capacidade plena para os atos da vida civil, mas a capacidade processual criminal só inicia aos 18 anos (CPP, arts. 33 e 34).

Como a menoridade cessa aos dezoitos anos, não mais se pode falar em legitimidade concorrente para propositura da ação em relação aos maiores de 18 anos, conforme prevê o art. 34 do CPP, isso em face do Código Civil, que reduziu a idade para alcançar a maioridade. Nesse contexto de revogar norma criminal por uma civil, emerge o inverso, eis que a Lei nº 11.106/2005 revogou parcialmente o art. 1.520 do CC, pois permite o casamento de quem não alcançou a idade núbil, a fim de elidir sanção criminal. Ora, não mais sendo possível extinguir a punibilidade criminal por meio do casamento da vítima com o agente, em face da revogação do art. 107, inciso VII, do CP, não se pode mais falar em casamento para tal fim.

Muitos organizadores de códigos pararam de inserir a Súmula nº 388 do STF no rol porque passaram a entender que revogada por julgados posteriores, ou porque atingida pela nova redação da PG/CG, que estabeleceu a extinção da punibilidade pelo casamento da vítima com terceiro (art. 107, inciso VIII). O fato é que referida súmula foi efetivamente revogada pelo pleno do STF, em julgamento de 16.10.1975. [05]

A revogação da Súmula nº 388 do STF decorreu do fato daquele tribunal ter entendido que o conteúdo do § 1º do art. 225 do CP, ao transformar a ação em pública, transfere todos poderes para o Ministério Público, sem possibilidade de retomada da ação pela vítima. Data venia, essa é uma visão ilógica que não encontra amparo no sistema dinâmico de normas.

Em todo caso, havendo um representante legal impulsionando a ação de iniciativa exclusivamente privada, tal qualidade restará prejudicada com a capacidade civil plena. Daí se poder afirmar que o conteúdo da Súmula nº 388, pela própria natureza subsidiária da intervenção do representante legal, ainda é aplicável, independente da revogação operada.

A capacidade civil plena atingida pela pessoa menor em face do casamento, suspende os prazos decadenciais e de perempção, os quais voltam a correr quando ela atinge 18 anos. Caso a vítima tenha pressa em ver a condenação do agente, por não ter representante legal, deve pedir ao Juiz a nomeação de curador especial (CPP, art. 33), que pode ser o próprio representante legal de outrora, a fim de que ele promova a ação de iniciativa privada ou continue a ação já intentada anteriormente. De qualquer modo, essa manifestação de vontade da vítima com o conseqüente decisum judicial são fundamentais para a existência válida de ação criminal de iniciativa privada em que seja vítima pessoa que não tem representante legal.

O único crime de iniciativa exclusivamente privada personalíssima que subsiste no CP é o do art. 236. Este gera maiores inconvenientes, haja vista que a ação só pode ser intentada após o trânsito em julgado da ação que anulou o casamento ensejador do delito (parágrafo único de tal artigo). Por isso, a vítima terá retornado ao seu status quo ante, ou seja, em sendo menor de 18 anos, será incapaz para os atos da vida civil. Ela terá representante legal, mas este, em face da natureza da iniciativa da ação, não poderá substituir a vítima. Nesse caso, proponho a aplicação analógica do art. 33 do CPP.


6. A SÚMULA Nº 608 DO STF

A Súmula nº 608 do STF partiu da idéia de ser o estupro crime complexo, o que é um equívoco, haja vista que para o CP só existe crime complexo em sentido estrito, ou seja, aquele que representa a unificação legal de crimes (art. 101). Aliás, a referida súmula foi instituída na sessão plenária de 17.10.1984, portanto, anterior à vigência da nova PG/CP, assim, ela se baseou no art. 103 anterior que tinha a mesma redação do atual 101.

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Ao acrescer um novo objeto jurídico ao crime de lesão corporal de natureza leve, entendeu o STF, criou-se um crime complexo. Desse modo, o art. 213 é formado por uma lesão corporal de natureza leve, implícita no crime de estupro praticado mediante violência real (física), e uma violação à liberdade sexual. Essa noção de crime complexo em sentido amplo, ratifico, não foi agasalhada pelo nosso CP. Além do mais, o STF violou também o princípio da especialidade, pois, mesmo que o estupro fosse crime complexo, o art. 225, caput, do CP seria especial em relação ao art. 101.

É basilar do Direito que o conflito aparente de normas se resolve em primeiro lugar pelo princípio da especialidade. Desse modo, a norma mais específica do art. 225, caput, do CP, afasta a do 101, pois esta é mais distante. De qualquer modo, se fosse para o STF manter sua posição equivocada, teria que modificar a súmula porque o crime de lesão corporal de natureza leve passou a ser de ação de iniciativa pública condicionada à representação (Lei nº 9.099/1995, art. 88).

O STF, com o aval do Ministério Público Federal, mantém o equívoco sob o pífio argumento de que o estupro com violência real traz duas violências, o que justificaria a iniciativa pública incondicionada da ação. [06] O art. 225 (Cap. IV do Título VI da PE/CP) afirma peremptoriamente que "Nos crimes dos capítulos anteriores só se procede mediante queixa". Destarte, resta evidente que, estando o crime de estupro – seja o praticado com violência real, seja o praticado com violência presumida -, localizado no Cap. I, não se pode negar a aplicabilidade do art. 225, caput. Mas, conforme costumo afirma, Heidegger tinha razão ao dizer que o homem é um ser preguiçoso. Ele não gosta de pensar. Não posso crer que o tribunal atua com má-fé. Prefiro acreditar que o faz por não conseguir alcançar o verdadeiro sentido da lei, que é o de proteger a dignidade da vítima.

A previsão da iniciativa exclusivamente privada é feita em respeito à dignidade da pessoa humana (fundamento orientador da República Federativa do Brasil – CF, art. 1º, inciso III). Assim, mesmo nas hipóteses do § 1º do art. 225 do CP, deve-se ter em vista o direito fundamental da vítima à preservação de sua dignidade. Foi em decorrência da necessidade de se ponderar adequadamente os interesses público e privado que a lei previu inicialmente o interesse privado, surgindo a iniciativa pública como subsidiária.

Assim como o particular pode iniciar subsidiariamente o processo por crime que a lei prevê originariamente a iniciativa pública e o MP pode retomar a iniciativa, isso em face da supremacia do interesse público; entendo que nas hipóteses do § 1º do art. 225, o particular também pode fazer com que o interesse público ceda lugar ao direito da vítima à preservação da dignidade, possibilitando a ela retomar a ação depois de cessadas as condições ensejadoras da iniciativa pública.

Em meu livro, exemplifico a hipótese com fundamento na possibilidade da vítima elidir a punibilidade por meio do casamento com o agente. [07] Agora, observe-se o absurdo possível: uma adolescente de 13 anos de idade mantém conjunção carnal com o namorado de 19. Ao tomar ciência do fato, isso 2 anos depois, o pai da adolescente representa criminalmente, eis que não tem condições de arcar com as despesas do processo (CP, art. 225, § 1º, inciso I, e § 2º). A denúncia é oferecida e recebida quando a adolescente tem 17 anos de idade, sendo que o réu permanece solto durante todo tempo. Ao completar 18 anos, a "vítima" pretende casar com seu namorado, o mesmo desde a primeira conjunção carnal. Os pais não podem impedi-la porque plenamente capaz. Ela se casa e vê que o rapaz é condenado durante o período de lua-de-mel, aplicando-se os rigores da Lei nº 8.072/1990, pela qual, em princípio, ele não poderá aguardar o julgamento do recurso em liberdade (art. 2º, § 3º). Então ele será preso e, segundo a lei do cárcere, currado, uma vez que estuprador. Data venia, é mais lógico perceber a subsidiariedade da iniciativa pública, permitindo-se à vítima, após cessada a circunstância, retomar a ação e deixar ocorrer a extinção da punibilidade pela perempção ou outra causa.

Informei que não se pode mais casar com menos de 14 anos, a fim de elidir a punibilidade criminal, uma vez que foram revogados os incisos VII e VIII do art. 107 do CP. No entanto, o art. 1520 do CC prevê outra hipótese em que a mulher pode casar com menos de 14 anos, que é a de gravidez. Imagine-se que, após o pai fazer representação criminal e o MP ofereça a denúncia, ela se case com o agente e ele a acompanhe por toda gravidez. Ao final, venha ser condenado. Ela e o filho terão que visitá-lo no presídio. Esse absurdo só pode ser evitado, se reconhecida a subsidiariedade da iniciativa pública.

No exemplo ofertado, entendo eu, a legitimidade do MP cessa quando a vítima completa 18 anos de idade, uma vez que agora é ela quem deve falar sobre o seu interesse. Assim, caso ela pretenda que o processo prossiga, deve comparecer em Juízo no prazo de 30 dias e representar senão dará causa à perempção, isso por analogia ao art. 60, inciso I, do CPP.

Não me esqueci que a natureza da representação é a de ser mera condição de procedibilidade. Desse modo, havendo representação regular, o processo passa à titularidade do Ministério Público desvinculando-se da vontade de quem fez a representação. Ocorre que no crime de iniciativa pública secundária, quem exerce o direito de representação não é o maior interessado. É o representante legal e seu direito não pode ser maior que o do ofendido. Por isso, insisto, cessando as circunstâncias que ensejaram a intervenção pública, bem como a incapacidade, a representação deve ser confirmada pela vítima.

No caso de pobreza, em que a própria vítima representa criminalmente, entendo que o sentido da norma deve ser encontrado no conjunto de normas. A própria lei já consagrou a representação como condição de procedibilidade (Lei nº 9.099/1995, art. 91), maior razão existe para, verificando todo sistema normativo, perceber que, cessada a circunstância que autorizou a representação, ser a nova representação, mesmo que pela mesma pessoa que a exerceu anteriormente, condição de prosseguibilidade do processo, ou seja, a continuidade válida da ação tem como pressuposto a confirmação da representação inicial.

Cessada a circunstância, haverá um prazo em que a vítima (ou o curador especial) deverá se manifestar, o qual será de 30 dias (CPP, art. 60, inciso I), sob pena de extinção do processo em face da perempção. Como o Ministério Público não é órgão meramente acusador, tomando conhecimento da circunstância, deve pedir a intimação da vítima, a fim de ela se manifeste sobre o interesse de continuar ou não com a ação.


7. CONCLUSÃO

Leis despidas de qualquer racionalidade devem ser consideradas inconstitucionais. Outrossim, o aplicador da lei deve atuar observando ao sistema dinâmico de normas, uma vez que toda interpretação pressupõe um mínimo de trabalho mental, não se podendo contentar unicamente com a literalidade da lei.

Não é porque o art. 225, § 1º, do CP estabelece que "procede-se, entretanto, por ação pública", que o interesse estatal passará a ser preponderante. Não se esqueça que, em regra, se a vítima não pode arcar com as despesas do processo, a ação continua sendo de iniciativa exclusivamente privada, mas o Estado lhe dará um defensor público ou advogado dativo (CPP, art. 32). No caso do art. 225 do CP, subsidiariamente, ao contrário de prever a oferta de advogado dativo ou defensor público, transforma-se a iniciativa em pública, mas assim como a iniciativa privada subsidiária da pública deve ficar sob o crivo do Ministério Público, a iniciativa pública subsidiária da privada deve ficar vinculada à vontade particular, mormente quando cessam as circunstâncias e condições para a iniciativa privada.

A ação condenatória por crime contra o costume afeta, na maioria dos casos, a dignidade da vítima. No exemplo mencionado, em que um prefeito pagou adolescentes de tenra idade para obter a satisfação da libido, a publicação da prostituição de outrora é prejudicial a elas. De outro modo, caso a vítima seja de família rica, poderia evitar esse vexame após cessar a menoridade, o que representa ser inadmissível a tese de que a vítima não pode retomar a ação.

Enquanto serventuário do TJDFT, verifiquei que uma filha, que tinha três filhos com o próprio pai, queria ter encontros íntimos (sexuais) com ele, sendo que ele estava condenado porque praticou estupro em continuidade delitiva contra ela e uma irmã. A visita não foi autorizada porque violadora da moralidade média. Entrando, não se podia vislumbrar qualquer pretensão delituosa no pedido, uma vez que o incesto não é crime.

No meio pátrio, uma mulher de 19 anos de idade deitar com o pai constituirá ato imoral, mas não crime. Então, não há porque condenar o pai que praticou estupro com violência presumida contra a filha e, depois de cessada a circunstância ensejadora da presunção de violência, estando ela plenamente capaz, pretende ver sua impunidade. Não vejo razão, no atual estágio do DCrim – que pretende ser funcionalista -, para manter esse desejo exacerbado por condenações exemplares, isso sem a mínima preocupação com as conseqüências do ato perante a sociedade complexa e, fundamentalmente, a vítima.

Por tudo que expus, mantenho minha posição, no sentido de que o casamento do agente com a vítima deve ser considerado importante instrumento de política criminal ensejador da extinção da punibilidade. Ante a revogação expressa do art. 107, inciso VII, do CP, muitas situações concretas só serão bem resolvidas se for percebida a subsidiariedade da iniciativa pública nas hipóteses do § 1º do art. 225 do CP.


Notas

01 Justificativa do PL nº 117/2003.

02 NORONHA, Magalhães Edgard. Direito penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1.974. v. 3, p. 164-165

03 A respeito, observe-se: BRUM, Eliane. Prefeito condenado por estupro fica em terceiro lugar. São Paulo: Abril, Revista Época, nº 334, 11.10.2004. p. 2/3.

04 MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2.003. p. 34-48

05 BRASIL. STF. HC 53.777/MG. Min. Thompson Flores. DJ, Seção 1, de 10.9.1976.

06 BRASIL. STF. 2. Turma. HC 82.206/SP. Min. Nelson Jobim. DJ, Seção 1, de 22.11.2003. p. 83.

07 MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2.003. p. 68-73.

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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. A Lei nº 11.106/2005 e a ação de iniciativa pública secundária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 975, 3 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8051. Acesso em: 6 mai. 2024.

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