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O direito à consciência.

No Poço, a menina é a mensagem. Mas quem é a menina?

26/03/2020 às 23:51
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O autor assiste filmes e lê poesia apenas com recortes e apropriações. Em sua análise do filme "O Poço", discute a segregação social e a fome que alimenta o sistema financeiro.

Faz algum tempo, por vício instrumental, não leio ou assisto filmes que seja apenas pelo prazer da arte. Sempre faço com recortes e apropriações, emoldurando do jeito que preciso ou que me aprecia ver depois. Assim, vou reter, rever, reviver – como recriação, muitas vezes lúdica, quase sempre funcional. O que é muito instrumental – já recebi essa crítica, entendo-a, mas hoje é mais do que um hábito – como disse, é um vício: não consigo nem mesmo ouvir música ou ler poesia desinteressadamente. Nem Borges, Nem Neruda, nem, Garcia Márquez, nem Vinícius de Moraes. Enfim, foi desse jeito que assisti O Poço (Netflix - 2019). Um frase, à primeira vista crítica, mas quase de domínio público, senso comum, diz assim: “Existem três classes de pessoas”. Isto nos daria, em si, pano pra manga. Pode-se, desde logo – os mais ortodoxos à frente –, dizer que se descarta a análise marxiana, visto que Karl Marx tratou de duas classes fundamentais: burguesia e proletariado. Porém, é preciso relembrar que existem classes ou subclasses ou frações de classe a jogar o jogo político: campesinato, lumpemproletariado, financistas, arrendatários, grandes atacadistas (frações da classe burguesa), além dos estratos militares de alta patente e o serviço público cada vez mais atuante na condução dos aparatos de Estado, sobretudo, a partir da fixação do Estado Moderno.

Além da chamada “pequena burguesia” – groso modo, algo como a classe média que sobrevive especialmente na forma-Estado Social. Em outra ramificação – e que o próprio Marx conhecia – temos Comte e o Estado Orgânico, o Mito do Fausto (Goethe e seus antecessores), Victor Hugo – com a aporia social dividida em duas personagens humanas ou desumanas, em Os Miseráveis (Javert perseguidor de Jean Valjean), um Balzac dividindo e diminuindo o mundo entre banqueiros e explorados (Melmoth e seus apaziguados). E muitos que vieram antes: Dante, Maquiavel. Além de Giambattista Vico ao inaugurar a clássica análise da divisão em classes sociais e lutas de classes entre si. Obviamente, não é tarefa simples esta tipologia de classificação societal. Pois, com isto, teríamos um curso sobre formação social clássica e Teorias do Estado. No entanto, o filme vai além: come-se as sobras de quem está no nível acima – as personas estão no nível 48 da escala social e há 333 níveis – sem acesso algum à comida. Será esta a marca do famigerado “isolamento vertical” do COVID-19, e que alimenta o sistema financeiro com a miséria da carne humana? “A administração não tem consciência”. Talvez o nível zero tenha, se receber um prato impecável: a Panacota será a virtude, tal qual foi a Mandrágora para o Maquiavel dos príncipes. O importante, o meio, é a mensagem: convencer para vencer. Sobretudo, porque depois do nível 51 “a fome vira loucura”. Gabiru ou homem caramujo? É, sem dúvida, uma visão especial da própria ideia de estratificação social e que não se confunde com a luta de classes. Afinal, classes A, B, C...nada a ver com burguesia X proletariado – ou tem, mas em inferência indireta e não específica quanto ao controle e domínio dos meios de produção. Como nós, não se cumprimenta com aperto de mãos. Outra inflexão revela que tudo é “óbvio” (sic), nesta repartição, segregação social: “não fale com as pessoas que estão abaixo, as de cima não vão lhe responder”. São dois por cela e viverão muito tempo juntas (ou não). Em breve haverá menos pessoas nos níveis abaixo...

A informação sobre o condicionamento do poço (ou fosso social) deve ser compartilhada – o que é bastante óbvio. O objetivo do poço-fosso? Comer. E deve-se fazer isto o mais rapidamente possível. A condição famélica é tão óbvia que destacar isto no filme é um óbvio ululante, óbvio demais. A matemática (óbvia) é que haverá sempre menos pessoas na aritmética da fome e da segregação humana. Sobreviventes a Auschwitz e outros congêneres são a prova viva do poço-fosso. O pecado que atormenta o novato é uma maçã verde e intocada pelos famintos dos outros 47 níveis superiores. O velho cinismo social, coberto de raiva social infantilizada pelo senso comum, cospe para que os rebaixados comam. Mas, por que um “cuspe social”? Que espécie de aderência isto traria aos desencantados e martirizados? Por isso, mesmo a maçã do pecado deve ser descartada. Por que estão ali? A entrada voluntária deveria render um “certificado homologado”. Estaríamos homologados no isolamento da pandemia? Óbvio, se escaparmos do vírus e da boçalidade governamental. No entanto, o idoso permanecerá um ano. E a palavra óbvio deve ser exclusividade, como tudo no darwinismo social. Neste sistema, a Samurai Max e a Supermax, as super prisões do aprisionamento de segurança máxima nos EUA, são réplicas do que estamos alegando: como os “servos voluntários” de La Boetie, entramos nessa porque queremos. Samurai Max e Supermax cortam somente a liberdade, são incapazes de contornar a maldade humana. Nisto que também será o máximo vigor da sociedade de controle: livre adesão e espancamento do direito à consciência.

Com a metáfora do recanto nacional, de Nelson Rodrigues, ainda aprenderemos – ao longo do filme – que “os canalhas também envelhecem”. Como haver sociabilidade em meio à bizarrice? O velhinho devorador/devorado é um assassino civilizado? Lembremos que, mesmo com tanta exceção, há regras: No mundo civilizado da barbárie, é proibido fumar. Para o “velho”, preso por homicídio: racionar a comida é proposta de comunista. E será o mesmo “velho” a fazer xixi nos que estão nos níveis abaixo. Seu acrônimo deveria ser FDP – tal o emprego sistemático desta sigla. O mesmo que escolheu levar, ao invés de um livro, uma faca mortal chamada Samurai Plus. O suicídio, fosso abaixo, era de se esperar. Todavia, ninguém faz nada porque se garante ascensão e descenso social – ainda que uma moça seja servida na mesa da “ceia” coletiva. Uma jovem que mata à procura de sua filha – que está no nível 333 e come a Panacota. E lá está o “velho” admitindo comer carne humana. A moça, para confirmar, mata dois do nível 47. Quem acredita em Deus, reze, pois, amanhã, vão acordar em outro nível. No nível 171 chegamos ao estelionato mor e qualquer coincidência social será mera semelhança nacional. Imagina comer um pedaço de si mesmo. É bom saber que, do Purgatório, não advirá o humanismo voluntário, só o terror, a morte anunciada, o pânico e a decrepitude: “o poço é a burra de uma cadeia”. O experimento social deveria promulgar a solidariedade espontânea – ou a “merda”. Pena que não seja a merda que anunciava o sucesso de carruagens puxadas por cavalos, à entrada dos grandes palcos.

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Em todo caso, em outra obra de confirmação do nível 171, o Centro Vertical de Autogestão é o anúncio da meritocracia, quando é chegada a hora de alimentar a necropolítica. É a hora de descer ao fim, para depois subir. Pobre cadeirante, se não bastassem os castigos. Também não é de se estranhar que no nível cinco o racismo dê a descarga de sua existência, a fim de confirmar que as mudanças são se produzem espontaneamente. Por fim, para rever a charada final, cabe uma pergunta: qual é o livro levado à cela 48? (Quem levaria Dante? Ou Quixote?). Para que um livro se há tanta expiação? Na verdade, muitas perguntas: a Humanidade tem jeito? A resposta: A menina é a mensagem, e a mensagem não precisa de portador. Mas, quem é a menina?

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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