Para muitos de nós, o isolamento provocado pelo novo coronavírus em 2020 trouxe a sensação do mesmo de ontem (e assim por sua vez). Vou utilizar as redes sociais como metáfora para explicar o que estamos alegando. No passado, vigoravam os sistemas chamados de Panópticos de vigilância e controle: prisões, quartéis, conventos e seminários. Uma pessoa se encarregava de vigiar todos os demais, colocando-se bem no centro da edificação e por onde haveria o tráfego normal das pessoas. Hoje, isso ainda existe, mas predomina um outro espectro, muito mais sutil e imperceptível aos bilhões de usuários das tecnologias de comunicação. Chama-se Banótico.
No Banótico ocorre uma banalização da vigilância, como controle absoluto, porque agora se vigia, se exclui, inclui para em seguida excluir, auto excluir. Cada um é vigilante de si e dos outros, mas a própria tecnologia criada já nasceu com esta marca: vigiar para excluir. A Internet nasceu para apoiar as forças armadas. Hoje, entramos e saímos de grupos, das redes sociais, na mesma velocidade. Banótico tem o exato sentido de banir, de auto banimento, auto exclusão. Como fazemos muitos de nós que foram inseridos em grupos do Whatsapp. O Facebook é o primogênito desse processo, pois dirige para nós quem e o que gostamos de ver. As pegadas digitais, as nossas pegadas, selecionam e excluem o que possa divergir. Por isso, vivemos em bolhas, cercados de “pares”; os “ímpares”, os ímpios de nosso desgosto, são automaticamente excluídos ou excluídos por nós, que também nos excluímos de muitos ambientes virtuais destoantes do nosso querer. Há um eterno estado de exílio, introjetado em cada um que faz uso das redes sociais, pois são excludentes e estimulam a auto exclusão: bloqueios. Desse ponto de vista, as redes sociais normalizaram a sensação de viermos em Estado de Sítio, sitiados para não interagir de fato.
As redes sociais, assim como o Estado de Exceção, bloqueiam a realidade. Na exceção, seja ela qual for, replicamos a mesmice, o apoio incondicional, a adesão ao que “eu quero”, aos outros que não são o Outro, mas nós mesmos, na interface do “eu-mesmo”. No século XXI, em suas travessuras, o Mito de Prometeu travestiu-se da imagem (replicada) de Narciso. Vivemos o apogeu das sociedades de massa, pois além da massificação, agora impera o fractal egoísta, pois reproduzimos nossa cara a cada instante, em cada clic, em todas as procuras no Google, em todas as interfaces que predizem nossos gostos, porque ontem nossa pegada digital disse isso, exatamente o mesmo que hoje. Desse modo, não só os algoritmos replicam o que queremos como ainda reproduzimos no anonimato da comunicação “um-você” este perverso efeito de auto exclusão, reprodução do mesmo (que é você, que sou eu “interagindo” com o umbigo tecnológico) e, talvez o pior de tudo, adotando como normalidade da vida civil. Não há que se espantar, portanto, que as demais formas de Estado de Exceção não sejam perceptíveis ou sejam aceitas “normalmente”, uma vez que vivemos alegremente um estado de exílio.
As redes sociais são o oposto do espaço público, são a privatização e a replicação para um outro igual que contenha a mesma opinião política. Não é de se estranhar, também, como se multiplicam as Fake News, pois enviamos e recebemos (de volta) a nossa mesmice, o achismo constante, tudo aquilo que se acha “o certo”, sem se colocar à prova de contestação. E nisto ainda se arvora o anti-intelectualismo, pois sem embate de ideias e de pressupostos não há debate político e muito menos a construção do conhecimento. Participa-se, no âmbito da política, desse estado de exílio normalizado e normatizado por algoritmos, e por nossa livre e espontânea vontade. Entretanto, colaboramos diariamente pela interdição da oposição política – seja ela qual for. As redes sociais, se assim for permitida uma epistemologia política, ao desagregar o contraditório, faz por ampliar exponencialmente o Princípio do Terceiro Excluído e se (nos) impõe enquanto discurso totalitário: cada um de nós é um déspota (esclarecido ou não) no manejo das redes sociais. De Kybernets, vagamos como replicadores de um único discurso, de preferência que não ultrapasse cinco linhas. Somos portadores do “pensamento único”. Adotamos e adoramos tudo isso, ninguém em sã consciência abriria mão de seus clics diários, nos mesmos lugares em que se esteve ontem, e ninguém se sente refém, aprisionado, em seu casulo, porque vive conectado em seu estado de exílio. Ninguém poderá estranhar quando a democracia acabar, de fato, pois já vivemos o pleno Estado de Sítio – sitiados por adesão e exclusão do diferente. Nosso status político é de auto exílio.
As redes sociais têm um projeto totalitário em sua origem e nós somos os peões que rodam essa engrenagem voluntariamente. Com o acréscimo de que estamos sitiados em nós mesmos, vigilantes de tudo que não seja compatível à mesmice, que seja disfuncional do Narciso que mora em nossas bolhas de consumo e de gostos. Neste Estado de Sítio, nossa função é contribuir voluntariamente com o exílio. Afinal, nós nos exilamos, nos confinamos, seja para não receber qualquer notificação que embarace nossa área de conforto, seja porque se decretou Estado de Emergência na saúde pública – ou o constitucional(?) Estado de Sítio. Esta é a razão principal de haver crescente normalização da exceção – em todos os moldes e em todas as variáveis –, porque cada internauta é um autoritário por excelência, sem condescendência, sem apelação. Agimos sumariamente. Monocraticamente, reafirmamos a essência violenta do Direito (GEWALT) e replicamos a essência do Estado de Exceção: a exclusão. Fazemos isso, como dissemos, todos os dias, a qualquer hora, então, se há Estado de Exceção na política, não haverá estranhamento, afinal, participamos e reproduzimos a nomologia excludente e de exceção com absoluta naturalidade. Já somos normatizados para isso, tão cedo se inicie o dia para ler as mensagens que os “grupos” escolhidos e sedimentados por nós mesmos nos enviaram. Cada um em seu “sítio” já partilha do Estado de Sítio. Nossa natureza humana e jurídica é excludente. A base tecnológica é só uma consequência que aprimora a apropriação da realidade de acordo com a “visão de mundo”, ou seja, de acordo com os primeiros e primários interesses individuais. Do presente para o futuro, além da normalização política disso que podemos chamar de Estado de Exílio (em analogia ao Estado de Sítio), talvez nem se fale mais disso: de tão normal que venha a se tornar o isolamento social e a exclusão da Política.