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Cláusulas gerais no novo Código Civil.

Boa-fé objetiva, função social do contrato e função social da propriedade

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11/03/2006 às 00:00
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5. PRINCIPAIS CLÁUSULAS GERAIS ADOTADAS NO NOVO CC

Segundo as principais linhas de orientação do novo Código Civil (eticidade, socialidade e operabilidade) adotou-se a técnica legislativa das cláusulas gerais, sendo que as principais a da boa-fé objetiva, da função do contrato e da função social da propriedade. É certo que existem outras relevantes, como por exemplo, a estampada no art. 944, determinando que a indenização mede-se pela extensão do dano. Todavia, o presente trabalho se limitará a tratar das três acima mencionadas.

De qualquer forma, as cláusulas gerais constituem o novo e fecundo desafio para a jurisprudência feita por advogados e juízes.

5.1.Boa-fé objetiva

É este, sem dúvida, um dos mais importantes princípios para o direito contratual. A cláusula geral da boa-fé objetiva, adotada pelo código de 2002, não pode ser confundida com o conceito de boa-fé previsto no Código Civil anterior, em que era concebida como estado de desconhecimento (ignorância) sobre determinada situação, valorizando, assim, o elemento subjetivo. Não sabia, logo, estava de boa-fé.

O art. 422 do Código Civil dispõe que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

Com efeito, é patente que a boa-fé de que trata o Código Civil de 2002 é a boa-fé objetiva, que impõe certos deveres às partes contratantes. Constitui, assim, em regra de conduta, um dever, uma obrigação socialmente recomendável, como leciona Eduardo Sens dos Santos. [33]

O professor Clóvis do Couto e Silva, citado por Ruy Rosado de Aguiar, [34] afirma que a utilização da cláusula geral de boa-fé no Direito brasileiro correspondia à sua quarta recepção. A primeira teria ocorrido com a acolhida do Direito Romano, através das Ordenações; a segunda, deveu-se à influência do Direito francês, a partir do Código de Napoleão; a terceira, à aceitação do prestígio do Direito alemão, principalmente através da doutrina da Escola de Recife e da presença marcante de Pontes de Miranda; e a quarta, com a adoção de um método de raciocínio próprio da common law.

Como se denota da leitura do art. 422, encontra-se ali encerrado dois princípios: probidade e boa-fé. O primeiro, de caráter nitidamente subjetivo, reclama o contratante probo, honesto e cumpridor de seus deveres.

Assim, do contratante exige-se que seja leal e não frustre expectativas contratuais legitimamente estabelecidas.

5.1.1. O dever de cooperação na execução do contrato

Há uma decisão interessante do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, [35] em que entendeu que dentre os deveres anexos contratuais, decorrentes do princípio da boa-fé, se encontra o dever de cooperação.

Naquele caso específico, o TJDF concluiu pelo provimento do recurso de apelação, reconhecendo a legitimidade passiva da entidade que realizou o financiamento hipotecário, com cláusula impondo a contratação de seguro junto a uma seguradora específica, também ré no processo, acobertando riscos de morte, invalidez permanente do adquirente e danos físicos no imóvel. Pelo contrato, ocorrido o sinistro, a Seguradora deveria indenizar diretamente o credor hipotecário.

Assumiu o credor hipotecário, assim, a obrigação, no contrato, de zelar pelo interesse do autor, inclusive como sua mandatária, tendo direito a receber indenização e dar quitação em nome do segurado, na hipótese de sinistro, e, se fosse o caso, reduzir proporcionalmente o valor das prestações mensais, além de restituir o que recebeu a maior desde a data do sinistro.

Em razão do referido contrato, e do princípio da boa-fé objetiva, consagrado na legislação consumerista, e, agora, também, no Código Civil (art. 422), entre outras, na moderna teoria contratual, possui a função de fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os denominados deveres anexos. São eles os deveres de informação, de cooperação e de cuidado.

Pelo dever de cooperação, o contratante, na execução do contrato, tem a obrigação de colaborar para o cumprimento do contratado, conforme o paradigma da boa-fé objetiva, agindo com lealdade e transparência, não obstruindo ou impedindo a normal consecução das finalidades contratuais.

Com este argumento o TJDF conclui que caberia ao credor hipotecário, tendo ciência do sinistro, fazer a devida comunicação a segunda ré, seguradora, para que honrasse o contrato.

Correta, assim, a decisão mencionada, posto que a questão não pode ser resolvida sem a análise do princípio da boa-fé objetiva e sem o atento exame da conexidade dos contratos firmados de financiamento hipotecário e de seguro.

Destarte, o magistrado de hoje tem de estar atento à nova concepção social do contrato, assim definida por Cláudia Lima Marques: [36]

A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância. Nas palavras visionárias de Morin, l’homme n’apparait plus comme la seule efficiente du droit, mais il devient la cause finale. À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes. Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da autonomia da vontade permanecerão, mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor. É uma nova concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: interesse social. Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função sócia.

Conclui-se, assim, que par a adequada solução judicial de casos, de um sistema aberto, diferentemente do que ocorre num ordenamento jurídico normatizado e fechado, produz profunda alteração no modo de aplicação do Direito, pois o uso da cláusula geral foge do parâmetro das normas tipificadoras de condutas e exige do juiz a prévia fixação da norma de comportamento adequada para o caso. [37]

5.1.2. Os enunciados 24, 25 e 26, aprovados na jornada de direito civil

Dentre os enunciados aprovados na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, os de números 24, 25 e 26 cuidam, especificamente sobre a correta interpretação que reclama o art. 422 do Código Civil. Vejamos os citados enunciados:

[...] 24 - Art. 422: em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.

25 - Art. 422: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.

26 - Art. 422: a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.

Inicialmente, constata-se, à evidência, que os chamados deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva não se limitam à conclusão do contrato ou à sua execução, devendo ser observados nas fases pré e pós contratual.

Deveras, em alguns contratos, já na fase pré-contratual um dos contratantes disponibiliza informações acerca de seu negócio que, mesmo no caso de não conclusão do contrato, não poderão ser divulgadas, impondo-se, assim, o dever de sigilo. Da mesma forma, a proibição de propaganda enganosa se impõe, ainda, na fase pré-contratual.

Com efeito, todas as fases contratuais devem ser presididas pela boa-fé.

O enunciado 26, que cuida da interpretação da cláusula geral contida no art. 422, atribui ao juiz ao interpretar o contrato, corrigi-lo se necessário, segundo a boa-fé objetiva. Tal regra, em verdade, já se encontra estampada no art. 113, na parte geral do novo Código Civil, que estabelece que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes do lugar de sua celebração.

5.2 Função social do contrato

É patente a relativização dos princípios informadores do contrato, tal como se configuravam no século XIX, quando imperava de forma quase absoluta o individualismo. Com efeito, vem-se acentuando de forma positiva a proteção da parte mais fraca nas relações contratuais, sendo flagrante o declínio dos princípios da intangibilidade e da relatividade do contrato, com ênfase aos princípios da boa-fé e da função social do contrato.

Percebe-se que o atual Código Civil se identifica com a concepção do Código de Defesa do Consumidor no que tange aos princípios que informam o contrato, sem que altere ou extinga as normas próprias de direito do consumidor, pois estas são especiais em face daquele, entendido como norma geral.

O Código Civil, neste sentido, alia-se à ideologia do Estado Social.

Paulo Luiz Netto Lobo, [38]comparando o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, afirma que nos referidos códigos comparecem três princípios, a saber:

"a) princípio da função social do contrato;

b) princípio da boa-fé objetiva;

c) princípio da equivalência material do contrato."

Os princípios sociais do contrato não eliminam o princípio da liberdade contratual (autonomia privada), de modo que é permitido ao contratante a liberdade de escolha do tipo contratual, de escolha do outro contratante e do contrato.

De igual forma, não foram eliminados [39] os princípios de pacta sunt servanda e o da relatividade subjetiva, embora o alcance o conteúdo de tais princípios tenham sido substancialmente limitados.

5.2.1 Limites à autonomia da vontade

Segundo o disposto no art. 421 do Código Civil, sem correspondente no código anterior, a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Atendendo o princípio da socialidade, o artigo mencionado altera profundamente o conteúdo da atividade contratual, exigindo, segundo Marco Aurélio Bezerra de Melo, [40] "uma postura mais humana e menos egoística das pessoas ao entabularem as suas convenções."

Assim, considerando que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, a liberdade de contratar não pode ser exercida desconectada da função social do contrato.

Há quase unanimidade na doutrina que o disposto no art. 421 do Código Civil constitui cláusula geral de qualquer contrato [41]. Não há dúvida, pois, que o novo Código Civil rompeu a tradição liberal dos contratos, contemplando figuras típicas como a boa-fé objetiva, o abuso do direito e a excessiva onerosidade, bem como e principalmente reconhecendo a função social dos contratos, de modo que o dogma da autonomia da vontade reclama nova leitura.

Todavia, por constituir apenas em limitação aos princípios da liberdade de contratar e da relatividade dos efeitos contratuais, André Soares Hentz [42] adverte que o princípio da função social do contrato não tem função criativa, mas apenas repressiva e sancionatória. Nesse contexto, os juízes não poderão aplicá-lo, em nome do princípio da socialidade, para dar à convenção das partes um sentido que não foi por elas avençado.

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De qualquer forma, inicialmente, não se pode olvidar que a cláusula geral somente poderá existir num sistema aberto, isto é, onde as hipóteses legais sejam formuladas em termos intencionalmente imprecisos e indeterminados, permitindo maior discricionariedade do juiz no caso concreto. [43]

No Estado constitucional e democrático de direito, o contrato é importante instrumento funcionalizador de direitos subjetivos sociais, cabendo ao Poder Judiciário adequá-lo à realidade sociocultural, podar os abusos e equilibrá-lo.

Sem dúvida, uma das razões que justificam a evolução dos contratos, autorizando a intervenção do Estado na liberdade de contratar, se deve ao fato de que hoje muitos contratos são contratos de adesão, cujo texto depende de aprovação prévia de organismos governamentais, ou nos quais, tratando-se de contratos de massa, o aderente não tem condições de discutir as cláusulas. [44]

Um exemplo disto é a atuação do Judiciário em relação aos conflitos envolvendo os planos de saúde [45] em que constantemente é invocada a função social do contrato para garantir ao paciente uma utilização efetiva dos serviços contratados, numa clara opção pela parte economicamente mais fraca, com a eventual substituição de cláusulas e a mitigação das sanções.

Paulo Nalin [46] relaciona o alcance da função social do contrato no contexto jurídico, levando em consideração o espírito do interesse coletivo, que "deflui de incontáveis relações contratuais e, também, na irradiação da força constitucional, que inaugura do debate com o valor da solidariedade."

Aliás, ressalta, referido autor, [47] que o contexto interno do contrato, após a constituição cidadã, vem ocupado pelo valor da solidariedade constitucional e da justiça social, expressos, respectivamente, nos arts. 3º, I e 170, caput, da Constituição Federal.

5.2.2 Segurança jurídica contratual

Questão importante que se apresenta ao desate, segundo Paulo Nalin, [48] é verificar se a adoção da cláusula geral da função social do contrato, e conseqüentemente da justiça contratual, poderá gerar insegurança nas relações jurídicas contratuais.

Preliminarmente, há que se lembrar que a Constituição de 1988, optando pelo Estado Democrático de Direito tendo por objetivo fundamental construir uma sociedade livre, justa e solidária, aboliu a idéia de que o Estado, para garantir o devido interesse do credor em alcançar seu crédito, levaria o devedor às últimas conseqüências.

Hoje, não obstante a resistência do "mercado" e da "equipe econômica do governo", a segurança jurídica contratual não pode estar dissociada do valor constitucional da solidariedade. Assim, adverte Nalin, [49] para se atingir a função social do contrato, "são inadmissíveis efeitos contratuais que aniquilem uma das partes do contrato, que vulnere um setor da cadeia de consumo, que distanciem as posições econômicas envolvidas."

Assim, quando da análise de um caso concreto, no que se refere à aplicação prática da função social do contrato, o juiz não pode deixar de pautar-se por padrões objetivos que levem em consideração a dignidade do ser humano, o progresso da sociedade e a garantia de direitos fundamentais.

Com efeito, em tese, a liberdade contratual só sofre restrições em virtude da ordem pública, que representa a projeção do interesse social nas relações interindividuais.

Aliás, advertia Arnoldo Wald, [50] antes da entrada em vigor do novo Código Civil, que a função social do contrato não deve afastar a sua função individual, cabendo conciliar os interesses das partes e da sociedade, de modo que a inovação contida no art. 422 não ponha em risco a sobrevivência do contrato como manifestação da vontade individual e o acordo entre as partes interessadas em alcançar um determinado objetivo, por elas definido em todos os seus aspectos.

5.3 Função social da propriedade

A propriedade, que sempre constituiu um foco constante de tensões sociais e econômicas, gerando instabilidades nas relações jurídicas, teve sua função social ressaltada pelo disposto no art. 5º, da Constituição Federal, que diz que a propriedade atenderá sua função social.

No inciso XXII, no referido dispositivo, declara que "é garantido do direito de propriedade", e, no inciso seguinte, "a propriedade atenderá a sua função social". A propriedade não pode ser mais vista, assim, como um direito estritamente individual nem como uma instituição de direito privado.

Dentre os princípios gerais da atividade econômica encontra-se a propriedade privada: corolário dos direitos individuais previstos no art. 5º, XXII, XXIV, XXV e XXVI da Carta Magna.

Até a entrada em vigor do novo Código Civil, a função social da propriedade prevista estabelecida Constituição Cidadã não passava de um princípio, embora constitucional e por isso relevante, mas sem efeito prático.

Afirmava-se, assim, que a única aplicação prática de tal princípio seria a utilização de alíquotas progressivas de IPTU, a ponto do Supremo Tribunal Federal considerar constitucional leis municipais que estabelecessem a progressividade contra imóvel que não desempenhem adequadamente sua função social. [51]

Entretanto, com o advento do novo Código Civil, especificamente o art. 1228, passou-se a dar contorno de efetividade ao princípio constitucionalmente estabelecido. Assim, dando cumprimento ao cânone constitucional, o legislador infraconstitucional, no dispositivo citado, determina, quando do exercício do direito de propriedade, o respeito à flora, à fauna, às belezas naturais, ao equilíbrio ecológico e ao patrimônio histórico e artístico, bem como seja evitada a poluição do ar e das águas. [52]

Antes da entrada em vigor do novo Código Civil, para aplicação do princípio da função da propriedade, os juízes e Tribunais acabavam fazendo verdadeira "ginástica" doutrinária para justificar determinadas decisões, tornando, em alguns casos, difícil sua sustentação diante de um código civil, o de 1916, que possibilitava ao proprietário a utilização dos poderes dominiais ao seu talante, de modo quase irrestrito.

Neste sentido, vale transcrever trechos de uma interessante e corajosa sentença [53] prolatada pelo MM. Juiz Federal da 8ª Vara de Minas Gerais, Dr. Renato Martins Prates, numa ação de reintegração de posse (Proc.: 950003154-0), em que o então Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER, pretendia a retirada imediata de várias famílias, aproximadamente 300, que invadiram uma faixa de domínio da União ao lado da Rodovia BR 116, na altura do km 405,3, lá construindo barracos de plástico preto. Como se verá, apesar de preencher, em tese, os pressupostos para concessão do pedido liminar, a teor do art. 928 do Código de Processo Civil, a petição inicial foi indeferida de plano.

Vejamos:

"Os réus são indigentes", reconhece a autarquia, que pede reintegração liminar na posse do imóvel. E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. Sãos os excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade deste ano. [...] O Município foge à responsabilidade "por falta de recursos e meios de acomodações" (fls. 16v). Daí, esta brilhante solução: aplicar a lei. Só que, quando a lei regular as ações possessórias, mandando defenestrar os invasores (arts. 920 e segts, do CPC), ela - como toda lei - tem em mira o homem comum, o cidadão médio, que, no caso, tendo outras opções de vida e de moradia diante de sim prefere assenhorar-se do que não é dele, por esperteza, conveniência, ou qualquer outro motivo que mereça a censura da lei e, sobretudo, repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma espécie possuem. Mas este não é o caso no presente processo. Não estamos diante de pessoas comuns, que tivessem recebido do Poder Público razoáveis oportunidade trabalho e de sobrevivência digna (v. fotografias). Não. Os "invasores" (propositalmente entre entras) definitivamente não são pessoas comuns, como não são milhares de outras que "habitam" as pontes, viadutos e até redes de esgoto de nossas cidades. São párias da sociedade (hoje chamados de excluídos, ontem de descamisados), resultado de perverso modelo econômico adotado pelo país. [...] Ou seja, enquanto não construir - ou pelo menos esboçar - "uma sociedade livre, justa e solidária" (CF, art. 3º, I), erradicando "a pobreza e a marginalização" (nº III), promovendo "a dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), assegurando "a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social" (art. 170), "emprestando à propriedade sua função social" (art. 5º, XXIII, e 170, III), dando à família, base da sociedade, "especial proteção" (art. 226), e colocando a criança e o adolescente "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, maldade e opressão" (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os marginalizados à condição de cidadãos comuns, pessoas normais, aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para deles exigir - diretamente ou pelo braço da Justiça – o reto cumprimento da lei. [...] Não é demais observar que o compromisso do Estado para com o cidadão funda-se em princípios, que têm matriz constitucional. Verdadeiros dogmas, de cuja fiel observância dependem a eficácia e a exigibilidade das leis menores. [...] Mais do que deslealdade, trata-se de pretensão moral e juridicamente impossível, a conduzir - quando feita perante o judiciário – ao indeferimento da inicial e extinção do processo, o que ora decreto nos moldes dos arts. 267, I e VI, 295, I, e parágrafo único, III, do CPC, atento à recomendação do art. 5º da LICC e olhos postos no art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que proclama: "Todo ser humano tem direito a um nível de vida adequado, que lhe assegure, assim como à sua família, a saúde e o bem estar e, em especial, a alimentação, o vestuário e a moradia." Quanto ao risco de acidente na área, parece-me oportuno que o DNER sinalize convenientemente a rodovia, nas imediações. Devendo ainda exercer um policiamento preventivo a fim de evitar novas "invasões".

A decisão acima transcrita foi alvo de acirrados e profícuos debates em uma lista de discussão privativa de juízes [54] na Internet. É, sem dúvida, uma decisão polêmica, mas que, a meu sentir, atendeu o princípio da função social da propriedade constitucionalmente garantido, aliado ao fato de que um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, da República Federativa do Brasil, é dignidade da pessoa humana.

5.3.1 Função ética da propriedade imobiliária

A função social é padrão que reúne duas atribuições: a social propriamente dita e a econômica. Ambos os aspectos – social e econômico – fazem parte do conceito função social da propriedade. [55]

Como dito anteriormente, a eticidade é um dos princípios que informam o novo Código Civil, de modo que o direito de propriedade, na feliz conclusão de Antonio José de Matos Neto, [56] também deverá atender tal princípio.

Assim, o direito de propriedade somente é eticamente válido se cumprida sua função social, cristalizando o valor socioeconômico moradia, para o direito de propriedade urbana, e produção de alimentos, para o direito de propriedade rural.

O Código Civil, de modo explícito, no § 1º, do art. 1.228, cuida da função ética da propriedade imobiliária, ao estabelecer que o direito de propriedade deverá ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, observados lei especial neste sentido, a flora, fauna, belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitar poluição do ar e das águas.

Não basta, destarte, que se contenha nos limites da finalidade econômico-social, mas reclama-se, ainda, o respeito a outros valores, de modo que a utilização da coisa encontra obstáculo na tutela daqueles valores inseridos na parte final do § 1º, do citado art. 1228 do Código Civil.

5.3.2Abuso de direito no exercício do direito de propriedade

O uso, que constitui exercício regular do direito de propriedade, não pode servir como instrumento de capricho, vingança ou com o objetivo de causar dano a outrem.

Neste sentido e em consonância com a teoria do abuso de direito adotada pelo Código Civil, na interpretação a contrario senso do art. 188, I do referido diploma legal, constitui ato ilícito o exercício irregular de um direito reconhecido que no direito de propriedade é qualquer utilização que não se restrinja à suas funções.

Constata-se claramente, da leitura do § 2º do art. 1228 do Código Civil, que também no direito de propriedade foi adotada a teoria do abuso de direito, tornando defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

O professor Marco Aurelio Bezerra de Melo [57] cita como exemplo de ato que seria indefeso a hipótese de alguém construir um muro bem alto apenas para fazer sombra no prédio vizinho ou atrapalhar a navegação área.

De qualquer forma, caberá ao juiz decidir se em determinadas circunstancias está caracterizado que o ato praticado não traz ao proprietário nenhuma comodidade, ou utilidade, mas reflete apenas a intenção de prejudicar o vizinho.

Da leitura do § 2º, do art. 1228 c/c art. 188,I, conclui-se que o Código Civil adotou a teoria objetivista, entendendo que comete ato ilícito o titular que, no seu exercício, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Todavia, segundo Marco Aurelio S. Viana, [58] o Código Civil adotou a teoria subjetivista, porque a sanção se impõe sempre que presente o ânimo de prejudicar, de fazer o mal.

5.3.3Proprietário privado da coisa pela posse de terceiros – função social da posse

É possível concluir que o Código Civil, de certa forma, adotou também a função social da posse como princípio a ser observado pelo julgador, sobretudo se levarmos em consideração o disposto nos §§ 4º e 5º, do art. 1228.

Para Marco Aurelio S. Viana tais dispositivos regulam uma espécie de desapropriação indireta em favor de um particular, já que o proprietário poderá ser privado da coisa esbulhada, recebendo indenização justa, nas circunstâncias ali indicadas.

Tendo em vista que o pagamento da indenização será feito pelos possuidores e não pelo Estado, [59] aliado ao fato de que não há, como na desapropriação, a necessária declaração prévia de utilidade pública, Marco Aurélio Bezerra de Melo [60] denomina esta modalidade de privação da coisa de expropriação, ao invés de "desapropriação judicial" como parece ser a tendência doutrinária.

Aliás, sob o ponto de vista social o texto legal (§§ 4º e 5º, do art. 1228) é perfeitamente explicativo, guardando similaridade com a usucapião coletiva, prevista no art. 10 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).

De qualquer forma, segundo a redação dos citados dispositivos, o proprietário poderá ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse interrupta e de boa-fé, [61] por mais de cinco anos, [62] de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social ou econômico relevante.

Como se vê, caberá ao juiz, quando do julgamento do caso concreto, averiguar se as obras ou serviços realizados pelos possuidores de boa-fé são de interesse social ou econômico relevante. A construção de moradias, o surgimento de um novo bairro ou a construção de uma cooperativa de pescadores pode constituir exemplos de aplicação prática do dispositivo, desde que preenchidos os outros requisitos.

Outra dificuldade, embora não tão relevante, seria determinar, inicialmente, o que seria "extensa área" já que o código não apresenta parâmetros para julgamento. Todavia, em outros dispositivos falem em 250 metros quadrados [63] e cinqüenta hectares. [64] Sem dúvida a solução dependerá da localização do imóvel, se urbano ou rural.

Também dependerá do exame no caso concreto o conceito de "considerável número de pessoas," já que variável.

Venosa [65] adverte que a justa aplicação do direito de propriedade depende do encontro do ponto de equilíbrio entre o interesse coletivo e o interesse individual, de modo que o juiz, a cada decisão, sem descurar da proteção ao proprietário, deve sempre ter em mira a função social de todos os bens.

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Sobre o autor
Paulo César de Carvalho

juiz de Direito em Vitória (ES), especialista em Direito Civil e Processo Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Paulo César. Cláusulas gerais no novo Código Civil.: Boa-fé objetiva, função social do contrato e função social da propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 983, 11 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8077. Acesso em: 5 mai. 2024.

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