1) INTRODUÇÃO
O presente artigo busca trazer alguns esclarecimentos para a devida interpretação do instituto da cláusula penal desportiva, com base nos conceitos trazidos e na análise dos artigos existentes na nossa legislação desportiva.
2) A CLÁUSULA PENAL
Inicialmente, cabe-nos trazer alguns conceitos da cláusula penal civil, positivada no nosso Código Civil vigente, além de algumas das suas especialidades e peculiaridades.
O Novo Código Civil brasileiro não traz um conceito para o instituto da cláusula penal e trata, no seu artigo 409, a forma pela qual se dá sua constituição, restando à doutrina a tarefa de conceituá-la.
Dessa forma, Clóvis Beviláqua afirma que a cláusula penal "é um pacto acessório, em que se estipulam penas e multas, contra aquele que deixar de cumprir o ato ou fato, a que se obrigou, ou, apenas, o retardar".
Caio Mário, por sua vez, diz que "a cláusula penal ou pena convencional é uma cláusula acessória, em que se impõe sanção econômica, em dinheiro ou outro bem pecuniariamente estimável, contra a parte infringente de uma obrigação".
Um dos mais completos conceitos da cláusula penal é o de Limongi França, que afirma que "a cláusula penal é um pacto acessório ao contrato ou a outro ato jurídico, efetuado na mesma declaração ou declaração à parte, por meio do qual se estipula uma pena, em dinheiro ou outra utilidade, a ser cumprida pelo devedor ou por terceiro, cuja finalidade precípua é garantir, alternativa ou cumulativamente, conforme o caso, em benefício do credor ou de outrem, o fiel cumprimento da obrigação principal, bem assim, ordinariamente, constituir-se na pré-avaliação das perdas e danos e em punição ao devedor inadimplente".
Assim, a cláusula penal encontra percalço legal para que as partes, dispondo de sua liberdade contratual ou livre arbítrio, assegurem o implemento da obrigação e a possível antecipação das perdas e danos. É o ato pelo qual o devedor promete ao credor uma prestação, para o caso de inadimplemento ou o não cumprimento devido de uma obrigação, a qual denomina-se principal.
Por ser uma obrigação acessória, sua forma deve seguir a da obrigação principal. Desse caráter de acessoriedade, decorrem duas outras conseqüências: a nulidade da cláusula penal não acarreta a da obrigação principal; mas, de outro lado, a nulidade desta implica a da cláusula penal.
Um exemplo disto ocorre na locação, onde a cláusula penal é acessória ao contrato de locação. Se o locatário atrasa o pagamento do aluguel, por exemplo, incide a cláusula penal (que pode prever multa, juros, atualizações e correções monetárias, etc.), porém, sem rescindir o contrato de locação. No entanto, rescindido o contrato de locação, estará rescindida, também, a cláusula penal, devido a sua característica de acessoriedade.
A cláusula penal pode ser estipulada para a eventualidade de o devedor deixar de cumprir a obrigação na sua totalidade ou para o caso de inadimplemento no prazo fixado. Aquela recebe o nome de compensatória, essa, moratória. Sendo a cláusula penal estipulada para o caso de inadimplemento, importante saber-se qual o momento em que ele se verifica ou, em outras palavras, quando a pena se torna exigível.
O art. 408 do Código Civil ocupa-se da questão: "Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que culposamente deixe de cumprir a obrigação, ou se constituir em mora".
3) O "PASSE" DESPORTIVO
No futebol brasileiro, o passe foi regulamentado pela Lei nº 6.354/76 – lei esta que se encontra, atualmente, parcialmente revogada –, vinculando o atleta ao clube, remuneradamente e mediante contrato de trabalho por tempo determinado.
Conceituando o instituto do passe desportivo, o art. 11 da mencionada lei dispõe que "entende-se por passe a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois do seu término, observadas as normas pertinentes".
Atualmente, o passe foi extinto através das disposições da Lei nº 9.615/98, também conhecida como Lei Pelé, mais especialmente no seu art. 28, § 2º, com a redação da Lei nº 9.981/00. Este dispositivo determina que "o vínculo desportivo do atleta com a entidade desportiva contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo trabalhista, dissolvendo-se:
I – com o término do contrato de trabalho desportivo, ou
II – com o pagamento da cláusula penal nos termos do caput desse artigo, ou ainda
III – com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial de responsabilidade da Entidade Desportiva empregadora, prevista nesta lei."
Assim, se o passe era a importância devida por um empregador não só durante, mas também após o término do contrato de trabalho, conforme visto acima, vale mencionar que, se o vínculo desportivo de natureza acessória se extingue com o fim do vínculo empregatício, conclui-se que terminado o contrato de trabalho entre o atleta e o clube, nada mais resta para o empregador que dê o ensejo à exigência de uma importância pela transferência do atleta. Restou configurada, neste dispositivo, a extinção do instituto do passe, o que, na opinião do mestre Domingos Zainaghi, terminou com a última forma de escravidão no Brasil, sendo este substituído pela cláusula penal desportiva, conforme veremos a seguir.
3) A CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA
A cláusula penal que, conforme visto acima, é um instituto típico do Direito Civil, obteve nova roupagem no ordenamento jurídico desportivo brasileiro, uma vez que foi adotada como a sucedânea legal do famigerado instituto do passe desportivo, estando caracterizada na Lei Pelé, no já citado art. 28.
Do caput do mencionado artigo depreende-se que a inclusão da cláusula penal, de caráter indenizatório, no contrato de trabalho de atleta profissional é obrigatória, sendo aplicada nas hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral. Nos parágrafos do mencionado art. 28, incluídos através das alterações trazidas pela Lei nº 9.981/00, ficou previsto que o valor da cláusula penal será livremente estabelecido pelas partes contratantes, contanto que não ultrapasse o limite de 100 vezes a remuneração anual pactuada (art. 28, § 3º). Deve-se levar em conta, no cálculo da remuneração anual, todas as verbas salariais estipuladas em contrato, além de 13º salário e o terço constitucional de férias.
Por exemplo: Um atleta recebe um salário de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) mensais. Para o cálculo da sua remuneração anual, deve-se multiplicar o valor recebido mensalmente por 12 (R$ 20.000,00 x 12 = R$ 240.000,00), somado ao 13º salário (R$ 20.000,00) e ao terço constitucional de férias (R$ 20.000,00 x ⅓ = R$ 6.666,00), chegando ao valor da sua remuneração anual, que é R$ 266.666,00. Obtido este valor, aplica-se o art. 28 da Lei Pelé, multiplicando o valor da remuneração anual pelo limite de 100 vezes, obtendo-se o valor da cláusula penal, qual seja, R$ 26.666.660,00.
Importante ressaltar que, para efeito de transferência internacional, não haverá limitação de cláusula penal, contanto que tal vontade esteja expressa no contrato de trabalho, de acordo com o que determina o §5º do art. 28 da Lei Pelé.
A referida cláusula reveste-se de natureza compensatória pelo investimento despendido pela entidade de prática desportiva ao atleta, cuja prova de pagamento do valor estipulado é necessária, também, para fins de condição de jogo nos termos do art. 33 da Lei Pelé.
Fato é que a cláusula penal desportiva caracteriza o denominado contrato de risco, segundo o princípio da imprevisibilidade, durante o período da contratação, tanto para o atleta quanto para o clube, pois o clube, ao calcular o valor da cláusula penal, corre o risco de estabelecer um valor baixo, e o atleta "explodir" e acabar deixando o clube por um valor irrisório; ou pode estabelecer um valor alto e o atleta "não vingar", ou seja, não render o esperado ou machucar-se, enfim, se tornar um fardo para o clube que, devido ao valor alto da cláusula penal, acaba sem receber proposta alguma pelo atleta.
Outra inovação trazida pela lei, foi a estipulação de percentuais progressivos e não cumulativos de redução do valor da cláusula penal, aplicadas a cada ano de vigência do contrato. O princípio da cláusula penal desportiva vem do Direito Civil, e ela vai se reduzindo proporcionalmente, na medida em que o contrato é cumprido. De acordo com o §4º do art. 28 da Lei Pelé, os percentuais serão calculados da seguinte forma:
"art. 28:
§4º - Far-se-á a redução automática do valor da cláusula penal prevista no caput deste artigo, aplicando-se, para cada ano integralizado do vigente contrato de trabalho desportivo, os seguintes percentuais progressivos e não-cumulativos:
I – 10% após o primeiro ano de contrato;
II – 20% após o segundo ano de contrato;
III – 40% após o terceiro ano de contrato; e
IV – 80% após o quarto ano de contrato".
Cumpre salientar que o artigo 412 do Código Civil veda que o valor da cláusula penal exceda ao da obrigação principal, de sorte que se isso ocorrer, tal cláusula será passível de anulação. No entanto, isso não se aplica à cláusula penal desportiva, pois, como o Código Civil e a Lei Pelé são normas de igual hierarquia, aplica-se esta última, norma específica, para os atletas profissionais.
4) O "CASO ROBINHO"
A transferência do atleta Robinho, atacante do Santos Futebol Clube para o Real Madrid C.F. da Espanha, foi exaustivamente divulgada na mídia, não só brasileira, mas mundial, por se tratar de um jogador de qualidade técnica extremamente rara. No entanto, cabe-nos analisar os aspectos jurídicos que cercaram a negociação, como complemento do item 3 deste artigo, qual seja, a cláusula penal.
Como é de conhecimento público e notório, o atleta possuía com o Santos F.C., seu empregador, uma cláusula penal desportiva no seu contrato de trabalho, no valor de US$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de dólares norte-americanos), para transferências internacionais. Por livre acordo dele com o clube, 40% (quarenta por cento) deste valor pertenceria ao atleta, enquanto que o Santos F.C. faria jus ao recebimento dos 60% (sessenta por cento) restante.
A equipe do Real Madrid C.F., clube sediado na cidade de Madrid, na Espanha, e certamente um dos clubes mais conhecidos e ricos do mundo, apresentou uma proposta para adquirir os direitos econômicos (e não direitos federativos, como a imprensa, erroneamente, divulga) do atleta, no valor de US$ 30.000.000,00 (trinta milhões de dólares norte-americanos).
Como o jogador, teoricamente, teria direito a receber 40% desse valor, já que como dito acima foi estipulado no contrato de trabalho, o Santos F.C. não estava disposto a liberar o atleta, porque o clube receberia US$ 18.000.000,00 (dezoito milhões de dólares norte-americanos), ou seja, muito inferior ao que teria direito.
Decorrida essa parte introdutória dos fatos, cabe-nos a primeira análise jurídica.
O ordenamento jurídico brasileiro é basilado por princípios jurídicos, alguns gerais, outros específicos, mas não de menor importância. Mas o que são princípios jurídicos?
Nas palavras de José Afonso da Silva, "os princípios são ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas". São proposições ideais, nas quais todo o ordenamento vai buscar validade e legitimidade. Dentre os inúmeros princípios que norteiam o nosso sistema jurídico, apliquemos, no caso em tela, o do benefício da própria torpeza.
O princípio do benefício da própria torpeza consiste no fato de que a ninguém é lícito alegar em seu benefício a sua própria torpeza – nemo auditur propriam turpitudinem allegans – ou seja, ninguém pode tirar proveito de um prejuízo que ele próprio causou.
Aliás, o entendimento dos nossos Tribunais com relação a este princípio é uníssono e unânime, de acordo com os julgados abaixo:
Multa pelo atraso nas verbas rescisórias. A nulidade do contrato não elide qualquer dos efeitos, ainda que a título indenizatório, como proclama a sentença, diante do princípio segundo o qual a ninguém é dado se beneficiar da própria torpeza. Recurso provido.
Ac. 00430.601/96-4 RORA
Carmen Camino - Juíza-Relatora
1ª Turma - Julg.: 16.02.2000
Publ. DOE-RS: 10.04.2000
Nulidade do segundo contrato de trabalho. A força jurígena da realidade concreta, à luz da qual o R. continuou a se apropriar da força de trabalho do A., pelo espaço superior a um ano, após a aposentadoria voluntária, determina, à luz do art.442 da CLT, a formação de novo contrato de trabalho, cuja nulidade, à luz do art. 37, inciso II e § 2º, da CF, é de ser declarada ex nunc. Efeitos reconhecidos, diante do princípio segundo o qual a ninguém é dado obter benefício da própria torpeza.
Ac. 00707.611/96-2 REORO
Carmen Camino - Juíza-Relatora
1ª Turma - Julg.: 22.03.2000
Publ. DOE-RS: 10.04.2000
No presente caso, analisando juridicamente, o atleta só teria o direito aos 40% do valor da negociação, se esta se operasse de comum acordo entre ele e o Santos F.C.. Como a decisão de rescindir o contrato de trabalho partiu única e exclusivamente do atleta, ele vai de encontro com o que norteia o mencionado princípio.
O Santos F.C., interpretando de forma correta a cláusula penal desportiva do atleta, não aceitou vender o atleta, a não ser que recebesse os US$ 50.000.000,00 integrais.
Neste interim, o Real Madrid C.F. apresentou uma carta de crédito na Confederação Brasileira de Futebol, no valor de US$ 30.000.000,00, como pagamento pelos direitos econômicos do atleta. E aqui cabe outra análise jurídica.
A cláusula penal desportiva, por determinação legal, deve ser paga pelo atleta ao clube cedente, e não pelo clube adquirente. No entanto, a prática nos mostra que, usualmente, o responsável pelo pagamento da cláusula penal é o novo clube contratante que, interessado em explorar o potencial de determinado jogador, assume o risco de despender significativas cifras pelo rompimento do contrato de trabalho com o antigo clube.
Assim, a forma que o Real Madrid C.F. adotou para o pagamento da cláusula penal do atleta, caso fosse concretizado o negócio, está incorreta, perante os olhos da lei, pois deveria ter sido pago ao clube, e não através de carta de crédito apresentada na CBF.
O Santos F.C. até ameaçou levar o caso à FIFA, onde certamente sairia vitorioso. Porém, caso procedesse dessa forma, a situação poderia se agravar ao clube, que ficaria pendente quanto à essa discussão; ao próprio Real Madrid C.F; mas principalmente ao atleta, que poderia ficar afastado durante o período do processo que seria decidido pelo conselho arbitral da FIFA.
Desta forma, as partes concluíram a negociação, chegando a um acordo no valor de US$ 50.000.000,00. O Santos F.C. e o atleta também negociaram e decidiram que cada um teria direito ao percentual estipulado no contrato, ou seja, o Santos F.C. recebeu os seus US$ 30.000.000,00, e o atleta está negociando com o Real Madrid C.F. o recebimento dos US$ 20.000.000,00 a que tem direito.
A verdade é que o Santos F.C. contribuiu para que o futebol nacional desse um passo muito favorável à melhoria dos acordos com o mercado estrangeiro, dando à cláusula penal, a sua devida interpretação.
5) A MULTA RESCISÓRIA
A cláusula penal, conforme visto acima, ocorre unilateralmente, quando a rescisão do contrato de trabalho é motivada pelo atleta. Mas, e quando a rescisão é motivada pela entidade de prática desportiva?
Caso o clube resolva rescindir o contrato de trabalho do atleta antes do seu final previsto, estaremos diante do instituto da multa rescisória, nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Neste caso, o clube deverá arcar com as indenizações previstas na legislação trabalhista, em especial, pela multa prevista no art. 479 da CLT, que dispõe:
"art. 479. – Nos contratos que tenham termo estipulado, o empregador que, sem justa causa, despedir o empregado, será obrigado a pagar-lhe, a título de indenização, e por metade, a remuneração a que teria direito até o termo do contrato.
Parágrafo único: Para a execução do que dispõe o presente artigo, o cálculo da parte variável ou incerta dos salários será feito de acordo com o prescrito para o cálculo da indenização referente à rescisão dos contratos por prazo indeterminado."
Portanto, percebemos que o clube deverá efetuar o pagamento da multa equivalente a 50% do que o atleta receberia até o final do contrato.
A mora salarial prevista no art. 31 da Lei nº 9.615/98, também concede ao atleta o direito de recebimento da indenização de 50% prevista no art. 479 da CLT. O parágrafo 2º deste artigo afirma que o não recolhimento do FGTS (mora contumaz) implica imediata rescisão do contrato de trabalho. Eis o que determina este dispositivo:
"art. 31 – A entidade de prática desportiva empregadora que estiver em com pagamento de salário de atleta profissional em atraso, no todo ou em parte, por período igual ou superior a três meses, terá o contrato de trabalho daquele atleta rescindido, ficando o atleta livre para se transferir para qualquer outra agremiação de mesma modalidade, nacional ou internacional, e exigir multa rescisória e os haveres devidos.
§ 1º - São entendidos como salário, para efeitos do previsto no caput, o abono de férias, o décimo terceiro salário, as gratificações, os prêmios e demais verbas inclusas no contrato de trabalho.
§ 2º - A mora contumaz será considerada também pelo não recolhimento do FGTS e das contribuições previdenciárias."
Ou seja, se verificado o atraso no pagamento do salário, abono de férias, décimo terceiro, gratificações, prêmios, mora contumaz pelo não recolhimento do FGTS e demais verbas inclusas no contrato de trabalho, por período igual ou excedente a três meses, rescinde-se o contrato de trabalho e, consequentemente, desfaz-se o vínculo desportivo.
Com relação à mora contumaz, é importante ressaltar que, mesmo que o clube inadimplente venha a efetuar os depósitos do FGTS relacionados com os meses inadimplentes, não afastará a mora consumada no dia da distribuição e ajuizamento da ação de rescisão do contrato de trabalho.
Ou seja, verificada e consumada a inadimplência prevista no art. 31 da Lei Pelé, e distribuída a ação trabalhista, não adiantará ao clube efetuar o depósito dos valores devidos ao atleta, pois estando efetivado o atraso do salário, FGTS e contribuições previdenciárias não afasta a mora consumada no dia da distribuição da ação.
Esta multa rescisória não possui redutor e sua natureza é moratória. Ela é paga pelo clube ao atleta, refletindo uma das formas de rescisão indireta, que ocorre com o não cumprimento, pelo empregador, do disposto no contrato de trabalho.