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A lei na filosofia, na teologia e no direito

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17/03/2006 às 00:00
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A imutabilidade da lei natural

            Quando dizemos que o homem é animal racional, estamos confirmando que as suas notas constitutivas não podem ser absolutamente distintas do que são. A essência "homem" é necessariamente a de um "animal racional". Por isso é imutável.

            É assim também com a lei natural, pois deriva do cenário natural e da própria essência dos seres, devendo ser fixa e estável.

            Intrinsecamente imutável, a lei natural impõe ou proíbe ações que são boas ou más, em razão da própria natureza. Essa lei exprime o que é bom e necessário naquilo que ela tem de essencial e, por conseguinte, de imutável.

            Dessa maneira, nenhuma vontade humana tem o poder de ab-rogar a lei natural, por não ter poder sobre o cenário natural, que é aquilo que é independentemente de toda a vontade finita. Seria até contraditório e absurdo Deus querer que uma natureza aja contra a lei que Ele mesmo lhe deu, ao criá-la.

            Pelas mesmas razões, nem Deus nem o homem podem dispensar da observância da lei natural ou modificar-lhe os preceitos essenciais. O que pode haver, conforme ensina Tomás de Aquino (1221-1274), é "dispensa aparente da observância de certos preceitos secundários, isto é, matéria de ações que só podem ser difundidas como boas ou más em razão das circunstâncias ou das modalidades" (lex naturalis inquantum continet praecepta communia, quae nunquam fallunt, dispensationem recipere non potest. In aliis vero praeceptis, quae sunt quasi conclusiones praeceptorum communium, quandoque per hominem dispensatur, puta quod mutuum non reddatur proditori patriae, vel aliquid huiusmodi – S.th. I-II q. 97, 4 ad 3). Assim é que o ato de levar à morte só se pode chamar de intrinsecamente mau quando é injusto, ao passo que o perjúrio é mau por si mesmo e sem condições.

            Neste caso, existe apenas dispensa material da lei, mas que formalmente permanece imutável. Distinção importante, porque nos permite ver quando ela é absolutamente imutável e quando pode haver dispensa material ou exceção.

            Os preceitos negativos não admitem exceção alguma, em nenhuma necessidade, mesmo em perigo ou mal maior que possa resultar da observância da lei. Em todos os casos de necessidade extrema, grave ou comum, a lei natural impõe-se absolutamente. Exemplos: "não matarás injustamente, não dirás falso testemunho, não blasfemarás". Esses atos proibidos são maus no seu objeto e no seu fim próprio, isto é, intrinsecamente. Jamais o perjúrio, a blasfêmia e o homicídio (injusto) poderão vir a ser atos desculpáveis. Infringir essas proibições é ir contra a ordem moral essencial e produzir uma desordem que nenhum bem material pode compensar.

            Já os preceitos positivos admitem exceções ou dispensas materiais. Só pode prestar socorro a alguém em perigo de morte, com perigo da própria vida, se a pessoa estiver ligada por dever profissional para com aquele que está em perigo.

            Esse preceito positivo pode facilmente converter-se em simples conselho, que só será escutado por homens de coração. O dever estrito só reapareceria quando a abstenção equivalesse à transgressão de um preceito negativo.

            Pelo próprio fato de implicarem a consideração das circunstâncias, os preceitos positivos pertencem sempre à lei natural secundária. Relativamente à obrigação, os preceitos positivos prescrevem atos de vontade, enquanto os negativos proíbem o pecado. Ora, é sempre um mal cometer pecado; mas nem sempre é necessário, nem mesmo bom, fazer atos de virtude.

            Deve-se praticar a virtude em tais circunstâncias de tal maneira determinada, sempre se abstendo do mal. Convém lembrar que os filósofos éticos assinalam esta diferença, dizendo que os preceitos negativos obrigam sempre e a cada vez (semper et pro semper), enquanto que os preceitos positivos obrigam sempre, mas não a cada vez (semper, sed non pro semper).


A plasticidade da lei natural

            Não se pode dizer que as regras morais sejam absolutamente imutáveis, partindo da imutabilidade essencial do direito natural. Ele próprio é suscetível de variar e evoluir.

            A natureza é ao mesmo tempo imutável e mutável. Imutável na sua essência abstrata, em função da qual se definem os preceitos primários do direito natural. Mas é mutável e diversa em suas formas concretas, históricas e individuais.

            Essa, a razão por que, conforme diz Tomás de Aquino (1221-1274), também o direito natural deverá diversificar-se constantemente, não para alterar sua substância, mas para assegurar a sua permanência essencial (illud quod est naturale habenti naturam immutabilem, oportet quod sit semper et ubique tale. Natura autem hominis est mutabilis. Et ideo id quod naturale est homini potest aliquando deficere – S. th. II-II 57, 2 ad 1). Assim o direito varia, adaptando-se às circunstâncias concretas da vida econômica e social, para assegurar a permanência do direito.

            Há, sem dúvida, um progresso geral da humanidade no conhecimento das exigências do direito natural. Aí está precisamente o progresso da civilização. É assim que se explica a evolução que se produziu ao longo dos tempos relativamente à escravidão, às regras da guerra e às diversas formas da justiça e da solidariedade sociais.

            Justamente este aspecto do direito natural é que Henri Bergson (1859-1941) definiu como uma "moral aberta", sempre suscetível de novos progressos, graças a um aprofundamento das exigências do direito e de uma ampliação do seu domínio (Les deux sources de la morale et de la religion, 1932, p. 117 e ss.).

            A diversificação do direito natural assemelha-se ao das ciências, em que as conseqüências se deduzem dos princípios por via de raciocínio. Desse modo, o preceito que proíbe matar é corolário do princípio de que não se deve fazer mal a ninguém.

            A sua determinação é semelhante ao que sucede nas artes, quando se trata de adaptar um modelo a uma destinação particular: casa, lugar de habitação, lugar de reunião, local de ensino etc. A lei natural quer que seja punido aquele que cometeu uma falta: mas que seja punido de tal ou tal maneira (prisão, colônia agrícola, industrial, casa do albergado, hospital de custódia, tratamento psiquiátrico etc.), o que exigirá uma determinação da lei natural.

            Por essa razão é que a única concepção possível do direito é a analógica. Não existe direito em si ou em estado puro, assim como não existe homem em si. Há um direito territorial, familiar, ambiental, profissional, diversificado conforme os países e os climas, os tempos e os lugares.

            Um jurista alemão, Rudolf Stammler (1856-1938), falava de um direito natural de conteúdo variável, o que parecia aos seus pares uma contradição. Ele queria visar não o seu conteúdo formal, mas sim o material, isto é, as aplicações particulares e concretas da idéia de justiça à natureza social (Wirtschaft und Recht nach der materialistischer Gechichtauffassung, Leipzig, 1896).

            Por outro lado, o professor G. Renard (1894-1977) pôs em circulação a fórmula que fala de um direito natural de conteúdo progressivo. Graças ao trabalho da vontade humana esclarecida pela razão, o direito natural progride "primeiramente desenvolvendo as virtualidades inclusas no seu princípio" e depois "assimilando a si os meios históricos que ele deve reconduzir à ordem" (Le droit, l’ordre et la raison, 1927, p. 126).

            Lamentavelmente, não é o próprio direito natural que é variável e progressivo, e sim o conhecimento que o homem dele toma e as aplicações que dele faz, porque a noção do direito natural não deve ser obscurecida pela massa das aplicações múltiplas e aparentemente contraditórias que ele recebe.


O porquê da lei positiva

            A lei natural estende-se a todos os atos humanos. Mas em razão da forma genérica de seus preceitos, ela pode obscurecer-se sobre certos pontos e parecer incerta em múltiplas circunstâncias. Tal insuficiência faz-se sentir sobretudo no domínio social, que exige prescrições numerosas e precisas. Essa, a razão da necessidade das leis positivas, divinas e humanas.

            As leis divinas são decretadas pela autoridade de Deus e estão contidas na Revelação. São divinas pela forma, quando versam sobre atos já prescritos pela lei natural (Não matarás). As leis humanas são obra dos que exercem a autoridade, com o encargo de empregá-las para o bem comum dos que lhes estão submetidos.

            A lei natural limita-se a fixar os princípios gerais, deixando à lei positiva o cuidado de tirar as conclusões remotas, regular os casos concretos. Assim, a lei positiva procede por via de conclusões e de determinações.

            As conclusões promulgadas sob forma de leis e sanções tiram seu valor principal do rigor com que derivam dos princípios do direito natural.

            As leis positivas, na sua maioria, são determinações da lei natural: tais são as leis constitucionais ou as que regulam os direitos civis e políticos. A elas cabe dar todas as exatidões que a vida social reclama. As leis positivas recebem seu poder da simples vontade humana. Assim, pode acontecer que as determinações mais opostas sejam justas, por assentarem-se sobre algum fundamento natural. Dessa forma, o regime da liberdade civil e o da propriedade poderão diferir muito e sem nenhuma injustiça, conforme os tempos e lugares.

            As sociedades têm podido e poderão modificar-se pelo simples fato de surgirem novas legislações, sem que a lei natural seja violada. Como diz Tomás de Aquino (1221-1274), "vale isto, ao mesmo tempo, por dizer de que importância e de que eficâcia são as leis positivas que se aditam à lei natural" (Utraque igitur inveniuntur in lege humana posita. Sed ea quae sunt primi modi, continentur lege humana non tanquam sint solum lege posita, sed habent etiam aliquid vigoris ex lege naturali. Sed ea quae sunt secundi modi, ex sola lege humana vigorem habent. – S.th. I-II 95, 2).

            Uma de suas características é a justiça. Lei justa é a baseada na lei natural. Ela obriga como a própria lei natural. Não há necessidade de ser a melhor: basta que seja boa, isto é, justa.

            Outra é a sua utilidade. As leis positivas podem ordenar todos os atos necessários ou verdadeiramente úteis ao bem público, que é a sua finalidade.

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            Não menos necessária é a estabilidade das boas leis. São estabelecidas para o bem público e determinam o emprego de certos meios gerais. Devem ser progressivas, nunca estando em desacordo com os costumes públicos. Sua validez será maior quanto mais se apoiarem nos costumes públicos, visando elevá-los.

            As leis justas obrigam sempre em consciência. No caso de certas leis penais, o seu aplicador consegue o seu cumprimento mediante coerção. O delinqüente é passível da pena e deve a ela se submeter em consciência, se contra ele a pena é decretada.

            A lei positiva pode, no entanto, ser ora precedida e preparada, ora modificada e ab-rogada pelos costumes.

            Certas leis e constituições escritas, antes de serem observadas, foram apenas regras escritas sobre o papel, por não estarem firmadas nos costumes, nas necessidades reais dos povos a que se endereçavam. Por isso, desapareceram com as circunstâncias que as haviam feito nascer. Essa, a razão de que os costumes são anteriores à lei positiva. São fundadas, preparadas, autorizadas e tornadas oportunas por eles, quando formalmente não a ditam.

            Assim como a lei é precedida pelo costume, ela é também por ele modificada. Segue a lei como a precede: pode modificá-la, interpretá-la e mesmo mudá-la ou ab-rogá-la no todo ou em parte.

            A razão disso é que as leis não convêm a todos os lugares e a todos os tempos, pois as sociedades transformam-se de maneira contínua e às vezes rápida, devendo o legislador permitir que se opere essa transformação, para que o novo costume modifique ou mude a lei existente.


A lei no mundo antigo

            "Olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe" (Ex 21, 24, 25). Essa, a lei do talião (Lv 24, 17-20; Dt 19, 21), que se encontra no código de Hamurabi e nas leis assírias, de natureza social e não individual.

            Prevendo um castigo igual ao dano causado, visa a limitar os excessos da vingança.

            "Lamec disse às suas mulheres: Ada e Sela, ouvi a minha voz, mulheres de Lamec, escutai a minha palavra: Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes!" (Gn 4, 23-24).

            O caso mais claro é a execução de um assassino (Ex 21, 31-34; 21, 12-17+; Lv 24, 17). De fato, a aplicação dessa regra parece ter perdido desde muito cedo a sua brutalidade primitiva. As obrigações do "vingador do sangue" (Nm 35, 19+) foram se purificando até se limitarem ao resgate (Rt 2, 20+) e à proteção (Sl 19, 15+; Is 41, 14+). O enunciado do princípio continua em uso, mas sob formas mais brandas (Eclo 27, 25-29; Sb 11, 16+). O indulto era prescrito no interior do povo israelita (Lv 19, 17-18; Eclo 10, 6; 27, 30; 28, 7) e Cristo acentuará ainda mais o mandamento do perdão (Mt 5, 38-39+; 18, 21-22+).

            Encontrado em Susa, em 1902, o código de Hamurabi foi o primeiro paralelo extrabíblico com a lei bíblica do antigo Oriente Médio.

            A partir dessa data, foram descobertas a coleção sumérica de Lipit-Ishtar, as leis acadêmicas de Eshnunna, as leis assírias, as leis hititas e algumas leis neobabilônicas.

            A maioria é mais antiga do que as leis israelitas. As leis de Lipit-Ishtar remontam a 1900-1850 a.C.; as leis de Eshnunna, a mais ou menos o mesmo período; as leis de Hamurabi (1728-1686), pouquíssimo posteriores, as leis assírias em sua forma típica do século XII, as próprias leis do século XV, as leis hititas em sua forma peculiar ao século XIII e cuja origem pode ser situada no século XVII, as leis neobabilônicas provavelmente provêm do século VII.

            Essas coleções, quando comparadas com as israelitas e quando confrontadas entre si, levam os exegetas a concluírem em favor da existência de uma lei geral amplamente difundida no antigo Oriente Médio, que variava em pormenores, porém não em princípios, de uma compilação para outra.

            Pela comparação, evidencia-se que a lei israelita civil e criminal é um produto dessa lei geral. Mas o cotejo não é provável em todos os detalhes; nenhuma das coletâneas está completa, e todas, com exceção da peça danificada de Hamurabi, foram conservadas apenas em fragmentos.

            Hamurabi fez para as leis uma introdução que consta de um prólogo histórico e termina-as com um epílogo que inclui imprecações contra os que alteram as leis. Lipit-Ishtar possui um fragmento de um epílogo histórico. Pode-se concluir que o prólogo e o epílogo aparecem em todas as coleções.

            Lendo o prólogo e o epílogo, percebe-se que as leis não foram recebidas por meio de revelação divina. Hamurabi recebe dos deuses a delegação e a autoridade para escrever as leis e, ainda, a sabedoria necessária para escrevê-las bem, mas, apesar disso, as leis são uma composição dele.

            Tal composição é exagerada; o rei fala como se nunca tivesse havido outra lei antes da sua coleção. Lipit-Ishtar também fala do encargo que recebeu como rei.

            Além de alguns princípios e práticas em comum, todas essas leis apresentam a mesma formulação. O caso é descrito numa cláusula condicional, e a decisão, penalidade ou compromisso são afirmados na apódose. "Se a mulher de um senhor for acusada pelo seu esposo, mas não tiver sido apanhada em flagrante, enquanto mantinha relações sexuais com um outro homem, ela poderá fazer um juramento por deus e voltar para sua casa." (Hamurabi 131).

            Essa formulação é conservada mesmo quando a descrição do caso e uma coleção complexa tornam a sentença inflexível. Deve-se supor que isso fosse tradicional e comum até o princípio do II milênio.

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A lei na filosofia, na teologia e no direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 989, 17 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8107. Acesso em: 15 nov. 2024.

Mais informações

Texto baseado em série originalmente publicada no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 15/05/2005 e 20/11/2005.

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