A ética no Executivo
A corrupção é, sem dúvida, a coisa mais velha do mundo. Nasceu com Adão e Eva (Gn 3) e só vai desaparecer com o último dos mortais
O nepotismo, o compadrio, o favorecimento de parentes, cabos eleitorais e afilhados, às custas dos impostos arrecadados dos quase moribundos contribuintes brasileiros, fazem parte da cultura nacional.
No Brasil, de acordo com os jornais, política e corrupção são características permanentes dos homens que dominam o poder, considerando-se mais dotados do que a plebe, para subir na vida, à custa dela.
A situação é grave demais.
Há juízes que empregam familiares, para angariar mordomias, e que dão ganho de causa a pessoas gananciosas, negociando a própria honra.
Existem políticos que se deixam corromper, que varrem as mazelas para debaixo do tapete, pois temem desagradar amigos e desapontar poderosos.
Qual a causa de tudo isso?
Nenhuma reforma social é possível sem a renovação moral ou sem a conversão dos corações. É a velha advertência evangélica: "Ninguém põe vinho novo em odres velhos...Mas vinho novo em odres novos" (Mc 2, 22). Isso quer dizer que quem quer renovar o mundo deve começar por renovar a si mesmo; é preciso cortar o mal pela raiz.
Em conseqüência do materialismo alastrado em nossos dias, é freqüente crer que as reformas de estrutura são suficientes para assegurar um mundo melhor. Bastaria "socializar" a propriedade, para erradicar o egoísmo do homem. A igualdade jurídica e econômica acarretaria naturalmente a fraternidade e a benevolência entre os homens.
Tais expectativas, no entanto, são desmentidas pelas experiência. As melhores instituições são ineficazes, se os homens, que as regem, forem injustos e corruptos.
No fundo, o problema social é um problema moral. Mas essa observação não é satisfatória. O homem honesto e reto é capaz de modificar seu ambiente; por sua vez, o ambiente exerce forte pressão sobre o indivíduo. De nada adianta pregar a moral conjugal cristã, se não se proporcionam às famílias casas saudáveis e o espaço vital necessário. É difícil levar uma vida familiar moral num cortiço promíscuo.
Essa, a razão por que a reforma social deve ter em vista tanto a renovação dos costumes como a das instituições;
Desde a encíclica Rerum Novarum, os papas vêm insistindo nessa dupla modalidade da questão social,, demonstrando que a renovação social tão desejada deve ser precedida por uma total renovação do espírito cristão.
Tenho para mim que o Executivo não deveria estar preocupado apenas em se defender, em preservar-se e em acobertar os correligionários e o seu governo. Deveria, sim, é retratar-se diante do povo, que foi lesado, espoliado e enganado em sua boa-fé.
Há um exemplo bíblico, que deveria ser o modelo da atitude do nosso governo, e que nos ajuda a refletir sobre o que acontece no proscênio da vida política brasileira.
O evangelista João (2,13-22) narra o episódio da ida de Jesus ao templo de Jerusalém. Ao deparar-se com os vendilhões que montam suas bancas e fazem do lugar sagrado uma casa de comércio, o manso mestre de Nazaré toma o chicote, derruba mesas e expulsa do templo quem nele não deveria estar.
Com sua atitude forte e decidida, Jesus quis purificar o templo e defender o povo da exploração e corrupção de que eram vítimas. Ele se preocupou com as pessoas que eram atingidas pelo que ali se passava.
A justiça no Executivo
Virtude é o hábito e uma disposição estável para praticar o bem. Viver bem, do ponto de vista ético, é viver virtuosamente.
Algumas virtudes são chamadas cardeais, porque são as primeiras de todas e fontes de outras. Têm por finalidade reger o comportamento do homem para que, cumprindo seus deveres de estado, chegue ao seu fim supremo.
Ninguém pode, no entanto, alcançar a sua meta sem o auxílio dos outros; nossas relações com o nosso semelhante são regidas pela virtude da justiça. Ela é que indica os deveres para com a família, a sociedade, a profissão e a pátria.
No dizer de Tomás de Aquino (1221-1274), justiça é a virtude que dá a cada um o que lhe é devido (iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuit – S.th. II-II 58, 1).
Dar a cada um o que lhe compete não significa dar a todos a mesma coisa; a distribuição deve ser proporcional ou deve corresponder à capacidade de cada qual; onde um é igual ao outro, há direitos iguais; onde um é diferente do outro, há direitos diferentes; as responsabilidades de cada um correspondem aos seus talentos.
Os vizinhos de rua, os colegas de trabalho, de estudo, os comerciantes e seus clientes, o direito de usar o salão de festas, a piscina, o campo de esportes, tudo isso se baseia nos direitos particulares de cada um dos interessados. É a justiça comutativa, do particular ao particular, cuja violação obriga à restituição ou indenização.
Nos impostos, taxas, comércio e trânsito, que favoreçam o bem comum, aos governantes, como responsáveis do direito, toca servir à comunidade; aos governados, observar fielmente as leis que fomentam o bem comum. Trata-se da justiça legal, do particular à comunidade, cujo sujeito do direito é a própria comunidade.
Na previdência social – que procura atender aos eventos da doença, invalidez, morte e idade avançada, a proteção à gestante, os trabalhadores desempregados, o salário-família, o auxílio-reclusão, a pensão por morte (CF art. 201) –, o sujeito do direito é o indivíduo dentro da comunidade. É a justiça distributiva, que garante os direitos dos cidadãos, que vai da comunidade ao particular.
Nos supermercados, as mercadorias são tabeladas. Não se pode porém tabelar o serviço de um operário. O trabalho é a expressão de um ser humano, que tem seu ideal e sua família.
Quem avalia a lida de um operário não se pode orientar apenas pela justiça comutativa nem somente pela justiça distributiva, mas há de levar em conta fatores mais profundos: os direitos da pessoa humana a ser valorizados como tal e não como mera máquina produtora de lucros. É a justiça social, que vai de uma comunidade a outra comunidade.
Ela existe igualmente na família. Os filhos têm o direito de viver e de receber educação; os pais devem atender a tal direito, porque são pais ou porque ocupam um lugar especial na comunidade. Da mesma forma, os filhos têm de prestar a seus genitores o apoio necessário e os meios de sobrevivência, quando idosos, independentemente das normas da justiça comutativa.
Hoje é grande a distância entre os que possuem muito e os que nada têm e, por isso, levam uma vida infra-humana. Assim, a justiça social pode exigir que alguém dê aos pobres muito necessitados uma parte do seu supérfluo; os pobres não receberão isso a título de caridade, mas sim a título de justiça, porque têm o direito de viver em termos humanos e dignos.
As relações entre os povos são atingidas também pela justiça social. Os mais aquinhoados e evoluídos têm a obrigação de ajudar os povos deserdados, a fim de que possam evitar condições de vida indignas do ser humano; entre outros deveres está o de acolher populações deslocadas ou desabrigadas e os que correm o risco de perecer em alto-mar ou de ser vítimas de selvageria alheia.
A caridade no Executivo
Infelizmente, a justiça não pode atender a todos os casos em que se requeiram ajuda mútua e colaboração entre os homens.
A seu lado, deve haver no bom cidadão a caridade atuante, caridade que não é apenas a distribuição de esmolas; é algo de mais profundo, pois implica partilha de interesses derivada da convicção de que todos os homens são filhos do mesmo Pai Celeste.
Assim, a caridade requer respeito pela justiça e não a substitui. Quem ama o próximo começa por respeitar seus direitos; o justo salário nunca pode ser omitido a troco de esmolas.
A justiça há de ser temperada pela caridade. É legal despejar um pobre do cômodo cujo aluguel ele não pode pagar, mas esse feito legal (Lei nº 8.245/91, art. 59) é contrário à eqüidade. No dizer de Cícero (106 a.C.), a suprema justiça vem a ser a suprema injustiça, (summum jus, summa injuria – De Officiis, I,10,33). Deve pois a caridade intervir para impedir que se cometa, em nome da legalidade, uma grande injustiça, moderando constantemente as reivindicações da justiça e construindo a paz e a concórdia na sociedade.
A caridade é auxiliar da justiça. Mesmo que, por hipótese, fosse atingida a justiça perfeita entre os homens, ainda restaria amplo campo de ação para a caridade. Sempre haverá misérias morais, corações injustiçados, sofrimentos ocultos, que só a caridade pode perceber e aliviar; é ela a responsável pela benevolência e a caridade sincera, sem as quais não há autêntico convívio humano.
Justiça e amor fraterno não se excluem mutuamente, mas, ao contrário, devem colaborar para garantir a sobrevivência e o progresso da sociedade humana.
Aristóteles (384/383 a 322 a.C.), in Ética a Nicômaco, escreveu belas páginas sobre a amizade. No capítulo VIII, diz que o legislador deve preocupar-se mais em despertar a compreensão mútua entre os cidadãos do que em fazer observar a justiça, porque esta ordena apenas os atos exteriores, ao passo que a amizade une os corações: "A justiça não seria mais necessária, se entre os homens reinasse perfeita amizade."
O progresso da vida na sociedade impôs novas obrigações aos patrões e proprietários. O que ontem era objeto de caridade hoje se tornou, em muitos casos, objeto de justiça. O repouso semanal remunerado, o salário-família, o seguro-desemprego (CF, art. 7º, II, XII e XV) podiam ser gestos de caridade antes de serem sancionados pela justiça social.
Na vida social pode haver obrigações que não decorram unicamente da estrita justiça; não raro existe uma obrigação moral, onde não há dever jurídico propriamente dito, e essa obrigação pode ser tão grande, ou até mais grave, do que um dever de estrita justiça.
Um credor que aceita uma prorrogação de pagamento, uma restituição parcial da dívida do cliente em situação difícil, um contratante que modifica um compromisso tornado oneroso por circunstâncias imprevisíveis, todos percebem que, agindo assim, são razoáveis nas relações com seus semelhantes. Seria uma injustiça agir de outro modo.
Mas se a justiça e a caridade devem complementar-se mutuamente, de outro lado é necessário que não sejam confundidas entre si. Há deveres de justiça que não podem ser considerados obras de caridade. O trabalhador não deve receber a título de esmola o que lhe cabe por direito. A caridade e a justiça impõem deveres, sempre em relação ao mesmo objeto, mas sob aspectos diferentes.
Isso não quer dizer que a esmola, totalmente gratuita, não se imponha, por vezes, como obrigatória solução de emergência.
A caridade é paciente, a caridade é prestativa (1Cor 13, 4), mas o ideal não é dar pão a quem tem fome; melhor seria que ninguém tivesse fome. O ideal não é vestir a quem está nu; quem dera todos tivessem roupa para se vestir.
Mais autêntico, mais puro, muito mais leal será o amor por uma pessoa feliz, a qual não se possa fazer devedor. Talvez seja melhor desejar que o infeliz seja nosso igual e nós todos submissos Àquele que não tem que agradecer a ninguém.
O Executivo no antigo Oriente Médio
A análise realizada por G. E. Mendenhall mostra que, no antigo Oriente Médio, as funções da realeza eram duas: a guerra e a lei. Seu ensaio (Ancient Israel’s Faith and History: an introduction to the Bible in context. Louisville: John Knox Press, 2001) apresenta uma clara e compreensiva descrição da tradição bíblica, particularmente no que diz respeito à fé e à história da antiga Israel; é "... an attempt to condense and incorporate sixty years of study into a clear and comprehensive overview of the biblical tradition, particularly as it pertains to ancient Israel’s faith and history" (p. xvii).
Às funções da guerra e da lei era acrescentada uma terceira: a função cultual do rei. E esse seu ofício era o fundamento e a fonte do poder, mediante o qual ele governava.
O poder real constituía a base de uma sociedade ordenada. O rei era o Estado, e seus atos eram atos do Estado. A ordem na sociedade era obtida pela guerra, que protegia o Estado dos ataques externos, e pela lei, que mantinha a estabilidade interna. O rei era a fonte da lei tanto como legislador quanto como juiz.
A história do Egito (2800 a 525 a.C.) demonstra uma estabilidade dinástica. Seu alicerce teórico era a divindade do rei; o rei era um deus, Horus, filho de Ra e Horus, filho de Osíris. Por essa razão, o rei não era um ministro ligado à liturgia, mas um objeto de culto.
Na arte egípcia, o rei era representado como um gigante em estatura. Em cenas militares, ele aparecia desbaratando o inimigo quase só com uma das mãos. Todos os faraós eram representados tendo a mesma aparência divina, sempre serena.
Todos os atos da administração eram atos do rei, porque somente ele possuía o poder divino de governar e ditar leis. O Estado egípcio era administrado por uma hierarquia altamente centralizada, onde a corrente de autoridade fluía do rei e ia alcançar o nível administrativo mais baixo. No Nilo a monarquia egípcia encontrava meios de comunicação fáceis e rápidos, mediante os quais conseguia atingir todo o país.
Já na Mesopotâmia a realeza descia do céu; era uma instituição divina, mas não absoluta como a monarquia egípcia. O rei governava com um conselho de anciãos e com a assembléia geral composta de todo o povo.
Seu apoio teórico era a posição do rei como representante dos deuses. Ele era o seu eleito. Era o chefe não só da cidade, mas, também, do ritual religioso; era o sumo sacerdote e o principal ministro do culto, sem o qual os homens não se podiam comunicar com os deuses.
As dinastias da Mesopotâmia eram instáveis, se comparadas às egípcias, em face do clima. Um estudo de Thorkild Jacobsen (The Treasures of Darkness: a History of Mesopotamian Religion New Haven: Yale University Press, 1976) relaciona esse fato com a sua concepção do cosmo, que era uma integração de muitas vontades, cuja estabilidade dependia do entrosamento e da harmonia dessas vontades sob um legislador ou governante eleito.
A principal função do rei era a de representar o deus na festa do ano novo. O complemento da sociedade com a natureza era garantido pelo rei, que, aí, mais do que em qualquer outro lugar, se identificava com o Estado. Esse papel também fazia parte vital da base especulativa do poder do rei que, no caso, sustentava a vida.
O rei mesopotâmico era um salvador; a ênfase colocada nesse título refletia a ameaça de caos, oculta sob a instável integração das vontades. Tanto como vencedor na guerra como legislador e juiz, o rei libertava o reino do mal presente e ameaçador. Ele era o princípio da paz e da justiça, o defensor dos pobres e o vingador dos direitos dos súditos.
Pouca coisa se sabe a respeito da ideologia da realeza das cidades-Estados de Canaã e dos estados-Nações que eram vizinhos de Edom, Amon e Moab.
É impossível que a realeza de Israel não tenha sido influenciada por esses povos, mas não há possibilidade de assinalar pontos certos de contato.
O fato de que os deuses cananeus fossem chamados de reis deduz-se claramente por causa dos numerosos nomes pessoais compostos com o título "rei" dado à divindade.